Russel Maroon Shoatz
O dragão e a hidra
um estudo histórico dos métodos de organização
Últimas palavras de um marxista sagaz
Epı́logo de Josep Gardenyes: Shoatz, Marxismo e as responsabilidade anticoloniais do anarquismo
Quinze, vinte, cinquenta anos de guerras civis e lutas do povo, não somente para mudar suas condições de vida, mas para mudar-se a si mesmos e se tornarem aptos para o governo político. (Karl Marx, sobre a AIT – Primeira Internacional).
As palavras de Marx influenciaram de forma importante meu entorno. Por 40 anos eu estive envolvido em mobilizações, produto – originalmente – do Movimento de Liberação Negra dos anos 1960; e por isso sou prisioneiro político[1] nos Estados Unidos desde 1972. Durante todo esse tempo, participei em uma grande quantidade de organizações de massas e partidos: nunca deixou de me surpreender quanta energia e tempo se dedica ao estabelecimento de agrupações autodenominadas vanguardistas de alguma luta por justiça, quando o final da maioria delas acaba sendo estéril, isso quando não degeneram em conflitos fratricidas.
Por outro lado, me arriscaria a dizer que toda a história das mudanças sociais marxistas-leninistas conheceu poucos métodos diferentes dos da luta pela supremacia; (não somente sobre a burguesia, mas também sobre a classe trabalhadora e demais pessoas oprimidas), contra qualquer agrupação que busque se impôr ou escapar de seu controle. Assim que seu lema de fazer tudo para tomar o poder para a classe operária é uma farsa.
Se houve alguma vez um partido marxista-leninista de vanguarda que tenha tomado o poder e posteriormente não seguiu nessa linha, não o conheço. Embora sempre se possa encontrar argumentos para explicar porque foi ou é necessário recorrer a tal medida, e muitos desses argumentos terão sentido – inicialmente-, um olhar mais atento sempre parece obrigar seus partidários a cair de novo no tópico dos indivíduos imperfeitos, que não se mantiveram fiéis aos princípios do Centralismo Democrático (CD), muito abertos à interpretação e manipulação com o objetivo de tomar a iniciativa em uma luta contra a dominação – no lugar de fazer uma “análise concreta das condições concretas” como indicou Lenin.
Ao mesmo tempo, a história nos demonstrou que tais métodos cruéis são efetivos: se os objetivos de quem usa tais métodos são a tomada do poder, então suas conquistas durante o séc. XX foram impressionantes. Demonstraram ser brutalmente eficazes e capazes de superar qualquer coisa que as forças burguesas fizessem.
Porém, no fim das contas quem obteve o poder usando o método CD sempre terminou derrotando as aspirações da classe trabalhadora e da gente oprimida instalando os elementos de uma nova classe opressora.
Como pode espera que se produza qualquer outro resultado? O CD concentra mais poder nas mãos de poucas pessoas do que qualquer mecanismo que as massas (a quem, supostamente, estes poucos devem servir) poderiam mobilizar: é uma receita que necessariamente chocará com os caprichos do ser humano imperfeito.
Stan Goff, em seu magistral Full Specrtum Disorder (2004, Softskull Press) afirma que o CD tal e qual foi exercido por Lenin e seus bolcheviques tinha uma base democrática, portanto levou a cabo uma intensa e aberta luta democrática com o fim de alcançar posições e estabelecer políticas. Logo, todos os trabalhadores e trabalhadoras se organizariam de forma descentralizada e livre para tornar possível a aplicação de tais decisões (no contexto da repressão czarista), que ao final resultou na centralização de seus esforços coletivos, somente para depois mudar seus métodos. Isso conduziu a uma centralização ainda maior e muito pouco democrática, se é que existiu. Sem dúvida, grande parte das organizações de tendência marxistas/leninistas/maoistas tiveram experiências similares.
Se a tendência histórica explícita é sempre gravitar rumo à formas de controle menos democráticas e opressivas, então, francamente alguém pode dizer que é ridículo o uso que fazem do materialismo histórico ao lançar mão do CD para formular ideias de liberação corretas, teorias e planos!
A situação contemporânea
Aqui estamos, no começo do século XXI, enfrentando uma crise global desconhecida até agora em toda história da humanidade. As ameaças à nossa existência coletiva são bastante multidimensionais e seriam necessários muitos outros estudos para analisar todos seus aspectos Portanto, me limitarei aos pontos que acredito serem de suma importância para nos ajudar a sair dos bloqueios mentais autoimpostos que obstaculizam nossos esforços em avançar. A maior ameaça para a humanidade, para a flora e fauna de nossa biosfera é o imperialismo capitalista: um sistema global de acumulação e opressão, depredador e totalmente fora de controle, que se choca com as limitações de nosso planeta. Diariamente, em benefício próprio, devora as crianças, mulheres, pessoas de cor, pobres, trabalhadores e trabalhadoras de todos os setores, a vida silvestre e o meio ambiente.
Todos os nossos problemas repousam principalmente nas divisões artificiais que foram engendradas entre as pessoas oprimidas durante séculos: divisões baseadas em gênero, raça, etnia, cultura, geografia, preferências sexuais, idade e outros. Essas divisões foram fomentadas historicamente por quem tratou de utilizá-las em sua busca de poder e ganância material.
Sob o imperialismo, a esmagadora maioria dos sere humanos de nosso planeta são, no fim, trabalhadores. Assim, aquelas palavras de Marx sobre a AIT seguem sendo válidas hoje em dia; ainda que subestimou o grau de oposição que trabalhadores e trabalhadoras enfrentariam, e o tempo que tomaria para superar os obstáculos em seu caminho.
Marx foi um excelente analista, mas devido às suas predileções eurocêntricas, passou por cima ou ignorou ações operárias que ocorreram fora da Europa; ou ao menos falhou ao não estudá-las com a mesma intensidade que colocou nas situações europeias, sobre as quais ele (principalmente) baseia suas análises. Um estudo completo, avaliação, adaptação (sempre que seja aplicável) e a compreensão de algumas dessas trajetórias nos ajudarão a avançar em nossa luta contra o imperialismo. Encontraremo nelas, submetidas a prova, alternativas viáveis à formas defeituosas de organização do CD, algumas das quais refletem as teses de Stan Goff sobre a força dos bolcheviques no começo da Revolução Soviética.
