Rodrigo Barchi
As ecologias políticas e infernais do Red and Anarchist Black Metal
As ecologias políticas e infernais do Red and Anarchist Black Metal
A presença das ecologias nas origens da música extrema
O Black Metal e a Cascadia: ecologias satânicas
As ecologias políticas e infernais do Red and Anarchist Black Metal
Rodrigo Barchi [1]
Para citar esse artigo utilize o artigo original publicado na Revista ClimaCom:
BARCHI, Rodrigo. As ecologias políticas e infernais do Red and Anarchist Black Metal. ClimaCom – Ecologias Radicais [Online], Campinas, ano 5, n. 11, abr. 2018. Disponível em: http://climacom.mudancasclimaticas.net.br/as-ecologias-politicas-e-infernais-do-red-and-anarchist-black-metal-2/
Expecting half with nothing to find
Like a lighthouse, a wild nothing moved to an empty place
Tended embers of life fires, envelop, something wide and moral
It takes and leaves, flicker, heavy, growing, leeched
(God Alone – do conjunto RABM Altar of Plagues)
“This forest is my home”, she said quietly, /”I feel best when I’m among trees.
Open country seems alien to me. Our chimp ancestors had the right idea.
Among trees you’re safe, you can be free”. This with a mysterious smile.
(Ecotopia – Ernest Callenbach)
Os ruídos das ecologias
Há várias ecologias que gritam. Em seus berros, elas rompem, recusam, indisciplinam, fluem, invertem, anarquizam e infernam… São ecologias, pois apesar de seus discursos monstruosos, anormais, caóticos e insubordinados, elas lutam para se manter vivas, para dinamizar sua constante produção dos dissensos, dos múltiplos, das legiões diabólicas que desprezam as univocidades e homogeneizações dos sentidos da vida. Brigam e vociferam em suas potências e vitalidades que são constantemente assediadas e ameaçadas pelos agentes das utopias castradoras das possibilidades férteis e desviantes no pensamento.
Se para a criação do pensamento é preciso perverter/inverter/reverter o ideal ascético do platonismo ocidental (DELEUZE, 2006a; 2006b) e as especificidades hierarquizantes e excludentes das profundidades disciplinares, potencializar a ecologia como criadora de novas relações vitais exige perverte-la (BARCHI, 2016). E ao extremo. A ecologia como maquiagem da destruição, auxiliar das predações desenfreadas e genocidas das cosmovisões não padronizáveis, é uma ecologia de morte e, portanto, refuta a si própria. Submetê-la aos “bons modos” das sociedades contemporâneas – negativamente autofágicas – e condicioná-la aos horrores dos micro e macrofascismos ascendentes é destituí-la de tudo aquilo que a tornou, um dia, uma rebelde revolucionária no pensamento.
Como romper com a lógica das ecologias higienistas, puristas e pastorais, cujo salvacionismo repete os equívocos de escolher entre os bons e os maus, de hierarquizar saberes, de divinizar certas práticas “ecologicamente corretas”, que na verdade não fazem quase que diferença nenhuma perante o holocausto, passado, presente e porvir?
Este texto busca, junto aos conjuntos de um estilo que é conhecido como Red and Anarchist Black Metal, discutir a possibilidade de se pensar em ecologias infernais. Diabólicas no sentido de perverter o pensamento, de dividir as alianças niilistas entre céu e terra, e anarquizar as ordens restritivas dos pseudo paraísos transcendentais. O texto aborda alguns indícios da presença da ecologia na música extrema, mais especificamente o a música Metal dos anos 80. Apresenta também as origens do estilo Black Metal, e sua dissidência cascadiana, para depois abordar os discursos e perspectivas ecológicas dessa vertente.
