Título: A miséria do apoliticismo e as raízes de esquerda do anarquismo
Data: 15/04/2018
Fonte: Adquirido em 30/06/2019 de http://elcoyote.org/a-miseria-do-apoliticismo-e-as-raizes-de-esquerda-do-anarquismo-parte-i-rafael-v-da-silva/

Parte I

“Os elementos problemáticos e o caráter incompleto da práxis teórica anarquista não encontram soluções numa mutação genética baseada na recusa da luta de classes ou num posicionamento, cheio de veleidades, para “além da direita e da esquerda”. Pier Francesco Zarcone

“Porém, para aqueles que reivindicam ser de esquerda, deveria existir uma clara compreensão de que a utilização do termo “esquerda” envolve a aceitação de princípios fundamentais que, literalmente, definem e justificam a utilização da palavra”. Murray Bookchin

O filósofo Norbert Bobbio debatendo a validade em se usar os conceitos de esquerda e direita, afirma que “estes não são conceitos absolutos. São conceitos relativos. Não são conceitos substantivos ou ontológicos. Não são qualidades intrínsecas ao universo político […] Representam uma determinada topologia política” (BOBBIO, 2011, p. 91). Isso quer dizer na prática, se é de esquerda sempre em relação ao que é de direita e vice-versa. Tendo em vista, que ser de direita ou de esquerda se traduz numa tomada de posição relativa a um universo político concreto, adotar (ou não adotar) determinadas posições num universo (como por exemplo, numa crise política num país) é se filiar às posições de esquerda ou de direita. Por isso, não existe nenhuma pessoa que seja “nem de direita, nem de esquerda” (mesmo que queira), porque a topologia é como um mapa. Você pode negar a sua posição espacial, mas isso não significa que você não está lá.

Bobbio também chama atenção para o fato de que historicamente, a oposição esquerda versus direita se constitui por um lado, com aqueles que partem da “convicção de que a maior parte das desigualdades que o indignam, e que gostaria de fazer desaparecer, são sociais e, enquanto tal, elimináveis” e por outro, aqueles que acham que “as desigualdades são naturais e, enquanto tal, inelimináveis” (BOBBIO, 2011, p. 105). O anarquismo, claramente esteve ao lado do primeiro grupo e nas palavras do pesquisador Lucien van der Walt, “a ampla tradição anarquista teve um enorme impacto na história do movimento operário e camponês, bem como da esquerda em geral” (WALT, 2017, p. 83).

Há certo consenso entre os historiadores e os cientistas políticos em identificar o surgimento da díade esquerda e direita dentro do processo da Revolução Francesa e sua busca, ainda em marcos muito limitados de igualdade política e social. É conhecida a história de que foi dentro da Assembleia Nacional Constituinte francesa que se inaugurou a posição entre aqueles que defendiam políticas mais próximas dos anseios populares e aqueles que defendiam interesses das camadas aristocráticas e burguesas, estas últimas, que ascendiam com sua agenda no cenário político francês.

Numa reunião, ocorrida no Manège, um salão de reunião situado atrás do palácio de Tuileries, a configuração de Esquerda, Direita e Centro ocorreu devido à forma com que as cadeiras estavam organizadas. À esquerda do presidente da Assembleia, sentavam-se aqueles que defendiam direitos populares, à direita, conservadores, que desejavam o fim da revolução e ao centro, os que defendiam uma monarquia constitucional, com o poder do rei sendo limitado por leis feitas pela Assembleia. Cabe dizer que ainda não havia partidos na França, mas logo se formaram setores políticos com identificação própria.

O Primeiro (clero) e o Segundo Estado (nobreza) estavam à direita do Terceiro Estado (alta e pequena-burguesia, camponeses e trabalhadores urbanos). O Terceiro Estado correspondia a mais de 80% da população; não era um bloco homogêneo e sua unidade se esfarelou devido às suas divisões internas e divergências de classe. Os san-cullotes, setor urbano que compunha o terceiro Estado, por exemplo, forneceu importantes quadros para os enragés, um setor popular que defendia um programa para atender os mais pobres, confisco do trigo, imposto para os ricos e outras ações radicais, que estavam à esquerda dos conservadores e dos jacobinos. Como apontado por Daniel Guerín:

Havia, de fato, no seio da Revolução francesa, dois tipos muito diferentes de revolução ou, se é preferido, duas variedades contraditórias de poderes, um formado pela ala esquerda da burguesia, outro por um protoproletariado (pequenos artesãos e assalariados). O primeiro estado autoritário, e até mesmo ditatorial, centralizado e opressivo contra os não privilegiados. O segundo estado democrático, federalista, composto daquilo que será conhecido hoje por conselhos operários, isto é, as 48 sessões da vila de Paris associadas na quadra da Comuna parisiense e as sociedades populares nas vilas de província(7). Não hesito em dizer que este segundo poder era em essência libertário, em alguma medida o precursor da Comuna de Paris de 1871 e dos soviets russos de 1917, ao passo que o primeiro foi batizado, mais somente depois do golpe, durante o século de XIX, jacobino. (GUERÍN, 1973)

Portanto, a configuração de esquerda e direita não nasce apenas à partir da assembleia constituinte (embrião do Estado burguês), mas é fruto de discussões que a extrapolam e envolvem amplos setores da sociedade francesa. Achar que direita e esquerda são apenas conceitos que servem às disputas palacianas é ter uma visão restrita da sociedade e deste processo histórico na França. Apesar de Guerín ter sublinhado a presença de setores populares com projetos políticos mais libertários na Revolução Francesa cabe reforçar que não é possível estabelecer um marco de surgimento do anarquismo no século XVIII (CORRÊA, 2012, p. 63).