Volta ao futuro
Em primeiro lugar, permita-me dizer que não sou anarquista. Porém, muito do que você lerá aqui se parecerá muito com o anarquismo! Por isso, citarei um ancestral desconhecido, que depois de quebrar a cabeça para formular respostas a problemas irritantes e descobrir que quem havia chegado antes dele já havia exposto o que ele acreditava serem suas invenções intelectuais, disse: “que inferno esses antepassados, nos roubaram todas as nossas melhores ideias!”.
Portanto, para leitores anarquistas, o que segue não pode ser denominado precisamente anarquismo, simplesmente porque as pessoas que levaram a cabo estas práticas não conheciam essa palavra e nem estavam em contato com gente que tivesse esse ponto de vista, pois o anarquismo é uma ideologia europeia e essas experiências – em sua maioria – foram africanas e ameríndias, com contribuições muito limitadas de um pequeno número de europeus marginalizados. Além disso, todas as lutas descritas aqui começaram e tiveram sucesso antes da difusão desse conceito.
Contudo, a afinidade entre anarquismo e o que segue não pode ser negada; pelo contrário, é bem-vinda como ideia irmã, crenças e conceitos – sempre e quando os anarquistas entendam que estão em igualdade de condições, em um espírito de autodeterminação intercomunal.
Panorama histórico
Dando continuidade, farei um esboço de algumas lutas de trabalhadores e trabalhadoras contra o imperialismo inicial europeu que ocorreram no Suriname, na Jamaica, em algumas regiões do sul do que hoje são os Estados Unidos e, finalmente, Haiti. Esboçarei como a organização de pessoas escravizadas lutou mais do que “quinze, vinte, cinquenta anos de guerras iniciais e lutas populares...” que dizia Marx, para finalmente ser capaz de exercer suas próprias formas de autodeterminação e governo. E ainda que todos eles estivessem tão estratificados como estamos hoje, ainda eram capazes de derivar democraticamente em métodos e políticas de interesse coletivo por meio de estruturas descentralizadas e autônomas de sua própria criação. Uma vez conquistada a liberdade das distintas potências imperialistas, diferentemente dos Estados posteriores governados por vanguardas marxistas, esses povos nunca renunciaram à sua autonomia, até o dia de hoje, com exceção do Haiti, que merece atenção especial.
Após ler isso, espero que faça suas próprias pesquisas e estudos em profundidade, já que a maioria das pessoas não conhece grande parte dessas histórias. Então poderá decidir se essas forma de organização e seus métodos podem ser úteis na luta para nos salvarmos e salvar o planeta.
Suriname
“Temos de matar a Hidra”. Essa foi a preocupação dos imperialistas holandeses no Suriname desde seus primeiros dias ali. (Hidra: na mitologia grega, um monstro de muitas cabeças, que ao ser cortada cresciam novamente. Foi assassinada por Hércules. Também é a maior e mais antiga constelação no céu, mas sem nenhuma estrela brilhante em particular).
Na costa da América do Sul, frente ao mar do Caribe, o país tropical faz fronteira com a Guiana, Guiana Francesa, Brasil e é tão grande como Cuba. Os primeiros europeus intrusos que visitaram o lugar eram britânicos, que foram seguidos pelos holandeses. Mudava entre eles repetidamente de dono, mas os holandeses foram o maior poder imperial a ocupar o país por volta de 1600 até 1700. Durante esse período, a grande maioria das populações nativas ameríndias foram oprimidas, obrigadas a fugir para zonas mais inóspitas ou exterminadas.
Os holandeses eram uma das maiores potências imperiais e disputavam com os britânicos, espanhóis, dinamarqueses, portugueses e franceses pelo controle das Américas do norte e do sul, do Caribe e de outros lugares do mundo.
A holandesa West Indies Company foi uma das primeiras e maiores corporações do mundo. No Suriname iniciou as plantações de cultivos comerciais em grande escala, e o uso de trabalhadores e trabalhadoras escravizados trazidas de distintas partes da África. Somado a isso havia outro conjunto de plantações dirigidas por “empresários” europeus, junto aos seus supervisores, comerciantes, milicianos, artesãos, administradores, burocratas, marinheiros e uma pequena porcentagem de pobres (em grande parte mulheres brancas exiladas da Europa).
Na população africana escravizada e ameríndia oprimida (excetuando o pequeno número de empresários e administradores que operavam as plantações) podíamos encontrar semelhanças com o que hoje se conhece como aristocracia operária nos países tecnologicamente avançados e com a pequena burguesia; ambas com elementos vitais para a subsistência e a proteção, frente aos trabalhadores escravizados e a população nativa remanescente, de seus bens, do exército holandês, das milícias, da corte imperial e das grandes estruturas mercantis.
Fiz essa comparação porque muito recentemente esquecemos que a população escravizada procedente da África foi transportada através do Atlântico para assumir a função de trabalhador. Igual que quase todas as pessoas relacionadas com essa difícil situação – primeiro e mais importante-, outros trabalhadores e trabalhadoras têm algumas condições similares hoje. E o assunto da raça não podia mudar esse simples fato! Assim que tenha isso em mente no desenrolar deste trabalho.
Entre a população africana havia muitos grupos étnicos de diferentes zonas do continente, todos falavam idiomas distintos e tinham práticas religiosas e culturais variadas. Para dar uma ideia da estratificação destas etnias, o fato de que todas elas tinham a pele escura não significa quase nada em termos de solidariedade. Toda a gente tinha a pele escura em seus lugares de origem; amigos e inimigos igualmente! Ademais, uma prática dos donos das plantações era comprar trabalhadores e trabalhadoras de origens diferentes com o fim de mantê-las divididas o máximo possível. Em decorrência do trabalho ser tão duro e a comida tão inadequada, a maioria destas plantações eram praticamente campos de extermínio, onde as e os trabalhadores africanos literalmente trabalharam até morrer em poucos anos, para serem substituídos por escravos e escravas recém importadas, que também gerariam grandes lucros para os proprietários. Portanto, a rotatividade foi um poderoso controle sobre o estabelecimento de qualquer solidariedade entre as e os trabalhadores escravizados.