A presença das ecologias nas origens da música extrema
O diabo se transformou em uma figura evidente da resistência infernal a partir dos anos 1980, de maneira veemente e amplamente difundida pelo globo na (anti)música e no visual das bandas de heavy metal e suas vertentes mais brutais, a partir dos anos oitenta. Apesar de bandas como Black Sabbath, Judas Priest e Led Zepellin, nos anos 1970, constantemente flertarem com a temática satânica em algumas letras, o diabo se tornou explícito e aberto com primeiro disco da banda britânica Venom, intitulado Welcome to Hell, lançado em dezembro de 1981. Influenciado pelas três bandas citadas, mais o Motorhead, o Venom resolveu fazer um heavy metal ainda mais pesado, sujo, direto, rápido e cru. E, ao contrário das bandas dos anos 70, eles explicitaram e evocaram a abertura dos portais do inferno.
Os títulos das músicas são, mais do que sugestivos, diretos e explícitos: Sons of Satan, Welcome to Hell, In League with Satan, Angel Dust e One Thousand Days in Sodom. A capa, com a cabeça de bode integrada ao pentagrama invertido, combinava o orgulho do pertencimento às hordas de demônios e bruxas que saiam do inferno à meia-noite para roubar a alma das crianças e a paz das pessoas, com a resistência à civilização cristã ocidental e suas práticas condutoras que visava à salvação do fogo do inferno, a perdição.
Se, nos anos 1970 o diabo somente aparecia em momentos sugestivos, na calada da noite, para falar ao ouvido dos tentados, a escancarada dada pelo Venom possibilitou que uma onda de bandas que apareceu nos anos 1980 se comparasse justamente às guerrilhas bestiais e monstruosas que viriam a horrorizar, de certa forma, as sociedades dos países capitalistas ocidentais, já que o movimento, apesar de ter aparecido pontualmente nos países europeus e na América do Norte, se espalhou rapidamente pelo mundo, sendo que em países como o Brasil, o apelo e a popularização do metal ocorreram também em meados dos anos 1980.
Pela velocidade, afinação e peso das cordas e da bateria, e pelo descompromisso com a harmonização vocal – fugindo dos agudos ora afinados, ora gritados promovidos por vocalistas como Rob Halford do Judas Priest, de Ozzy Osbourne do Black Sabbath, de Ian Gillan, do Deep Purple, e de Robert Plant do Led Zepellin – o álbum Welcome to Hell, do Venom, é considerado como um dos precursores do thrash Metal. E pela temática satanista, é considerado como o álbum pai do estilo Black Metal.
Algumas semanas depois, em março de 1982, outra banda britânica, o Iron Maiden, lançaria um de seus discos mais clássicos e populares, chamado sugestivamente The Number of the Beast, o qual marcou da estreia do aclamado vocalista Paul Bruce Dickinson, grande conhecedor de história, além de ser esgrimista e piloto de avião, e considerado como um dos maiores nomes do Metal mundial. Esse álbum – o terceiro da banda – também foi marcado pela grande polêmica que envolveu a imagem de sua icônica capa, que traz a “mascote” da banda, Eddie, manipulando um grande diabo vermelho como se fosse uma marionete, que por sua vez, manipulava da mesma forma uma série de pessoas que queimavam em chamas, na parte de baixo da capa em um sugestivo cenário apocalíptico.
No mesmo ano, outro expoente do Metal com temáticas satânicas lançaria seu primeiro álbum, que foi o EP Nuns Haves no Fun, do grupo dinamarquês Mercyful Fate. A banda tinha como principal nome o vocalista Kim Bendix Petersen, mais conhecido como King Diamond, que se destaca tanto por seu virtuoso vocal – que oscila desde tons mais agudos, até tons mais graves, além das teatralizações durante as músicas – quanto por sua maquiagem em palco e nas fotos de divulgação, a qual no começo de carreira trazia os olhos contornados por asas de morcego e um grande crucifixo invertido na testa, além da capa vampiresca e roupas pretas carregadas com correntes cheias de crucifixos invertidos, pentagramas e do símbolo do enxofre. Maquiagem inspirada em outro artista dos anos 1970, o cantor Alice Cooper, que promovia também uma grande teatralização em seus shows e vídeos.