O período posterior a Revolução Francesa e que se estende do Congresso de Viena (1815) a Primavera dos Povos (1848) é, portanto, de luta entre liberais e conservadores e o crescente afastamento dos trabalhadores da influência liberal. É o momento chave para a consolidação das bases materiais e ideológicas da formação do anarquismo. A Primavera dos Povos de 1848 espalhou-se por quase todo o continente europeu e modificou a cara do jogo político da classe dominante. Apesar do ímpeto dos trabalhadores naquele movimento de contestação, que reunia, também, pautas liberais e nacionalistas, 18 meses após sua explosão, todos os regimes que foram derrubados pelo processo insurrecional estavam restaurados, com a exceção do regime francês. Tais processos foram paulatinamente manobrados na direção dos interesses burgueses, que obtiveram o controle do movimento utilizando o apelo nacionalista. Assim constituiu-se um incipiente movimento operário e com ele, uma expressão política anti-burguesa e internacionalista que se afastava da mensagem jacobina de patriotismo. As posições políticas não são estanques e não estão engessadas no tempo. Assim, a burguesia, já com o controle de diversos Estados nacionais é jogada para a direita, pois interessava a esta, a manutenção da nova ordem social dos estados burgueses, enquanto os trabalhadores, à esquerda dos novos dominadores desejavam uma igualdade social real e se colocaram a favor da mudança da atual situação.

Os trabalhadores e seu movimento organizado passam assim, a se posicionar contra os governos vigentes e pela ampliação dos direitos sociais, colocando-se, portanto, à esquerda dos conservadores e capitalistas. Segundo Guerín (1975), em 1840 ocorre uma greve geral em Paris e “durante os anos seguintes assistiu-se a um afloramento de jornais operários”. Será nos marcos da fundação da Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT) em 1864 que se expressa, um campo político de identidade própria e que superando os limites dos horizontes políticos da Revolução Francesa, já propõe no seu segundo congresso (1867), transformar a AIT em “um centro de ação para a classe operária contra o capital” (SAMIS, 2015, p. 170). Definitivamente, se constituía um campo proletário e socialista, que reunia tradições mutualistas, coletivistas e comunistas, mas que guardadas às devidas divergências, possuíam acordos mínimos em comum a favor da obtenção da igualdade social e do fim do capitalismo. Ou seja, a discussão no interior do campo socialista era o da reorganização global da sociedade por uma via revolucionária. E quem fala em reorganização da sociedade, quer queira, quer não, está falando de uma discussão política.

Quer gostemos disso quer não, “o anarquismo e o marxismo em seu início beberam na mesma fonte proletária: uma fonte de esquerda. E, sob a pressão da classe trabalhadora recém nascida, eles assumiram a mesma tarefa final”, para o autor, “suplantar o Estado Capitalista, confiar, os meios de produção aos próprios trabalhadores.” (GUERÍN, 1975). Inclusive, no terreno da linguagem, conceitos em comum também são adotados (alguns conceitos em disputa, outros não).

Esse campo em comum, contrariando o otimismo de Guerín e sua posterior tentativa fracassada de síntese entre marxismo e anarquismo, não foi constituído sem divergências internas. É óbvio que havia divergências, mas todos se sentiam parte de um mesmo campo comum, um mesmo terreno socialista porque lutavam com base no terreno da classe trabalhadora. Foi dentro deste campo político – socialista e operário – que se constituiu o que hoje denominamos anarquismo. O anarquismo, portanto, nasce à esquerda, socialista e libertário ou nas palavras de Kropotkin em seu clássico verbete para a Enciclopédia Britânica

Quanto às suas concepções econômicas, os anarquistas, em comum com todos os socialistas, dos quais constituem a ala esquerda, sustentam que o sistema atual de propriedade privada na terra e nossa produção capitalista em prol dos lucros representam um monopólio que funciona contra os princípios da justiça e os ditames da utilidade. KROPOTKIN, 1910, tradução nossa.

Uma análise etimológica do termo “anarquia” e de seus derivados só pode apontar para uma negação – do governo, do Estado, da autoridade –, ou seja, para elementos “destrutivos”, de crítica social; o anarquismo, entretanto, sempre possuiu elementos construtivos, objetivos e estratégias para atingi-los. Esses elementos foram determinados historicamente e não a obra da cabeça de “sete sábios”. Por isso, tentar entender o anarquismo à partir da simples etimologia (significado da palavra) é algo que pode gerar distorções brutais. Por isso precisamos sempre recorrer aos significados em seus contextos históricos e concretos. É possível entender o cristianismo, ou o marxismo apenas analisando o que a palavra quer dizer?

Nenhuma etimologia explica o nascimento e a trajetória de uma ideologia. É no movimento concreto, onde os conceitos são forjados e sua posterior trajetória que entendemos seu significado.