Seja como for, quase desde a primeira importação de escravizados e escravizadas da África, surgiu uma tradição de fugas: fugiam para as matas, pântanos e montanhas. Essas pessoas fugitivas chegaram a ser conhecidas como Bosch Creoles: Crioulos Bush em holandês, ou “nascidas na floresta” e logo como negros do bosque; que chamaremos quilombolas[2] no decorrer de nosso estudo, como um nome genérico que foi usado e aceito para descrever pessoas escravizadas fugitivas em todo o hemisfério ocidental.
Por todo o hemisfério ocidental, observamos essas coletividades quilombolas desenvolvendo e usando um tipo de organização descentralizada muito eficaz que não somente lhes serviu para derrotar seus antigos escravistas, mas também os ajudou a conservar a sua autonomia de todos os capatazes indesejados por centenas de anos, até os nossos dias.
É preciso recordar que a população africana do Suriname tinha diversas origens, assim que quando passavam a ser quilombolas, isso os unia. Tinham de se organizar usando métodos democráticos, e o que lhes mantinha juntas era seu foco coletivo de acabar com as tentativas dos escravocrata de controlá-las; isso que centralizou seus esforços.
Restava, porém, uma comunidade que não se encaixava nessa categoria: aquela composta por pessoas africanas que não fugiram, mas foram obrigadas pelas forças quilombolas a deixar as plantações. Não tinham voz nem voto nos assuntos de suas comunidades até demonstrarem seu compromisso.
Entretanto, como regra geral, indivíduos e pequenos grupos fugiam das plantações para se unirem aos quilombolas e, em algumas ocasiões, grandes conspirações eram organizadas, preparando o terreno para as guerrilhas quilombolas que atacavam as plantações enquanto liberavam as pessoas ali condenadas.
Este exemplo mostra decisões tomadas por meios verdadeiramente democráticos e, em seguida, executadas de maneira centralizada por grupos descentralizados. Bem antes dos bolcheviques!
Durante um período de 150 anos, distintas comunidades quilombolas do Suriname travaram uma guerra de guerrilhas contra os escravistas holandeses e ingleses para conservar sua liberdade. Hoje, no Suriname, seus descendentes diretos seguem ocupando as áreas onde seus ancestrais lutaram e sofreram a escravidão – inclusive antes da declaração de independência dos EUA, em 1776.
Inclusive enquanto isto é escrito, essas comunidades permanecem autônomas do governo do Suriname – que conquistou sua independência da Holanda em 1975. Os primeiros descendentes das comunidades quilombolas foram forçados a lutar em outra guerra de guerrilhas contra o novo governo independente em 1980: um esforço exitoso dos quilombolas para manter sua autonomia e controle sobre os territórios que historicamente haviam ocupado.
Seus métodos descentralizados tinham inconvenientes. Seus inimigos no campo imperialista foram capazes de manipular algumas comunidades quilombolas com a assinatura de “tratados” que deram a essas comunidades a libertação da escravidão e o uso livre da terra em troca de sua cooperação na caça e captura daqueles que fugiam. Com isso, os escravistas podiam evitar as guerras quase inúteis feitas para capturar ou matar hábeis guerrilheiros quilombolas, que criaram estratégias com as quais em um instante as mulheres e as crianças dessas comunidades podiam empacotar seus pertences e fugir para acampamentos alternativos preparados com antecedência, enquanto os homens (e algumas mulheres) lutavam contra as ações dos soldados coloniais que os perseguiam.
Porém, mesmo os tratados tendo resolvido alguns dos problemas do imperialismo, as comunidades quilombolas do Suriname nunca cumpriram com sua obrigação de ajudar aos imperialistas a caçar e capturar outras e outros quilombolas. É instrutivo neste sentido conhecer o relato das longas tentativas das forças holandesas de capturar ou matar os quilombolas Boni (ver The Boni Maroon Wars in Suriname).
Por volta do século XVIII, os holandeses haviam sido forçados por mais de um século à guerra de guerrilhas quilombolas e a assinar tratados com 3 das mais poderosas comunidades: Ndjuka, Saramaka e Matawai. Todas essas comunidades quilombolas haviam evoluído ao longo de gerações fugitivas africanas de distintas procedências, que estabeleceram novas etnias com os nomes já mencionados. O mais importante é que haviam derrotado de forma sólida as forças imperialistas implantadas para capturar ou matar pessoas quilombolas, enquanto continuavam crescendo e geravam uma ameaça cada vez maior à colônia holandesa.
Os tratados chegaram com “presentes” anuais de todos os tipos que os holandeses entregaram aos quilombolas: têxteis, panelas e frigideiras, armas, pólvoras, machados, facas, espelhos, pregos, licor e quase qualquer coisa acordada entre as partes. Os objetivos fundamentais dos imperialistas eram livrar-se de um inimigo perigoso e convertê-lo em um valioso aliado.
Entretanto, por conta disso, as pessoas africanas ainda escravizadas descobriram que não podiam mais confiar nos Njuk, Saramaka ou Matawai em busca de refúgio e proteção, e passaram a buscar grupos menores de quilombolas.
No início de 1700, um destes pequenos grupos foi encabeçado por um africano chamado Asikan Silvester. Neste grupo nasceu Boni. Sua mãe era uma africana fugitiva, e seu pai africano ou ameríndio. Com o tempo, o grupo escolheu Boni como novo chefe, uma vez que Asikan estava muito velho para essa posição. Esse grupo quilombola foi considerado pelos holandeses como um novo núcleo de resistência e durante as seguintes gerações foi liderado por Boni, passando a ser conhecido como os quilombolas Boni, convertendo-se assim em uma etnia. Os Boni seguiam espalhando a solidariedade que os imperialistas esperavam reprimir através dos tratados assinados com outras comunidades. Em consequência, não assinaram mais tratados com os Boni ou outras comunidades quilombolas – até o final da época da escravidão. Boni, por sua vez, levaria seu grupo a manter uma agressiva guerra contra os imperialistas até sua morte, até meados dos anos 60 daquele século.