O Mercyful Fate se transformaria em outra grande influência para o Black Metal, tanto devido à temática satânica das letras, das capas e do próprio visual emblemático do vocalista – a capa trazia uma moça seminua, crucificada, com um pentagrama na parte de cima da cruz, sobre a cabeça da moça, pegando fogo na parte de baixo, e cercada por pessoas encapuzadas, cujo rosto está parcialmente encoberto, em uma alusão ao que foi popularizado como um ritual satânico, permeado de sacrifícios, blasfêmias e sangue.
Por sua vez, apesar da capa e da aparência monstruosa do seu mascote, Eddie, o Iron Maiden sempre negou o fato de ser uma banda satânica, apesar da própria letra da música The Number of the Beast, a qual, de acordo com o baixista e principal letrista da banda, Steve Harris foi inspirada em um sonho e no filme “A Profecia 2”.
O Iron Maiden acabou por se tornar o principal nome de um movimento chamado New Wave of British Heavy Metal (Nova Onda do Heavy Metal Britânico), surgido no começo dos anos 80, e que contava com dezenas de bandas. Os principais conjuntos foram o Def Leppard, o Saxon, e o próprio Venom.
As letras do Iron Maiden abordam uma grande diversidade de temáticas, explorando contos de terror, egiptologia, a ficção científica e a literatura fantástica. Mas, duas canções do Iron Maiden merecem destaque e a atenção nessa tese. A primeira delas, nesse mesmo álbum, trazia à tona a questão da ocupação europeia nos Estados Unidos, cuja inspiração estava no Destino Manifesto, da década de 1840. Promovendo a extinção da esmagadora maioria dos povos ameríndios na América do Norte. Era necessário esmagar o selvagem para que o destino prometido aos Estados Unidos fosse cumprido. A canção Run to the Hills (“Corra para as colinas”), que se tornaria um clássico da banda, começa com a narrativa na perspectiva do nativo:
White man came across the sea
He brought us pain and misery
He killed our tribes, he killed our creed
He took our game for his own need[2] (IRON MAIDEN, 1982)
Ao gritar sob a perspectiva do índio, denunciando o massacre, o genocídio, a invasão e o apagamento da diferença, o diabo se revolta contra a civilização, contra a civilização ocidental, contra a lógica da expansão predatória, da pilhagem e da imposição de uma cultura universal. Ao assumir o discurso do nativo e inverter a fala, tomando para si a indignação daqueles que não podiam mais falar, pois haviam se tornado fantasmas, o diabo, no som do Iron Maiden clamava a resistência contra aqueles que haviam promovido o apagamento, a mudança brutal na vida e no espaço que por tanto tempo providenciou tudo o que era necessário à sua existência:
We fought him har, we fought him well
Out the plains we give in hell[3] (IRON MAIDEN, 1982)
Os brancos não viriam tomar as terras sem que os nativos, em sua brutal resistência, lhe mostrassem o inferno, a luta e as planícies do terror, antes que só sobrasse a possibilidade de fuga e de escape, em que os únicos lugares para onde se podia correr eram para as colinas, como diria o refrão Run to the hills, run for your lives.
O diabo da lamentação, o diabo do desespero, mas um diabo que nesse último momento permitiu-se ainda, em um último suspiro, criar vida. Ao expor o branco, homem, macho, europeu, cristão, como o escravizador, explorador, destruidor, o Iron Maiden propunha, além de uma inversão de perspectivas sobre o processo de ocupação dos EUA, uma perversão da própria noção do diabo. O diabo não como o interlocutor do indígena transformado em fantasma, nem do oprimido, nem do retorno à vida primitiva como ideal ecológico moral a ser alcançado, mas o diabo que, ao se solidarizar com o indígena, mostra-se como o headbanger que é assolado por um poder maior, moral e condutor, e que precisaria resistir a esse assédio.
Os cabelos compridos, como os dos próprios índios cree sugeridos na canção, a roupa preta com as imagens monstruosas e demoníacas nas camisas e jaquetas, os braceletes com rebites e pregos, o caminhar na noite, o urro, o grito, a roda. Contra a organização, o progresso, a hierarquização, o contingenciamento e um padrão de beleza, surgiam o caos da roda e do chacoalhar de cabeças, o berro, a desafinação, o som destoante das guitarras e a violência da bateria, ou seja, uma série de rituais “desritualizados”, que impediriam ao projeto normalizante e condutor de se estabelecer único.