Foi somente a partir dessa cisão e da fundação, em 1872, da Internacional Antiautoritária, uma associação popular e operária que reuniu a maior parte dos anarquistas europeus, que o termo “anarquia” e seus derivados passaram a ser utilizados mais constantemente pelos próprios anarquistas. Mikhail Bakunin e James Guillaume, conforme apontam Marianne Enckel (1991, p. 199 apud Corrêa; Silva, 2013.) e René Berthier (2010, p. 127 apud Corrêa; Silva, 2013), tiveram reticências em relação à utilização do termo “anarquista”, justamente por razão do senso comum que existia em torno dele.

Insistimos. O surgimento do anarquismo está ligado indissociavelmente à própria trajetória do socialismo e das lutas operárias. Não se pode falar de anarquismo – por rigor histórico – antes das lutas que culminariam na formação do sindicalismo de intenção revolucionária e da Associação Internacional dos Trabalhadores. O anarquismo nasce socialista, libertário e à esquerda de capitalistas, conservadores e aristocratas. Lucien van der Walt sublinha que mesmo autores que trabalham com definições extremamente vagas de anarquismo reconhecem que o anarquismo não existia antes de 1860 (WALT, 2013, p. 3).

O anarquismo, portanto constitui um tipo de socialismo caracterizado por um conjunto preciso de princípios político-ideológicos, que inclui a oposição ao Estado, mas que não se resume a ela (CORRÊA, SILVA, 2013). O anarquismo nasce rejeitando variadas teses marxistas (como a tomada do Estado e ação parlamentar), mas concorda com a crítica ao capitalismo, o anti-capitalismo e a necessidade de uma revolução social violenta para mudar radicalmente a sociedade.

A emergência, difusão e conformação plena do anarquismo ocorreram, segundo pesquisas, no intervalo de menos de 20 anos, compreendido entre 1868 e 1886. Portanto, o anarquismo não é um espírito antiautoritário presente em diferentes contextos históricos ou uma orientação antiestatal vaga que se estenderia até a antiguidade. Essa definição (frouxa) não é apenas pouco rigorosa historicamente, é certamente cômoda para quem acha que o anarquismo se expressa simplesmente negando os autoritarismos presentes na sociedade, algo semelhante a uma filosofia de vida pessoal.

A emergência do anarquismo pode ser localizada historicamente não porque os historiadores assim desejam, mas porque é justamente neste momento, que esse fenômeno se consolida e pode ser identificado mais claramente.

Neste período, o anarquismo se estabeleceu não somente na Europa ocidental, mas também na América no Norte, na América Latina e no norte da África. Suas principais fortalezas estavam nos seguintes países: Cuba, Egito, Espanha, Estados Unidos, França, Itália, México, Portugal, Suíça e Uruguai. Os trabalhadores organizados em suas associações operárias se contrapunham a uma burguesia também, cada vez mais organizada. Foi nesse universo que o termo anarquismo passa a fazer sentido e posteriormente passa a ser alvo do primeiro estudo acadêmico.[1] Segundo o pesquisador Benedict Anderson o anarquismo e o sindicalismo “foram o elemento dominante da esquerda radical internacionalista e autoconsciente” assim como o “principal veículo de oposição global ao capitalismo industrial, a autocracia, ao latifundiarismo e ao imperialismo”. Falar em anarquismo durante todos os primeiros anos da década de XX era falar de movimentos da classe trabalhadora urbana e minoritariamente, de movimentos camponeses, não de um estilo de vida pessoal de profissionais liberais. Falar em esquerda revolucionária, ao menos no período de tempo que vai do final do século XIX até a Primeira Guerra mundial era, segundo este historiador, falar de anarquismo, sindicalismo revolucionário e anarco-sindicalismo. Muito, portanto, do que consideramos uma linguagem de esquerda, nasce indissociavelmente ligada à uma prática concreta, cuja participação anarquista foi determinantemente decisiva e não marginal.

Uma mudança importante se dá com a organização da chamada II Internacional em 1890. Apesar do seu pluralismo doutrinal, esta internacional, já com os anarquistas excluídos de sua participação, institui a ação em partidos socialistas e operários que visam a ação parlamentar. O socialismo assim passa também a significar não apenas a luta pela igualdade e luta anticapitalista, mas também um conceito que envolvia para alguns, uma instância de disputa eleitoral e de pretensa representação de classe. A ação da II Internacional, portanto, traz uma disputa de significados dentro do socialismo.

Errico Malatesta, num artigo escrito em 1896 (e em subsequentes artigos) irá debater a confusão existente quando se emprega a palavra socialismo e anarquia como termos antagônicos. Segundo o anarquista italiano “socialismo e anarquia são termos que não são nem opostos nem equivalentes, mas estreitamente ligados um ao outro”. Entendendo-se como socialista, mas dentro deste campo, anarquista, Malatesta também reafirmará (distinguindo-se de outras variantes do socialismo), que “o socialismo de Estado parece-nos impossível” (MALATESTA, 2014, p. 50). O revolucionário italiano, portanto, não rejeita o anarquismo como parte constitutiva do socialismo (e portanto, da esquerda), mas decide disputar o conceito (o que horrorizaria alguns puristas), retomando os significados anteriores, constituídos pela ação sindicalista e anarquista dos anos precedentes.