E mesmo quando os Boni se converteram na principal força de luta entre todas as comunidades quilombolas que ainda estavam em guerra com os holandeses, eles observavam e respeitavam os desejos democráticos de qualquer agrupação fugitiva ou quilombolas com as quais se relacionavam; nunca tentaram centralizar todo o controle em suas mãos. Embora tenham sido mestres no uso campanhas de guerrilha coordenadas entre todos os grupos descentralizados - durante as quais um mando unificado era essencial - eles nunca exigiram que todos se integrassem na comunidade Boni; ou que estivessem sob as ordens Boni quanto acordavam participar de ações de guerrilha e invasões. Portanto, os holandeses registraram a frequente reunião dos combatentes descentralizados de Kormantin Kodjo, Chefe Puja, Boni e Baron durante as grandes campanhas, enquanto em outros momentos se separavam e se mantinham descentralizados e autônomos.
Apesar dos “tratados quilombolas”, essas comunidades nunca chegaram a ser dependentes dos imperialistas para nada, confiaram em suas próprias capacidades para capturar armas, pólvora, canhões e outras coisas úteis. Também aperfeiçoaram métodos de agricultura em larga escala, o que lhes permitia aumentar a colheita e armazenar mais alimentos – assim como mais animais do que necessitavam para complementar sua dieta.
Os soldados holandeses registraram a descoberta de área dos Boni e demais quilombolas que levaram entre 30 minutos a uma hora para destruí-las, bem como uma enorme quantidade de galinhas domesticadas que eles tiveram de massacrar o excedente após se alimentar delas por dias. Tanto os holandeses quanto seus inimigos sempre notavam o quanto os quilombolas eram melhor alimentados e possuíam melhor aspecto físico do que eles. Isso fez com que os holandeses passassem a procurar os quilombos para suplementar suas suas pobres dietas.
Durante a última campanha holandesa na segunda guerra Boni, uma força expedicionária de 1600 holandeses regulares e mercenários europeus, acompanhados de milhares de soldados coloniais, trabalhadores africanos escravizados e guardas negros livres fracassou redondamente, fazendo com que o comandante tivesse que voltar para a Europa com menos de uma duzia dessa força que havia levado ao Suriname; além de morrer em um ano.
A partir dai até o fim da escravidão, os holandeses utilizaram a traição, tentando manipular vários tratados enquanto seguiam enfrentando as comunidades quilombolas. E apesar de terem conseguido que uma geração mais jovem e menos experiente de quilombolas assassinasse Boni, o Chefe Puja e Kormantin Kodjo (já homens velhos que haviam entregue suas lideranças aos mais jovens), os outros guerreiros quilombolas continuaram exercendo sua autonomia até a abolição da escravidão. Hoje os quilombolas Boni seguem vivendo de forma autônoma no Suriname, onde existem mais de 70 mil descendentes diretos dos “negros da floresta” [bush negroes, no original].
Os imperialistas holandeses tentaram decapitar a Hidra e falharam! E foi porque as formações descentralizadas dos quilombolas evitaram que os holandeses concentrassem seus maiores recursos contra uma liderança centralizada – foi brilhante? Penso que sim!
As etnias descendentes de africanos nas Américas conseguiram manter sua autonomia por centenas de anos contra toda opressão por conta de não se submeterem a uma força centralizadora? Novamente, penso que sim.
Jamaica
Do outro lado do Caribe se desenvolveu, desde 1650, comunidades parecidas com os quilombos descentralizados, só que ali lutavam contra os escravocratas do império britânico. Depois de gerações de batalhas mal sucedidas dos britânicos contra os guerrilheiros quilombolas, também tentaram separá-los de seus novos recrutas: os trabalhadores africanos escravizados. Para isso, os britânicos ofereceram aos quilombolas “tratados” parecidos com aqueles do Suriname.
Para forçar os britânicos a adotar tais métodos, os quilombolas lutaram valente, hábil e tenazmente durante mais de 100 anos! E ainda que aqui também vemos uma grande quantidade de grupos descentralizados, com o tempo foram reconhecidos como quilombolas os Windward [Barlavento] e Leeward [Sotavento]. E a história regista como o Windward mais conhecido uma mulher africana chamada Granny Nanny [Avó Nanny] – inclusive tinha uma cidade com o seu nome no território quilombola liberado (Nanny Town). De fato, o lugar se converteu no centro da resistência ao imperialismo na Jamaica, desde onde os grupos quilombolas quase conseguiram expulsar todos os imperialistas da ilha, ainda que os soltados britânicos tenham capturado e incendiado Nanny Town várias vezes.
A personalidade dominante entre os Leeward foi um homem africano chamado Kodjo. A história lembra a Kodjo como o líder de uma operação fortemente centralizada e controlada. Contudo, quando os Windward tiveram que cruzar a ilha durante uma campanha brutal de repressão, buscando o apoio dos Leeward, nem mesmo Kodjo pôde forçá-los a abandonar sua autonomia.
Dizem que foi a Avó Nanny quem liderou o fração de Windward descentralizados que resistiu durante mais tempo a assinar os tratados. Chegou inclusive a matar enviados britânicos mais de uma vez e só se rendeu depois de que Kodjo e todos os líderes masculinos quilombolas capitularam.
Depois disso, esses quilombolas foram usados para ajudar os britânicos a caçar e capturar novos escravizados fugitivos e também para suprimir revoltas entre os trabalhadores africanos ainda escravizados; embora se agarraram ferozmente à liberdade e autonomia pelas quais eles e seus ancestrais haviam lutado!
De fato, mais de uma geração depois, seus descendentes voltariam a lutar contra os britânicos na Guerra de Trelawny por volta de 1790, quando somente 267 guerrilheiros quilombolas combateram milhares de soldados britânicos, milicias locais e africanos escravizados, até serem parados. Contudo, foram enganados e deportados em um barco ao Canadá e logo para a África após aceitarem uma trégua.
Ainda assim, os descendentes das comunidades quilombolas remanescentes da Jamaica seguem ocupando as terras onde lutaram e nunca reconheceram nenhum senhor, nem os posteriores governos britânicos ou negros!