Devir-nativo no diabo, devir-diabo na ecologia, devir educação na transformação que o Metal sugere nos processos formativos dos indivíduos. Ao mostrar a tragédia ameríndia sob a perspectiva dos nativos, tendo como porta voz o Heavy Metal, o Iron Maiden possibilitou um diálogo sobre os processos de ocupação da América sob outra ótica além daquela privilegiada nos livros escolares e pelo professorado responsável pela perpetuação da temática civilizatória.
Apesar de o Iron Maiden e o Metal serem muito mais aceitos e compreendidos pelas esferas midiáticas e pelas sociedades globais atualmente, sua aparição foi uma eclosão de monstruosidades que tinham uma fala própria, um discurso próprio, e pessoas que entendiam sua linguagem e sua dinâmica que promoviam uma autonomia ao Metal, responsável inclusive, pela formação das novas gerações de headbangers e bandas que viriam nos anos seguintes.
Metal como a política de Rancière (1996), que explicita um discurso completamente incompreensível para a comunidade que o cerca. Política que, em diversas situações, se manteve entre a deriva e o equilíbrio, excluída das convenções culturais, musicais, sociais e políticas, devido à própria sonoridade, ao discurso não-assimilável e ácido, às imagens nas capas e ao visual grotesco de integrantes de bandas.
A forma de experimentar essa ecologia, misturada ao metal e à música extrema, fez com que os headbangers pudessem experimentá-la não somente ao cantar Run to the hills, e conhecer naquele momento de contato, a tragédia do encontro dos ameríndios com os europeus, mas sentir e vivenciar essa ecologia sob o som de duas guitarras, baixo, bateria e vocal, altos, distorcidos, graves e agudos ao mesmo tempo.
Ecologia como barulho, ecologia como chacoalhar de cabeças e dançar em roda. Ecologia em um levantar de braços ostentando os chifres do diabo. Experimentação que, apesar de estar definida previamente em um tempo de show, em uma duração de música, fazia com que os cabeludos e cabeludas se experimentassem como anormalidades, monstruosidades, intensidades, indisciplinas, políticas, resistências, música menor, educação menor, ecologia menor. Ato de resistência contra e/ou perante suas famílias, escolas, comunidades, sociedades, igrejas e locais de trabalho.
Ao se espalhar como uma neblina, enxame, pandemia ou praga, o Metal também espalharia o medo, principalmente nos anos 1980, já que levaria toda uma geração a recusar e blasfemar todas as referências sobre convivência, harmonia, salvação e aceitação sobre as verdades que lhes eram sugeridas. E mais do que pedir um mundo pacífico e idílico, como sugeriam as manifestações dos anos 1960, os headbangers queriam somente se livrar das amarras daquela moralidade policialesca e normativa sobre suas aparências, perspectivas de vida e sociabilidade.
Não à toa, bandas como Venom e Mercyful Fate foram perseguidas e tiveram problemas com a Parents Music Resource Center (PMRC), que era uma comissão fundada por Tipper Gore, esposa do ex-senador e ex-vice-presidente dos EUA Al Gore, conhecido também por suas iniciativas de combate ao aquecimento global, tendo recebido prêmios como o Oscar (pelo documentário “Uma verdade inconveniente”) e o Nobel da Paz.
Essa comissão formada por esposas de importantes políticos estadunidenses buscou combater qualquer manifestação relativa à sexualidade, violência, álcool, drogas e ocultismo na música que entrava nos Estados Unidos. Diversos músicos e conjuntos dos mais diversos estilos musicais – e não-musicais – tiveram seus álbuns, senão proibidos, mas rotulados com o “Adesivo Tipper”, conhecido por estampar os dizeres Parental Adivisory: Explicit Lyrics.
Houve também uma lista de 15 músicas, conhecidas como “As mais imundas”, as quais envolviam desde músicos pop, como Prince, Cindy Lauper e Madonna, passando por bandas rock e metal mais populares, como Judas Priest, Black Sabbath, Motley Crue, WASP e Twisted Sister. Nessa lista se encontravam também Venom e Mercyful Fate, sendo as duas as únicas acusadas de ocultismo/satanismo.