Havia uma preocupação constante dos anarquistas em se distinguirem dos marxistas. Esta preocupação se aprofundará especialmente depois da Revolução Russa – em específico com os desdobramentos das perseguições bolcheviques aos anarquistas – quando os anarquistas passam a adotar um vocabulário mais prudente. Não é ocasional que os anarquistas passem a utilizar menos a palavra socialismo e comunismo, sempre com a preocupação de se diferenciarem do comunismo russo, o que implicou, em acrescentarem sempre o adjetivo libertário depois dos dois termos.

Durante o período de hegemonia do estalinismo no movimento operário e de caça às bruxas das democracias capitalistas, insufladas pelo anticomunismo e perseguições nos governos estalinistas, os anarquistas procuram revigorar sua ideologia do ponto de vista prático e teórico. Certamente rejeitaram a ditadura do proletariado e os autoritários governos estalinistas, mas não deixaram de afirmar seu próprio programa político e lutarem de acordo com o que a realidade lhe impunha.

Defendemos a hipótese de que aqueles que consideram o anarquismo como algo que não é nem de esquerda nem de direita precisam recorrer a uma visão profundamente superficial da história do anarquismo ou ignorar períodos cruciais para sua militância com o intuito de borrar a larga tradição classista do anarquismo. Segundo o pesquisador Lucien van der Walt, o “movimento certamente recuou a partir dos anos 40, mas continuou a ser relevante em muitos outros contextos, que incluíram a Bulgária e a Itália posteriores à Guerra” (WALT, 2017, p. 108). Os anarquistas participarão de sindicatos e oposições sindicais nos anos 40 e 50, em Cuba, Argentina, Brasil, Bolívia, Uruguai, França, Inglaterra etc. Em 1951 é refundada a Internacional Sindicalista (de 1922), com delegações operárias da Alemanha, Argentina, Áustria, Bulgária, Cuba, Dinamarca, Espanha, França, Inglaterra, Itália, Holanda, Noruega, Portugal, Suécia etc. (CORRÊA, 2012, pp. 234-235). A situação dos sindicatos certamente era diferente das anteriores. Mesmo com a burocratização, os anarquistas não se deixaram levar pelo sectarismo e atuaram onde e como puderam. Longe de purismos – cômodos para aqueles sem prática concreta ou candidatos ao título de shaolins libertários – fundaram uma tendência sindical com socialistas independentes em 1959 (no RJ e SP) e albergaram solidariamente emigrados de distintas concepções políticas durante a década de 40 e 50.

Menos significativa que a “onda” anterior, a quarta onda do anarquismo, longe de ter se deslocado para longe de um eixo classista é marcada pela participação anarquista em processos de luta armada, experiências guerrilheiras e/ou insurrecionais na Espanha, Uruguai, Argentina, Alemanha, Inglaterra, Itália, Grécia e França (CORRÊA, 2012, p. 235). Nesse período – em que pese dificuldades de acesso a todas as experiências históricas – ao que tudo indica, promoveram a violência revolucionária a partir de movimentos de massa e sindicatos estabelecidos.

O Maio de 1968 francês – erroneamente destacado como uma simples revolta estudantil, quando na verdade reuniu 10 milhões de assalariados em greve – e seus congêneres ao redor do mundo, foi de fato um acontecimento importante não só para o anarquismo, mas para a esquerda em geral. Trouxe um revigoramento das energias revolucionárias aprisionadas pelo estalinismo, assim como no plano teórico trouxe uma renovação importante (ainda que com alguns problemas).

Experiências sindicais de massa com intensa participação anarquista também são relevantes, como a Confederação Nacional do Trabalho (CNT) espanhola, que entre 1977 e 1978 teve 300 mil membros e sofreu diversas cisões à partir de então.

Apesar de todas essas experiências de massa e com raízes na classe trabalhadora, a mitologia entre um “velho” e “novo” anarquismo foi reforçada por diferentes intelectuais (e apropriada comodamente pelos que ansiavam por um anarquismo “light”), muitos destes oriundos das fileiras do Maio de 1968 francês e que ignoraram a presença classista e ativa dos anarquistas nos movimentos sociais e sindicais da década de 50 e 60. Parecia então, que o classismo anarquista e seu enraizamento nas lutas sindicais e de massa eram coisa do passado. A imagem dos anarquistas como guardiões da memória, meros editores de jornais ou faxineiros de biblioteca (ainda que todas essas coisas tenham sua importância) caía bem para aqueles que renegavam o aspecto essencial da história do anarquismo. A grande questão é que ela não era totalmente verdadeira, ao menos no período que se estende nas décadas de 40, 50 e 60. Para não cansar o leitor, citarei apenas duas experiências que contrariam essa imagem: a mais longa greve da história da Argentina, realizada em 1956, pela Federação dos Operários em Construção Naval (FOCN) – que durou 1 ano – e o anarquismo búlgaro em armas.