Estados Unidos
É irônico que nós, vivendo nos EUA, sigamos negligenciando o estudo e a crítica profunda da riqueza história sobre as lutas antiimperialistas e anti-expansionistas ocorridas aqui desde que os europeus começaram a colonizar a região, com a exceção dos já conhecidos processos de genocídio e supressão dos americanos nativos. Igual que as obras escritas sobre a luta dos Direitos Civis e da Liberação Negra de 1960 e 1970, o recente Movimento Operário, o movimento pelo Sufrágio Feminino, o movimento pela Abolição e a época de Reconstrução [depois da Guerra Civil estadunidense de 1860, quando a escravidão foi abolida formalmente], existe um monte de outros movimentos revolucionários com os quais podemos aprender. E, como não poderia ser diferente, essa informação se concentra nas lutas de trabalhadores escravizados nestas terras antes da abolição da escravidão. De fato, são experiências muito parecidas com as lutas já mencionadas no Suriname e na Jamaica, com a diferença importante da inclusão de aspectos multirraciais maiores do que nos outros casos. Precisamente nos EUA, até a abolição da escravidão, africanos, ameríndios e europeus (em algumas regiões) se aliaram para lutar contra as forças imperialistas e expansionistas. Esse fenômeno também se evidenciou no Caribe e na América do Sul, mas, por conta da grande porcentagem de africanos escravizados quando comparado com ameríndios e europeus, a maioria destas lutas foram sobretudo entre os africanos escravizados e os imperialistas europeus.
Tanto é que hoje em dia, nos EUA, insultos como hillbilly [algo como caipira, pessoas que vivem nas montanhas ou em regiões rurais] e poor white trash [na tradução literal significa gente pobre e lixo, expressão utilizada de maneira preconceituosa contra populações brancas pobres] estão totalmente dissociados de suas raízes históricas. Os primeiros a serem chamados assim foram os descendentes de trabalhadores europeus contratados (indentured)[3] que haviam escapado dessa situação e haviam se aliado com os ameríndios e com os africanos que também haviam escapado da escravidão ou da servidão. Todos eles entraram em contato nas comunidades Maroons nas zonas que atualmente formam parte dos EUA.
A princípio, a termo depreciativo poor white trash estava reservado aos primeiros imigrantes europeus em rebelião constante, não exploráveis e não conformistas, que as elites coloniais e imperiais não podiam controlar nem utilizar para aumentar seu poder; por isso foram tachados de lixo. Mais tarde, o imaginário e a termo hillbilly foram utilizados para isolar os que fugiram e se mudaram para a parte sul das montanhas Apalaches para escapar de seu antigo status servil. Ambos setores eram explícitos inimigos dos imperialistas e colonialistas, muitas vezes se aliando com africanos e ameríndios, também fugitivos da escravidão. As vezes, os três grupos formaram comunidades de três raças. Outras vezes, estavam fortemente aliados, mas viviam separadamente (com a exceção dos ameríndios e africanos, que se misturavam livremente).
Em consequência, do séc. XVII até a abolição da escravidão nos EUA, haviam comunidades Maroons em várias regiões desde os bosques de pinheiros de Nova Jersey, descendo pela costa leste até a Florida, nas montanhas Apalaches e em regiões fronteiriças com o México. As mais conhecidas (mas pouco estudadas) foram as comunidade que ocuparam o Great Dismal Swamp [Grande Pântano Sombrio, em tradução literal] na Virgínia e na Carolina do Norte, e os Seminoles da Florida, que, ao contrário da crença popular, nunca foi uma tribo ameríndia, senão, desde seu começo, um grupo étnico composto de africanos e ameríndios, que se juntaram para formar uma etnia: assim como os quilombolas Boni no Suriname.
Tudo isso reproduzia as formas organizativas descentralizadas dos quilombolas no Suriname e na Jamaica. E ainda que não conseguiram ganhar e manter o grau de autonomia alcançado no Suriname e na Jamaica, os descendentes dos Seminoles no México e nos EUA ainda protegem suas comunidades contra os governos mexicanos e estadunidenses: na Flórida estão reconhecidos como uma tribo semi-autônoma; e os africanos (negros Seminoles) em Oklahoma, Texas e México também se distinguem de seus vizinhos, chamando os negros dos EUA de negros de Estado. Segundo o setor nacionalista da organização New Afrika, dos EUA, que já trabalhou próximo a eles, os Seminoles africanos nunca se consideraram cidadãos dos EUA como fazem os afroamericanos.
Por último, a história lendária e a postura atual do povo dos Apalaches do Sul, que segue se recusando a integrar-se totalmente ao tecido social dos EUA, tem mais a ver com uma história esquecida de luta de seus ancestrais para se livrar de qualquer servidão ou dominação. Em vez disso, adotamos o mito burguês de que eles são irremediavelmente atrasados e ultra-racistas, embora, na realidade, a verdadeira cultura e prática hilbilly seja realmente isolacionista e independente, refletindo o espírito autonomista de seus ancestrais.
Haiti
A história do Haiti fornece um laboratório excelente para provar minha tese. O que se tornaria o país Haiti foi conhecido como San Domingo ou Santo Domingo, a parte ocidental da ilha de La Española no Caribe. Hoje em dia a República Dominicana ocupa a parte oriental da ilha. Ali, entre 1971 e 1804, houve uma das lutas mais titânicas jamais realizadas entre trabalhadores (escravizados) e seus amos. Por meio de uma análise dos fatos que atavessam essa luta podemos medir explicitamente os pontos fortes e fracos de nosso dragão e de nossa hidra: forças de mudança centralizadas e descentralizadas. Há aqui uma mina de ouro negligenciada que pode contribuir com nossa busca por lições históricas, a par da grande Revolução francesa de 1789.
Durante gerações anteriores à revolução francesa – que prepararam o cenário para a revolta haitiana ocorrida nos anos seguintes – guerrilheiros e comunidades quilombolas haviam agido por toda a ilha de La Española. Posteriormente, muitos de seus descendentes se distinguiriam entre as multidões de figuras heroicas pouco conhecidas da época. Sobretudo o intrépido Mackandal no período pré-revolucionário (por volta da década de 1750), que organizou e liderou um grupo seleto de quilombolas africanos [african maroons] e trabalhadores de plantações escravizados em uma conspiração preparada para derrubar as potências francesas e coloniais através de um uso maciço e desconcertante de uma vasta gama de venenos: contra indivíduos, gados, suprimentos, água e qualquer trabalhador africano suspeito de ser simpático aos franceses. Depois de anos aterrorizando a ilha, Mackandal cometeu um erro e foi traído e depois queimado na fogueira, paralisando seu movimento centralizado e bem organizado.