A onda de conservadorismo nos EUA, que se espalharia por alguns outros países europeus (CHRISTE, 2010), prejudicou, em um primeiro momento, a venda dos discos das bandas e artistas envolvidos, já que muitas lojas se recusavam a vender ou escondiam o material que havia sido difamado pela PMRC. Por sua vez, e ao mesmo tempo, permitiu ainda mais sua popularidade, visto que sua exposição quase que diária nas TVs, rádios e mídia impressa fez com que um número maior de pessoas simpatizasse com aquele movimento promovido pelos conjuntos, suas temáticas, capas, indignações e negações do instituído como normal, sincrônico, saudável e equilibrado.
Enquanto isso, o metal se expandia, se acelerava e ficava mais pesado. O próprio Venom, hoje, pode ser considerado como o principal responsável por essa rapidez e peso que o metal viria a ganhar nos anos 1980 e 1990.
O Black Metal e a Cascadia: ecologias satânicas
O Black Metal é uma das vertentes do Heavy Metal que, junto ao Thrash Metal e o Death Metal, mais se tornou extrema. Apesar de ter como uma de suas principais inspirações o conjunto britânico Venom, o Black Metal tornou-se amplamente popular em países escandinavos, especialmente a Noruega. A violência sonora e literária (extremamente anticristã e profana) é a marca registrada destes conjuntos, e tornou-se notória após os incêndios à centenas de igrejas promovidos pelos integrantes e admiradores das bandas, no começo dos anos 90. A longa citação de Christe é necessária para caracterizar melhor o Black Metal, especialmente em sua vertente européia:
Formada em 1991, das cinzas da banda de Death Metal Thou Shalt Suffer, o Emperor verdadeiramente percebeu a ambição artística do Black Metal, reagrupando diferentes desdobramentos em um intenso estilo guiado pela atmosfera. Com sua proximidade à Alemanha, era apenas natural a adoção dos métodos melódicos de bandas clássicas do Speed Metal alemão – como Destruction e Kreator – apesar de o Black Metal ter dobrado todas as notas para aumentar a sensação de velocidade. O Emperor e outros também incluíam teclado e experimentavam outro aliado natural, o rock gótico, em especial, Kate Bush e o sombrio Sisters of Mercy. Como um resultado direto, o Black Metal abria espaço para garotas que estavam encurraladas à periferia Death Metal cheia de músculos. Ao criarem atmosferas bizarras, essas bandas também voltaram à magia teatral do Heavy Metal, só que violentamente. Assim como seus predecessores do Venon e do Hellhammer, os Black metals adotavam apelidos para substituírem seus nomes de batismo. Muitos usavam capas e maquiagem branca e preta, no estilo de King Diamond, do Mercyful Fate – uma grande mudança em comparação ao momento anti-imagem do Thrash e do Death Metal, quando bandas como Exodus e Cannibal Corpse se apresentavam usando calças de moleton. A fim de se prepararem melhor para sua jornada pelo desconhecido, Mayhem, Emperor, Immortal e Dark Throne posavam para fotos segurando tochas, punhais de aparência cruel, machados e instrumentos de tortura. (CHRISTE, 2010, p. 346–347)
Há algumas vertentes do Black Metal que seguem uma linha mais folclórica escandinava, outras que se aproximam da sonoridade brutal do Death Metal, outras são plenamente instrumentais e atmosféricas, e algumas, inclusive aproximaram o Black Metal dos discursos xenófobos e neonazistas que assolam a Europa há algumas décadas. Há, inclusive, nas capas e nas letras, um amplo discurso conservacionista das paisagens naturais da Noruega, cuja defesa aproxima algumas bandas de um protecionismo neurótico dos territórios nacionais.