Parte dos intelectuais que surgiram no contexto do Maio de 68 ignoraram os movimentos de massa onde estiveram ativos os anarquistas e se concentram em determinados autores e intelectuais (alguns obscuros) para justificar uma ruptura entre um “velho” e um “novo” (ou pós) anarquismo. A escassez ou a dificuldade de difusão de trabalhos históricos sobre o anarquismo dos anos 40 a 70 contribuiu para aprofundar essa ideia de que era necessário abandonar qualquer perspectiva classista, já que supostamente, o anarquismo tinha se divorciado da luta de classes e isso não teria mais volta. A ignorância sobre a sua própria história, fez com que parte dos anarquistas cortasse voluntariamente, o fio condutor que os ligava a geração precedente. Tal procedimento causaria ainda mais problemas, pelo fato de que uma ação política efetiva necessita da reflexão histórica para poder apontar os limites e possibilidade dos processos políticos coletivos.

Parte II

O ataque neoliberal e o anarquismo: um “pós” anarquismo?

Em 1989 cai o Muro de Berlim, o que levou diferentes pesquisadores a questionar se o uso das categorias esquerda e direita ainda era útil para a compreensão da realidade. O livro do neoliberal Francis Fukuyama defendia muito comodamente o fim da ideologia e o “fim da história” com a universalização e a homogeneização do sistema econômico capitalista. Na prática, Fukuyama defendia uma velha tese da direita, a de que a sociedade não se transformaria radicalmente e que o capitalismo é o sistema econômico e social mais adequado. Fukuyama atacava assim a ideia de revolução e transformação social. Ele acreditava que a democracia orientada pelo mercado capitalista era o melhor modelo de sociedade, o liberalismo econômico seria o ápice da evolução da sociedade humana (KANAAN, 2005, p. 1).

Nos anos 80 também ocorre um processo de esvaziamento e incentivo planejado e premeditado ao desmantelamento do pensamento crítico de esquerda na Europa e em outros países,(ROCKHILL, 2017) somada a um processo de privatização e agressivas estratégias tatcherianas no Leste europeu (MAZOWER, p. 377) nos escombros do comunismo “real”. Some-se a isto, o fato de que nesse período, a “velha” esquerda parlamentar, saída dos escombros do Muro de Berlim e acossada pelo pragmatismo do eurocomunismo aderia sem pestanejar a democracia burguesa e seu projeto de conciliação de classes. Limitou-se a propor uma gestão humanizada do revigorado sistema de dominação capitalista. O fim da polarização da guerra fria também trazia a ideia burguesa de que a discussão sobre classe social (longamente hegemonizada pelo estalinismo) era algo do “passado”. O anarquismo encontrou nesse período grandes dificuldades. Em alguns países se restringiu aos pequenos círculos militantes e em outros precisou se reconstruir totalmente, ressurgindo do escombro de ditaduras militares e perseguições políticas sem referências anteriores muito claras. Em muitos países, a transmissão dessa rica história classista tornava-se prejudicada pela perda do fio histórico que ligava as gerações (com algumas exceções) e a falta de um espaço de lutas propício para a transmissão de seus significados, o que fazia com que muitos anarquistas tivessem de entender o anarquismo quase que “do zero”.

Temos o ambiente perfeito para a adesão irrestrita de um pequeno (mas barulhento) setor anarquista às teses de que o anarquismo deveria romper definitivamente com seu passado classista. Some-se a isto – apesar de nunca terem sido hegemônicos – a presença individualista na periferia do universo intelectual anarquista dentro de um mundo marcadamente neoliberal e que produzia massivamente uma ideologia que apregoava o culto a um indivíduo supostamente descolado das estruturas sociais e responsável por si próprio.

O comunismo teve o eurocomunismo como seu desvio ideológico de irremediável integração ao sistema capitalista e as normas burguesas, que caía no pragmatismo da gestão “humanizada” do capitalismo, já o anarquismo teve o “pós-anarquismo” ou “anarquismo de estilo de vida” como remédio para aplacar aqueles que consideravam a revolução e a organização em movimentos populares como algo fora de moda. Parte das poucas editoras que abriam espaço ao anarquismo, aproveitavam esse clima e editavam algumas coisas que seguiam essa linha.

O primeiro texto que caracteriza esse espírito da época foi escrito pelo obscuro individualista Hakim Bey em 1985 (na Inglaterra) sob o título Zona Autônoma Temporária (TAZ), editado pela primeira vez no Brasil em 1995 e que tirando a autoidentificação enquanto anarquista, pouco possuía de relação com as ideias libertárias. Não pretendemos fazer uma crítica extensa do livro aqui, cremos que isso foi feito com maior qualidade e profundidade por Murray Bookchin – aqui no Brasil, editado com o título Anarquismo, crítica e auto-crítica – que dispensa apresentações. Escolhemos esse texto pela sua capacidade de influência e disseminação de um apoliticismo fantasiado de teses libertárias. Ainda que Bey afirme que a TAZ é “quase autoexplicativa” (Bey, s/d, p. 3) e de que esta “não é um fim em si mesmo, substituindo outras formas de organização, táticas e objetivos” (Bey, s/d, p. 31), o fato é que o efeito da incorporação da TAZ (por alguns setores do anarquismo) era o de negar as formas históricas de organização anteriores (muitas das quais desconheciam ou associavam erroneamente ao bolchevismo). Na história do anarquismo – se levamos em conta seus 150 anos – dificilmente encontraremos uma postura significativa historicamente que reivindique o pacifismo (Tolstoi teve pouca ou nenhuma relevância concreta no anarquismo) ou pior, que tenha abandonado a ideia de revolução. No entanto, para Hakim Bey “uma postura realista exige não que desistamos de esperar a ‘Revolução’, mas também que desistamos de desejá-la.” Tal slogan caberia sem problemas numa propaganda comercial, mas era difundida por um rebelde sem qualquer projeto político consequente. Para este “na maioria dos casos a tática mais radical será a recusa de participar da violência espetacular, retirar-se da área da simulação, desaparecer” (Bey, s/d, pp.6-7.) Quem admitiria ser possível, enquanto militante inserido nas lutas populares simplesmente “optar” por fugir do enfrentamento com a ordem vigente? A história da anarquista estado-unidense Lucy Parsons, presa três vezes somente nos desdobramentos dos acontecimentos de Haymarket demonstra que essa “opção” não está posta aos que se envolvem na luta revolucionária quando o sistema deseja lhes atingir.