Naquele tempo, em quase todas as áreas, os Ameríndios nativos haviam sido exterminados, substituídos por um número infinito de africanos escravizados. Eles produziram tanto açúcar e outras culturas agrícolas que San Domingo se tornou a joia do império francês e a espinha dorsal da economia francesa. Desse modo, rapidamente os exploradores se esqueceram das campanhas de terror de Mackandal. No entanto, nos dois anos seguintes à explosão da revolução francesa e à subsequente desordem que causou no território colonial, uma nova geração surgiu para preencher a lacuna deixada por Mackandal.
Numa noite escura, trabalhadores escravizados e guerrilheiros quilombolas se reuniram secretamente em uma montanha fora da cidade. Juntos, eles representaram milhares de africanos das muitas fazendas e comunidades fugitivas nas montanhas.
A cerimonia e a organização foram supervisionadas por Boukman e por uma mulher escravizada, ambos líderes espirituais de Vodun [Vodú]. Não houve necessidade de discutir planos no último minuto. Eles sabiam melhor do que os escravos assalariados de Karl Marx que eles não tinham nada a perder além de suas correntes. E o tratamento horripilante que os seus senhores davam a eles apenas aumentou a certeza desesperada de que, uma vez que se rebelassem, teriam que matar ou morrer.
No entanto, Boukman e a mulher ofereceram a eles mais inspiração do que liderança centralizada. E quando a revolta começou pouco tempo depois, foi liderada por dezenas de grupos descentralizadas de trabalhadores africanos, grupos guerrilheiros quilombolas, com os quais outros grupos mestiços[4] logo se juntaram.
Antes de o famoso Toussaint L'Ouverture [líder oficial da revolução haitiana] entrar em cena, a revolução foi guiada pelas figuras que emergiram dos grupos descentralizados: os quilombolas Jean François, Bissou e Lamour Derance, Romaine-la-Prophétesse e Hyacinthe, o líder destemido na batalha de Croix des Bouquets. Os mestiços tinham vários grupos independentes e líderes distintos, além de um pequeno setor de brancos ligado à ala antiescravidão dos jacobinos franceses, que informalmente se aliavam a um ou outro grupo rebelde.
Por doze anos angustiantes, os revolucionários haitianos enfrentariam e derrotariam militarmente primeiro seus escravizadores coloniais e depois uma série de exércitos montados pela Espanha e Inglaterra, além de um exército de mestiços traidores [traitorous Mulatto army, no original] e, finalmente, dezenas de milhares de veteranos das tropas "revolucionárias" francesas de Napoleão Bonaparte. Os africanos vitoriosos fundaram o país do Haiti em 1803-1804; o único país da história do mundo estabelecido por trabalhadores anteriormente escravizados.
Que exemplo melhor poderíamos usar para avaliar as palavras de Marx sobre os "trabalhadores" empreendendo "quinze, vinte, cinquenta anos de guerra civil e lutas populares ... para se transformar e se formar para exercer domínio político"?
O gigante marxista C.L.R. James escreveu o clássico The Black Jacobins (1963, Random House), onde disseca essa luta. No livro, James compara o exército revolucionário haitiano liderado por Toussaint e mais tarde por Jean Jacques Dessalines e Henry Christophe com o posterior partido bolchevique russo: "[Toussaint e] ... seus generais negros cumpriram o papel político do partido bolchevique" (James, 283). Este bravo exército, brilhantemente liderado e estreitamente organizado, representa aqui o meu dragão. E o livro de James faz muito para resgatá-lo das sombras da história para o nosso estudo. Foram eles que apareceram como os elementos mais importantes enquanto os grupos descentralizados eram relegados ao segundo plano.
Então, a primeira vista, você pensaria que este dragão centralizado era a melhor arma dos revolucionários. No entanto, os imperialistas europeus da França, Inglaterra e Espanha (e os pretendentes EUA) não se renderiam a eles, mesmo que todos tenham sido derrotados ou tenham medo de intervir diretamente (como no caso dos EUA).
Porém, depois que Toussaint (apoiado pelo exército "revolucionário") assumiu o governo da ilha, os imperialistas o pressionaram e o levaram a uma posição em que ele e seu exército (o dragão) começaram a impor condições intoleráveis às massas revolucionárias de trabalhadores. E "no norte, na zona de Plaisance, Limbe, Dondon, a vanguarda [as massas] da revolução não estava satisfeita com o novo regime" (James, 275-276).
E, surpreendentemente, diante das ameaças renovadas de Napoleão e das maquinações hostis dos britânicos e americanos, "Toussaint se submete, junto com seus generais" (James, 325-327).
Assim, de uma só vez, esses líderes foram forçados a desempenhar o papel de mestres neocoloniais; nosso dragão foi cercado, algemado e acorrentado, e o 'exército revolucionário' foi posteriormente usado para devolver as massas à escravidão! Como Napoleão tinha medo deles, elaborou um plano secreto para escravizar todos os africanos do Haiti e, para isso, enviou seu cunhado acompanhado por tropas francesas cujo número chegou a cerca de sessenta mil. Reconhecendo a fraqueza das forças do "dragão" e as verdadeiras intenções dos franceses , “[Lamour] Derance e os pequenos chefes, no norte, sul e oeste, cada um em seu próprio distrito, pediu aos negros que se rebelassem" (James, 327). Agora vemos a hidra lutando contra o (agora) dragão traidor e os imperialistas franceses.
"É uma história que se repete várias vezes (Dessalines e seus generais perseguem esses 'bandidos'). Mais uma vez as massas demonstraram um entendimento político maior do que seus líderes "(James 338-339 e nota de rodapé 39). Nosso exército revolucionário, anteriormente heroico, limitou-se a esmagar as massas revolucionárias e forçá-las a "lutar contra generais negros [que estavam] tentando derrotar os 'bandidos' para os franceses" [trazendo novamente nossa hidra ao centro]. "Os pequenos líderes locais repeliram os ataques [dos generais negros e franceses] ... expondo os franceses a maiores riscos de febre amarela" (James, 346-347).
Em resumo, vemos os elementos descentralizados da hidra iniciando a revolução, sendo deslocados pelo exército de Toussaint - o dragão - apenas para retomar seus papéis de liderança durante uma crise, uma vez que o dragão capitulou para os franceses; mostrando-se, assim, como a arma mais essencial desenvolvida pelos revolucionários.