Por outro lado, entre os gêneros de Black Metal, existe uma dissidência não necessariamente satânica, que é o conjunto de bandas que fazem parte de uma vertente chamada Red and Anarchist Black Metal (RAMB). São conjuntos que se utilizam dos elementos sonoros do Black Metal tradicional, mas não chegam a fazer o combate direto contra a cristandade e seus símbolos, utilizando as terminologias ou mitologias explicitamente satânicas. As suas perspectivas estão mais próximas do discurso anarquista e libertário proferido pelos conjuntos de Grindcore, do que do satanismo presente em conjuntos como Venom ou Mercyful Fate.
Um dos registros mais antigos dessa vertente é de uma banda argentina chamada Profecium, cujo disco Socialismo Satânico, é um dos primeiros registros no Black Metal a associar o diabo ao discurso da extrema esquerda. Os títulos das composições sugerem a compreensão de um demônio muito mais parecido com um militante punk libertário do que um sacerdote das trevas, carrasco de crianças em cerimônias sacrificiais satânicas: Dios Explotador, Cruz Fascista e Impalando Burguesia. No Brasil, algumas bandas podem ser consideradas como membros desse gênero libertário no Black Metal, como Deuszebul, do Rio Grande do Norte, Nuclear Frost, de São Paulo, e Corubo, de Rondônia – cujo trabalho de junção de metal com música indígena.
Entre as bandas de RABM, existe uma vertente chamada de Cascadian Black Metal (Black Metal Cascadiano). Assim com no Black Metal europeu, essa disjunção caracteriza-se, em sua sonoridade, pelo aspecto lúgubre e sujo de suas composições. Longas bases nas cordas, bateria alternando momentos cadenciados e momentos “triturantes”, vocais rasgados, e uma atmosfera sufocante nas longas composições que muitas vezes chegam aos 20 minutos de duração.
O Black Metal cascadiano se inspira no Black Metal clássico em suas características sonoras, no refúgio para a floresta, e, muitas vezes, em sua brutal misantropia, ao acusar a humanidade de destruir, violar e assassinar as paisagens naturais e seus habitantes, humanos e não-humanos. Mas, a crítica anticristã na vertente cascadiana é menos explícita que no Black Metal tradicional, e o visual pesado e “corpse paint” é deixado de lado. Tanto, que as bandas cascadianas são ignoradas por boa parte dos fãs do Black Metal Clássico, e apreciadas, inclusive por muitos punks anarquistas.
A terminologia cascadiana é inspirada no movimento de autonomia de cunho biorregionalista[4], inspirado em uma proposta inspirada pela obra “Ecotopia”, de Ernest Callenbach[5], na qual a região noroeste dos Estados Unidos – que compreende os estados de Washington, Idaho, Montana e Oregon, além do sul do Alasca – e Sudoeste do Canadá – Colúmbia Britânica e Alberta – buscam se desvencilhar dos grandes projetos de exploração dos recursos naturais, por parte das corporações transnacionais.
O movimento cascadiano, que existe desde o começo dos anos 90 (COHEN, 2004), especialmente após a conferência ECO-92, argumenta que, devido ao grande grau de preservação dessa região, que possui um dos ambientes mais ricos das paisagens temperadas, é necessário que se estabeleçam novas formas de coalizão política e econômica, respeitando-se, não as fronteiras territoriais estabelecidas pelos estados, mas as fronteiras naturais como cadeias montanhosas, paisagens climatobotânicas, e os cursos de água. O biorregionalismo que permeia o movimento cascadiano promove, inclusive, um culto ao lugar que, distinto de perspectivas religiosas cristãs ou de movimentos xenófobos de direita, busca uma interação muito próxima daquela promovida pelos povos nativos (COHEN, 2004).
E é sob os auspícios desse movimento que surgem conjuntos que utilizam o Black Metal, tanto como proposta sonora quanto de defesa de suas paisagens e culturas locais, mas com um cunho libertário mais próximo das perspectivas Punk e Grindcore anarquistas, do que das propostas clássicas do Metal.