Centenas de respostas a esse absurdo poderiam ser fornecidas usando a larga tradição anarquista (ou a história de vida de centenas de militantes), mas me restringirei a uma frase clássica do “sisudo” e nada divertido Mikhail Bakunin que ao contrário da ideia de “retirar-se” do enfrentamento aponta a necessidade de constituir uma força real, que possa enfrentar a burguesia e o Estado.

É verdade que há [no povo] uma grande força elementar, uma força sem dúvida nenhuma superior à do governo e à das classes dirigentes tomadas em conjunto; mas sem organização uma força elementar não é uma força real. É nesta incontestável vantagem da força organizada sobre a força elementar do povo que se baseia a força do Estado. Por isso o problema não é saber se o povo pode se sublevar, mas se é capaz de construir uma organização que lhe dê os meios de se chegar a um fim vitorioso – não por uma vitória fortuita, mas por um triunfo prolongado e derradeiro. (Bakunin, Maximoff, 367, 70).

Em “Post-anarchist anarchy”, Hakim Bey ao avaliar os limites da base social do anarquismo (a avaliação destes limites em si é correta, sua proposta não) acredita que a solução para isso seria pinçar a luta de onde ela foi derrubada pelo situacionismo em 68 e o autonomismo nos anos 70 e levá-la a um novo patamar. Nenhuma palavra sobre os comitês de fábrica de 1968, nenhuma palavra sobre a organização operária, que dirá das diversas organizações anarquistas que se espalham no mundo, especialmente depois da Segunda Guerra Mundial. O passado de uma rica história de lutas parecia apenas um “antiquário” a ser superado pelo “novo”.

Reiterando velhos estereótipos sobre o anarquismo (como por exemplo, uma ideologia supostamente anti-política), Bey propunha um “programa” de nove pontos, que de maneira muito resumida consistiam em “participação imaginativa em outras culturas”, “abandono da pureza ideológica”, adesão ao “anti-trabalho”, “pornografia e entretenimento como veículos de uma reeducação, criação de uma música “nova e insana”, necessidade de um “anarquismo místico e democratização do xamanismo”, “glorificação literal dos sentidos”, abandono do “esquerdismo” e adesão ao “terrorismo poético” e por fim, uma “cartografia da autonomia”. Hakim Bey assim, incidiu naquele momento no mesmo erro que levou muitos socialistas desiludidos à engrossarem as fileiras da direita: ao invés revigorarem determinados pontos de sua ideologia, passam a negar seus aspectos centrais com uma suposta “renovação teórica” (que não só desconhece a teoria anterior, mas a renega completamente).

Apesar de Hakim Bey não ter nenhuma expressão social, suas ideias encontraram terreno fértil no já desgastado e com restrita base social anarquismo estado-unidense (no Brasil suas ideias chegaram 10 anos mais tarde).

Parecia a esses anarquistas que o classismo era apenas uma coisa obsoleta de que os anarquistas teriam de se livrar para serem verdadeiramente anarquistas (quando historicamente foi justamente o contrário). A ponto, de em 1995 o anarquista Murray Bookchin ter constatado que no caso do anarquismo norte-americano daquele período “os objetivos sociais e revolucionários do anarquismo vêm sofrendo um amplo desgaste, a ponto de a palavra anarquia estar se tornando parte do elegante vocabulário burguês do século XXI – desobediente, rebelde […] mas […] inofensivo.” (BOOKCHIN, 2011, p. 48).

Um exemplo desse desgaste se dá com a transformação no significado de algumas palavras-chaves da tradição anarquista em determinados círculos individualistas, grupos de afinidade ou anti-organizacionistas. Autogestão, por exemplo, palavra surgida no calor dos anos 60, significava fundamentalmente, trabalhadores de uma fábrica controlando coletivamente esse espaço de produção. Ação direta sempre significou a ação coletiva, sindical e de classe de trabalhadores, sem acreditarem na democracia burguesa. O boicote, outra arma histórica (do início do século XX) significava originalmente uma ação de classe contra determinados patrões. A autonomia significava as regras construídas coletivamente pelos operários dentro de um sindicato, uma organização anarquista ou simplesmente, a maneira que os trabalhadores tinham para dizer que eles próprios, gostariam de estabelecer suas próprias regras. Sob o império do efêmero e da privatização do indivíduo, típico da onda neoliberal e sua contrapartida espuma teórica evasiva, autogestão significaria apenas o “faça você mesmo” (restrito sempre ao indivíduo ou ao grupo de amigos), o boicote, uma opção individual e a autonomia uma desculpa para não se submeter a nenhuma disciplina coletiva (“faz o que tu queres, pois é tudo da lei”).