Mais tarde, como é sabido, Toussaint foi sequestrado e levado para a França, onde morreu na prisão, abrindo caminho para seu principal tenente, Jean Jacques Dessalines, mudar de lado (novamente) e retornar ao lado dos rebeldes, reunindo o exército revolucionário e junto com as forças da "hidra", aniquilar completamente as forças francesas na ilha para depois declarar independência e se tornar imperador do novo país.
Excelente soldado, Dessalines provou ser um tirano cruel para o povo haitiano. Por esse motivo, ele foi assassinado alguns anos depois de assumir o poder. Ele foi substituído por outro general das forças do dragão: Henry Christophe, nomeado presidente em 1807, proclamando-se rei em 1811. Ele também seria assassinado por seu próprio povo em 1829.
Portanto, vemos como no Haiti as forças do dragão tiveram um papel muito ambivalente na luta rebelde pela independência: elas começaram como combatentes obstinados e geniais contra todos os elementos imperiais e coloniais europeus e contra os traidores entre os mestiços e todos que queriam a qualquer custo manter os africanos escravizados. Durante o desenrolar da luta revolucionária, todos mudaram oportunamente para o lado dos imperialistas franceses e depois tentaram sangrar as massas revolucionárias e seus grupos descentralizados até a morte, esperando que os franceses lhes permitissem servir como uma nova elite de policiais africanos contra um classe de trabalhadores africanos re-escravizados. Incapaz de esmagar os rebeldes, as forças do dragão se reuniram com os elementos hidra e contribuíram para a derrota total dos franceses, apenas para trair novamente as massas revolucionárias, estabelecendo-se como uma elite africana ditatorial e exploradora.
Por sua vez, as forças descentralizadas da hidra nunca se desviaram de seu objetivo de obter a maior liberdade possível frente a servidão e a opressão. Desde os tempos pré-revolucionários de Mackandal, até a Guerra Revolucionária do Haiti de 1791-1804, e até os nossos dias, eles continuaram a lutar por esses objetivos. E é muito instrutivo saber que, além de combater os franceses durante sua revolução, eles também sofreram ataques das forças do dragão de Toussaint, que mostraram ódio e medo dev tudo, desde sua recusa em desistir de suas formações organizativas quilombolas/descentralizadas e por sua prática dos sistemas espirituais tradicionais de Vodú, que fizeram muito para inspirar seus soldados a se sacrificarem pela causa da liberdade. E os ataques traiçoeiros realizados contra ele por Christophe e Dessalines - mesmo quando os dois grupos eram aliados contra os imperialistas - foram sinais precoces de que as forças do dragão se preocupavam sobretudo com o poder em benefício próprio.
Depois de serem marginalizados após a expulsão dos franceses, os elementos descentralizados da hidra foram forçados, mais uma vez, a entrar na clandestinidade e eventualmente se transformar em sociedades semi-secretas de Vodú, que ainda hoje permanecem como um elemento autônomo pouco reconhecido ou compreendido entre os haitianos oprimidos. O clássico de Wade Davis, The Serpent and the Rainbow e Voodoo in Haiti, de Alfred Metraux (1972, Shocken Books), descrevem um panorama fascinante de como esses elementos descentralizados atravessaram os séculos, desde guerrilheiros quilombolas até combatentes revolucionários, então forçados a se esconder apenas para reaparecer hoje como sociedades semi-secretas de Vodú, como os Bizango, Zobop, Bossu, Mackandal, Voltigeurs e outros; constituindo, assim, um grande setor da sociedade haitiana que nenhum opressor nativo ou estrangeiro foi capaz de erradicar; embora o ditador "Papa Doc" Duvalier tenha sido capaz de manipular alguns para integrá-los à sua temida polícia secreta "ton ton macoute".
Em outro livro de Stan Goff, Sex and War, ele nos diz: "Existem Maroons novamente no Haiti, com a onda de repressão espalhada pelo país após o último golpe de estado fabricado pelos EUA (29 de fevereiro de 2004) ... em 2004, visitei duas vezes uma dessas comunidades no planalto central do Haiti".
E não é necessário limitar nosso estudo das vantagens e desvantagens dos grupos centralizados e descentralizados, como eu fiz. E a história das forças descentralizadas que derrotaram o exército de Napoleão na Espanha? Ou as forças descentralizadas que derrotaram todos os invasores nas regiões fronteiriças entre o que hoje são o Afeganistão e o Paquistão? Ou os insurgentes descentralizados que estão derrotando o EUA e seus aliados no Iraque?
Últimas palavras de um marxista sagaz
C.L.R. James escreveu The Black Jacobins muitos anos antes de suas teorias sobre essas ideias se cristalizassem, mas em Introduction to Marxism for Our Times: C.L.R. James on Revolutionary Organization, editado por Martin Glaberman (1999, University Press, Mississippi), descobrimos que "em 1948, James escreveu o que acabou sendo publicado como Notes on Dialetics". Foi um estudo da organização da classe trabalhadora visto do ponto de vista da dialética e sinalizou sua ruptura definitiva com o trotskismo devido à rejeição do partido de vanguarda. A importância dessa ruptura e a validação teórica da leitura de James foi demonstrada oito anos depois na revolução na Hungria em 1956 e depois na revolta francesa de 1968, na primavera tcheca de 1968 e no movimento de solidariedade na Polônia em 1980... Por um lado, nenhum grupo de esquerda ou direita estava de alguma forma preparado para aceitar a possibilidade de uma revolução proletária nas ditaduras totalitárias da Europa Oriental ou em um país democrático como a França. Todas as suas suposições estavam equivocadas: que a classe trabalhadora necessitava de um partido para guiá-lo na revolução; que a classe trabalhadora precisava de uma imprensa e uma rede de comunicação; que o necessário era algum tipo de crise na sociedade, como depressão ou guerra. Sem nenhum desses fatores presentes, os trabalhadores da Hungria tomaram, em 48 horas, todos os meios de produção daquela sociedade; eles criaram uma forma de contra-poder, forçaram o Partido Comunista a se reorganizar sob outro nome e foram esmagados por nada menos que uma invasão de tanques soviéticos.”