A banda mais conhecida da vertente cascadiana do Black Metal chama-se Wolves in The Throne Room. Vindos do Estado de Washington, seus primeiros discos flertavam com um Black Metal clássico, tanto por sua sonoridade, quanto pelo próprio logo e imagens de divulgação da banda. Mas, suas intenções políticas e filosóficas, de acordo com os próprios membros da banda, sempre foram direcionadas ao que chama de anarco-primitivismo, apesar da sonoridade Black Metal (HOOPER, 2009). Mas, mesmo suas representações anticristãs eram secundárias perante o discurso ecológico de cunho biorregionalista e de defesa das florestas. Outras bandas importantes são Fauna, Echtra, Ash Borer (todas dos Estados Unidos) e Altar of Plagues (Irlanda), as quais, assim como Wolves In The Throne Room, foram formadas após o ano 2000.
As imagens das capas são quase sempre as florestas densas, sombrias e escuras, convidativas aos piores cenários de filmes terror. Mas ao invés da celebração do horror, utilizando os elementos da natureza, o Wolves in the Throne Room promove uma imersão nesse ambiente lúgubre, saudando os elementos constituintes dessa paisagem como si próprios (WILSON, 2014).
Uma das imagens de divulgação da banda mais significativas é de uma pequena turnê de três shows no Canadá. No seu quase ilegível logotipo – que lembra, em muito, os grafismos das pichações por sua quase impossibilidade de decifração, assim como da maioria das bandas de Black Metal – há um grande crucifixo invertido no meio, que é também típico de imagens e logotipos de bandas Black Metal e de outras vertentes do metal anticristão. Há um sacerdote no meio do desenho, cuja cabeça é a copa desnuda de uma árvore que, em seu topo, se mistura ao próprio logo da banda. Ele segura um crânio de cabeça para baixo com uma das mãos, e na outra parece chamar os quatro lobos negros que o cercam, e todos estão sobre um assoalho composto por crânios humanos.
A capa do segundo disco da banda, Two Hunters[6] possui todos os elementos de um álbum típico de black metal, com um personagem de cabelos longos, de face esbranquiçada, com um manto negro e uma mão fechada, agachado frente a uma árvore permeada de cipós emaranhados.
A capa do EP lançado em 2009, chamado Malevolent Grain, possui a imagem de uma floresta, que aparece em cores, mas fora de foco, com o logotipo – um pouco mais legível – ao alto, e uma árvore caída abaixo, em destaque. Na parte direita da capa aparece uma forma vultosa formada pelas próprias sombras da floresta.
Em outros álbuns, muitas vezes o logo da banda não aparece, surgindo somente a imagem de capa, como a do álbum de 2006, o primeiro da banda, chamado Diadem of 12 Stars, em que a imagem de um penhasco plenamente florestado é ocupado por uma grande cascata.
Aliás, o termo Cascadian tem sua origem tanto da região da Serra da Cascada, quando do grande número de quedas d’água que ocupam aquela área. Cabe ainda ressaltar que a bandeira do movimento pela região da Cascadia, tem em suas cores o verde das florestas, o azul das águas, o branco das neves, e o desenho de um pinheiro vermelho (Thuja plicata), representando a espécie de pinheiro mais típica da região, chamada pelos nativos da região como “Árvore da Vida” (SHAKESPEARE, 2012).
Ecologias da vida… ecologias de morte
A Cascadia parece o lugar ideal para a fuga da civilização e a interação com a floresta propostas pelos irmãos Weaver, que compõe a banda. Presente nas capas e nos encartes, a mata boreal, gélida, ainda povoada de barulhos e sons, intransponível para a maior parte dos cidadãos urbanos, é convidativa para uma profunda imersão – no ambiente e em si mesmo – que ao mesmo tempo em que propõe o escape do barulho e do tempo da civilização capitalizada, promove possibilidades outras de convívio com o planeta. Cascadia que é lugar perfeito para um projeto de vida e um projeto de morte:
The wood is filled with the sounds of wildness.
The songs of birds fill the forest on this new morning.
This will be my new home.
Deep within the most sacred grove.
The sun god is born anew.[7] (WOLVES IN THE THRONE ROOM, 2007.)