O terreno dos significados estava preparado para a adoção da cereja em cima do bolo pelos individualistas: a de que o anarquismo não é nem de esquerda nem de direita ou de que o anarquismo é contra qualquer tipo de política (explicaremos isso mais adiante). Para afirmar esse mito – como vimos – é preciso negar 150 anos de uma tradição de luta organizada no campo e na cidade e obscurecer um tronco histórico claramente socialista. Um socialismo anticapitalista e antiestatista, mas um socialismo, do tipo libertário. Que no terreno real enfrentou seus adversários com honradez e combateu seus inimigos de classe sem trégua. Este foi o caso da Federação Anarquista Uruguaia, organização fundada em 1956 e que passou por uma ditadura constitucional e foi posta na ilegalidade em 1967. A FAU enfrentou a ditadura militar de 1973 e conseguiu durante o período de sua atuação, organizar um aparato armado (OPR-33) responsável por expropriações e ação direta avançada. Organizou uma tendência política que reunia milhares de integrantes e foi uma das fundadoras da primeira central sindical no Uruguai.

Cabe dizer, que na metade dos anos 90, essa tradição anarquista (classista), intitulada à época de especifismo anarquista, chegou ao Brasil, constituindo-se num longo processo de organização que à época teve de se confrontar com algumas ideias difundidas por autores fora da tradição classista do anarquismo.

Anarquismo nem direita nem esquerda?

Tentamos demonstrar nos parágrafos anteriores, como o anarquismo possui uma história determinada e que os argumentos a favor da tese de que o anarquismo não é nem de esquerda nem direita têm de recorrer a contorcionismos que ignoram quase toda a história desta tradição política.

Acreditamos que sem dúvida alguma, as sociedades contemporâneas são obviamente mais complexas que as precedentes, questões fundamentais ainda permanecem atuando e determinando a estrutura social (exploração de classe, opressões raciais/étnicas, de gênero etc.) e que a incorporação de ferramentas teóricas e analíticas diversas pode contribuir enormemente na análise social. Contudo, a topologia esquerda e direita, em nossa opinião, não deve ser abandonada, mas sim (tal como uma bússola) atualizada e enriquecida com outros elementos, tornando as coordenadas (e seu instrumento) mais complexas e precisas (como, por exemplo, debater o que distingue uma esquerda revolucionária da esquerda reformista). A incorporação de novos conceitos ou a mudança no significado determinados conceitos também faz parte deste processo. Os conceitos não possuem significados “escritos na pedra”. Apesar de termos feito toda uma digressão histórica para confrontar tal ideia absurda de “nem esquerda nem direita”, precisamos refletir sobre qual é a importância de alguns afirmarem que na Revolução Francesa, a díade “esquerda” e “direita” significava a “conquista do Estado”? Será então que não podemos usar mais esse termo porque supostamente o “pecado original” foi cometido? Não devíamos nos preocupar, com o que este termo significa hoje?

A incorporação de novos termos, conceitos e ferramentas faz parte de qualquer ideologia preocupada em se adaptar ao seu tempo e realidade. E sempre haverá conceitos compartilhados ou em disputa, porque a esfera política é o lugar da disputa por excelência.

Como apontado por diferentes pesquisadores a ênfase na questão de classe pode ser observada ao longo dos 150 anos do anarquismo, mas isto não significou um foco restrito na economia e nem um economicismo. Os anarquistas (com raras exceções) nunca foram “obreiristas”, concedendo ao operário industrial alguma espécie de privilégio enquanto sujeito revolucionário. O anarquismo tentou, com os limites de cada contexto (e das suas abordagens), levar a sério os problemas específicos enfrentados por trabalhadores e trabalhadoras, como a opressão de nacionalidade, raça e gênero. Ainda que, obviamente ninguém enquanto revolucionário/a possa afirmar que esses problemas foram suficientemente resolvidos pelo anarquismo na história e que não há mais nada por se debater.