Nada mais do que já é proposto por inúmeros movimentos ecologistas que propõe o anarco-primitivismo, pela permacultura, por algumas dissidências hippies, ou mesmo pelas ecovilas. Mas o encontro experimental que as bandas de Black Metal cascadiano promovem é pertinente, original e radical, pois buscam em uma perspectiva completamente misantrópica, brutal e ruidosa, que é o Black Metal, uma alternativa para expor tanto uma indignação perante à situação de ameaça em que sua (bio)região se encontra, quanto para promover outras possibilidades de convívio e permanência na terra, sem necessariamente ser a alternativa capitalista do desenvolvimento sustentável, de cunho utilitarista, e de manutenção do padrão de consumo.
A ecologia do Black Metal, de acordo com Wilson (2014), especialmente na perspectiva cascadiana, sugere, no momento em que imerge na escuridão da mata, no limiar da morte, no encontro das guitarras melancólicas e dos vocais berrados com os sons dos habitantes não-humanos, uma pura forma malévola dos outros seres humanos, de repulsão aos padrões judaico-cristãos ocidentais religiosos – e por isso a importância da imagem de Satã (WILSON, 2014) – que ditam os valores econômicos, políticos e morais que guiam a sociedade.
O corpse paint, os cinturões, machados, sanguinolentos rituais macabros, evocações demoníacas, crucifixos invertidos, pentagramas, logotipos e vocalizações incompreensíveis. Hostilidade, morte, recusa ao diálogo como cooptação de reivindicações. A (anti) música por ela mesma, ou no máximo, como um exercício de resistência ao assédio do contingenciamento, seja ele para a manutenção, ou para uma mudança reformista nas relações humanas.
A destruição dos deuses, da criação divina, do universo e do cosmos como valores transcendentais, e a transformação da ecologia em algo negativo. Não negativo da plena morte, da morte como fim ou como punição divina, mas como experimentação e plano de imanência às ecologias menores, aquelas ecologias que a vida pode criar (GODOY, 2008). Vidas que, na experiência do Black Metal, envolvem fuga, fluidez, imersão na (anti)música, na selvageria sonora e simbólica nas entranhas da floresta. A resistência presente por intermédio do visual e do som, da escuridão em busca de uma natureza que não mais reproduza o exotismo utilitarista da natureza proposta pelas ecologias institucionais.
Bibliografia
BARCHI, Rodrigo. Poder e resistência nos diálogos das ecologias licantrópicas, infernais e ruidosas com as educações menores e inversas (e vice-versa). Campinas: Unicamp, 2016. Tese de Doutorado em Educação.
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[1] Doutor em Filosofia e História da Educação pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Professor Coordenador do Curso de Geografia da Universidade de Sorocaba (UNISO). E-mail: rodrigo.barchi@prof.uniso.br
[2] O homem branco veio pelo mar / Nos trouxe dor e miséria / Matou nossas tribos, matou nossas crenças / Levaram nossa caça para seus próprios fins.
[3] Nós lutamos duramente, nós lutamos bem / Nas planícies, demos-lhe o inferno
[4] O biorregionalismo, como perspectiva de autonomia de uma região baseada em seus aspectos naturais, tem seu conceito sugerido nos trabalhos de Snyder(2001), O, Connor(2001) e Clark(2001), e tem como principal característica a extinção das fronteiras dos Estados Nacionais, como forma de possibilitar a existência das comunidades sem necessariamente pautar suas atividades econômicas em formas predatórias de produção de bens. O biorregionalismo é uma das vertentes ecopolíticas mais discutidas e influentes nos debates bioéticos entre os movimentos de defesa dos animais (NEGRÃO, 2006).
[5] Novela publicada em 1975, o livro Ecotopia (CALLENBACH, 2005) é a caracterização de uma comunidade contracultural e ecológica, instalada entre a costa noroeste dos Estados Unidos, e a Colúmbia Britânca canadense.
[6] Os dois músicos membros efetivos da banda são os irmãos Aaron e Nathan Weaver, sendo que os outros integrantes sempre são convidados e rotativos.
[7] O bosque é cheio de sons selvagens/ As canções dos pássaros enchem a floresta nessa nova manhã/ Esse será meu novo lar/ Bem no fundo do mais sagrado arvoredo/ O Deus Sol nasce novamente