Outro argumento para afirmar que o anarquismo não é nem de esquerda e nem de direita se sustenta na ideia de que o anarquismo é contra o poder e a política, e que isso bastaria para afirmar que é uma corrente política distinta de todas as outras porque nega a tomada do Estado. E como todos os grupos políticos de esquerda e direita buscariam o poder e deste modo, exercendo uma política específica para conquistar esse poder, o anarquismo estaria fora desse espectro. Como bem apontado por Felipe Corrêa, no artigo Poder e Anarquismo, “se o poder for conceituado em termos de dominação e/ou Estado, obviamente se pode dizer que os anarquistas foram e são historicamente contra o poder”. Para Corrêa, a “maioria dos clássicos anarquistas dava ao conceito de poder um conteúdo restrito de Estado e/ou dominação; por isso se diziam contrários a ele”. Em resumo, quando os anarquistas “afirmaram ser contra o poder, eles utilizavam o “termo” ‘poder’, para se referir, de fato, a um ‘certo tipo de relação de poder’ que é a dominação (gênero, raça, étnico-nacionais) e a exploração/dominação de classe (capitalismo) (CORRÊA, 2014). Baseando-se no anarquista Tomás Ibáñez, Corrêa sistematizará três abordagens sobre poder: 1) poder como capacidade, 2) poder como assimetria das relações de força, 3) poder como estruturas e mecanismos de regulação e controle. Corrêa afirma que levando em conta essas três abordagens, existe uma concepção libertária sobre o poder, que em nossa visão, objetiva dar capacidade a classe trabalhadora enquanto agente de mudanças sociais profundas, interferir na relação assimétrica de forças da atual sociedade e por fim, estabelecer novas estruturas e mecanismos de regulação (na sociedade de agora e na de amanhã).

O anarquista espanhol Julián Vadillo Múñoz (apud ZARCONE, 2015) afirmará com grande precisão que o anarquismo rejeita a política apenas no caso de se entender o termo política como “conquista do Estado”, mas que isso não significa que o anarquismo rejeite qualquer forma de ação política. Quando os anarquistas no início do século XX diziam que eram “contra a política” ou “apolíticos” referiam-se contextualmente, a política eleitoral dos partidos, não qualquer forma de política, pois esses mesmos anarquistas desenvolveram formas de ação política em sindicatos durante todo o período histórico aqui compreendido. A “política dos anarquistas não se esgota na luta contra as instituições existentes. […] Ela também inclui a luta pela construção de outro tipo de sociedade.” (ZARCONE, 2005), coisa que foi feita na prática em pelo menos quatro episódios históricos: a Revolução Mexicana (1911), a Revolução Ucraniana (1921), a Revolução na Manchúria (1929), a Revolução Espanhola (1936). Para horror dos anti-organizacionistas, as revoluções não são como role-playing games (RPG’s), onde se pode fantasiar o cenário perfeito (como nos fóruns de internet, por exemplo) e manter-se distante da “praga do poder”. Em eventos concretos, o anarquismo tem de lidar com ações concretas e ver como a sociedade tem de organizar a vida, como diminuir ou eliminar as assimetrias de poder e como constituir-se em força social relevante. Eleger comandantes militares (como Nestor Makhno e Kim Jwa-Jin, controlados pela base, mas comandantes), justiçar criminosos de guerra, manter uma fábrica funcionando, ajudar a organizar uma greve e principalmente (era essa a maior preocupação de Kropotkin) saber como farão para garantir pão, terra e liberdade para milhares ou milhões de trabalhadores foram uma das preocupações daqueles e daquelas que tiveram uma visão clara sobre a política e o poder.

As expressões históricas do anarquismo não ocorreram como um levante espontâneo das massas e sim, foram fruto de um trabalho em entidades de massa com um programa político e popular que atendia suas necessidades.

A ideia de que o anarquismo é um sentimento anti-autoritário inscrito no tempo também ignora os complexos modelos políticos que anarquistas criaram ao longo do tempo e as inúmeras formas organizativas construídas pelos anarquistas. A ideia de que o anarquismo é apenas uma luta contra a autoridade parece ser mais ampla e generosa enquanto conceito e supostamente abrigaria mais diversidade ao anarquismo. Mas sua excessiva frouxidão e a-historicidade causam justamente o efeito contrário: dá destaque a figuras obscuras como Stirner, Godwin, Tolstói e até Lao-Tse, projetando qualquer intelectual que jamais tenha ajudado a organizar trabalhadores e ignora centenas de trabalhadores que forjaram materialmente a ideologia anarquista. Esse conceito ignora ou coloca em segundo plano os verdadeiros artífices da bandeira vermelha e negra do anarquismo: trabalhadoras e trabalhadores anônimas/os que contribuíram muito além de textos intelectuais ou panfletários, mas sofreram em carne e osso as consequências de sua oposição ao Estado e ao capitalismo.

Tal é a substância do anarquismo. Sua raiz de esquerda anticapitalista, antiestatista e libertária e que ajudou a promover processos revolucionários políticos e sociais de incidência global. É este anarquismo, que segue como uma tradição política viva, envolvendo militantes no campo e na cidade [2] e que consequentemente rejeitam ou rejeitarão a tese absurda de que o anarquismo não é nem de direita nem de esquerda.

Certamente, todos/as aqueles/as que desejam transformar a realidade radicalmente e dedicar tempo e energias para isso, jamais cairão neste engodo de considerar tal ideologia, como algo que não está localizado em lugar nenhum

Referências

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ZARCONE, Pier F. “Anarquistas e Política”. In: Anarkismo.net, 2005. Disponível em <http://www.anarkismo.net/article/1071>

[1] Segundo Corrêa (2012) o primeiro estudo acadêmico sobre o anarquismo foi realizado por Paul Eltzbacher, em 1900.

[2] Um exemplo de organização política anarquista (programática) que resgata esses valores históricos do anarquismo e possui uma estratégia política e transformação de longo prazo é a Coordenação Anarquista Brasileira (CAB), presente em 12 estados do Brasil e organizada por frentes de luta social.