[E em suas próprias palavras] "James escreveu: ‘Se o partido é o conhecimento do proletariado, o amadurecimento do proletariado significa a abolição do partido. Esse é o nosso universal, dito em sua forma mais ousada e abstrata ... O partido como o conhecemos terá de desaparecer. Toda a população trabalhadora se tornará o Estado. Esse é o desaparecimento do Estado. Não pode ter outro significado. Murcha ao se expandir a tal ponto que se torna seu oposto. E o partido faz o mesmo ... porque, se o partido não murchar, o estado nunca desaparecerá’" (C.L.R. James, Notes on Dialectics, London: Allison and Busby, 1980, 175-76).
“Por outro lado, mesmo depois disso, a esquerda foi incapaz de lidar com os acontecimentos que demoliram suas teorias sobre a necessidade de um partido de vanguarda e passaram a ignorar os movimentos na Hungria, França e Polônia - movimentos sobre os quais Marx ou Lenin teriam se debruçado a fim de aprimorar e atualizar suas teorias revolucionárias ”(Glaberman, Introduction to Marxism for Our Times).
Conclusão
É explícito que o atual centro de gravidade, o elemento do qual tudo depende e é sustentado, é a consciência global compartilhada pelas multidões de trabalhadores e povos oprimidos da Terra de que suas vidas estão se tornando mais intoleráveis a cada dia, aumentando a conscientização sobre a necessidade de mudanças revolucionárias (como nossos quilombolas anteriores se conscientizaram da necessidade de escapar da escravidão) e a capacidade dessas multidões de se comunicarem e compartilharem ideias e métodos sobre as melhores maneiras de agir.
Os problemas globais causados pelos imperialistas de hoje, seu voraz acumulo de riqueza e sua destruição do meio ambiente levarão as multidões a usar todos os meios para alcançar as mudanças necessárias - ou perecer. As formas modernas de comunicação fornecerão a eles os meios para atualizar e/ou imitar os pontos fortes da hidra e evitar suas fraquezas enquanto se protegem da tendência dos dragões de concentrar o poder opressivo em suas mãos.
Portanto, como as necessidades compartilhadas e a necessidade de mudança já estão presentes juntamente com as ferramentas para comunicá-las, nossa consideração final é se as massas devem centralizar sua organização (o que não deve ser confundido com a necessidade óbvia de coordenar seus esforços). A isso respondo com um enfático “não!”. E defendo ainda que essa centralização apenas tornará mais fácil para nossos opressores nos identificar e reprimir - prolongando a crise que nossa geração precisa enfrentar.
A trajetória de nosso dragão e hidra é explícita. A escolha entre eles está em suas mãos.
Epı́logo de Josep Gardenyes[5]: Shoatz, Marxismo e as responsabilidade anticoloniais do anarquismo
Russell 'Maroon' Shoatz, cujo apelido significa quilombola, nasceu em 23 de agosto de 1943. Ele participou do Black Panther Party for Self-Defense (Panteras Negras) e do Black Liberation Army. Condenado à prisão perpétua pelo assassinato de um policial na década de 1970, ele foi preso no Estado da Pensilvânia em 1991 e colocado em regime de isolamento, passando entre 23 e 24 horas por dia em uma cela de dois por três metros e meio, sempre iluminados por luzes artificiais. Em 2014 ele foi transferido para o regime comum após uma campanha de solidariedade internacional.
O texto de Maroon representa um processo coletivo de autocrítica e evolução em direção às ideias anti-autoritárias nas fileiras do movimento negro de libertação na América do Norte. Alguns de seus antigos colegas que compartilharam as experiências dos Panteras Negras e do Black Liberation Army e que criticaram seu antigo vanguardismo e autoritarismo adotaram explicitamente o anarquismo, enquanto outros, como Maroon, não o fizeram explicitamente, preferindo o intercomunalismo ou outras fórmulas.
A história citada neste texto também não é anarquista, embora muito anárquica. Nós o editamos porque acreditamos que ele deve fazer parte do mapa de referências históricas que usamos para construir, entender e projetar nosso anarquismo.
O marxismo, na prática, sempre se baseou em genocídio e progresso. Não há exemplo de um governo de inspiração marxista que não tenha sido totalmente neocolonialista, do Vietnã com seu tratamento dos Hmong, à Nicarágua e à guerra sandinista contra os Miskita, ou à política agrária de Chile e Allende em relação aos Mapuche. Não é de surpreender, dado que o pensamento marxista é desenvolvido usando a ótica do progresso e uma crença implícita em sua própria superioridade e na do futuro socialista. O marxismo é parte do que podemos chamar de projeto Ocidental.
No entanto, durante algum tempo, pareceu ser a grande alternativa ao capitalismo. Portanto, as lutas anticoloniais do século XX foram expressas em termos marxistas e teóricos como Frantz Fanon e C.L.R. James tentaram desenvolver aspectos da grande obra de Marx para superar suas deficiências em relação ao eurocentrismo e reconciliar essa arma teórica com as necessidades das lutas anticoloniais.
Com o tempo, ficou explícito que o que se entendida por marxismo não era antagônico ao capitalismo; o socialismo nada mais é do que outra estratégia de desenvolvimento capitalista, mais eficaz que o liberalismo para alcançar o progresso em sociedades com uma burguesia fraca. Se o liberalismo conseguiu erguer duas potências capitalistas dos dois séculos anteriores, a Grã-Bretanha e os Estados Unidos, o socialismo conseguiu erguer o grande mercado do século XXI: a China. Enquanto isso, o anticolonialismo marxista, no Camboja, Argélia, África do Sul etc., tornou-se outro mecanismo neocolonial.
O anarquismo não poderia desempenhar um papel influente no movimento anticolonial, pois estava muito reduzido - graças principalmente ao socialismo - naquela época. Mas não há razão para afirmar que os resultados teriam sido muito melhores. Embora o anarquismo sempre tenha entendido a natureza do poder muito melhor que o marxismo, a forma mais extensa de anarquismo na época, o anarco-sindicalismo, nunca soube destruir o poder, como podemos observar nas falhas da CNT na Espanha e da ISO na Itália. Além disso, as noções de progresso e eurocentrismo, tão fundamentais para o projeto ocidental e a reprodução do capitalismo, também abundavam nas primeiras expressões do anarquismo.
No fim, as melhores armas do anarquismo são as que vão contra a democracia liberal, o marxismo e outros mecanismos ocidentais que servem para encantar movimentos, recuperar lutas e retornar qualquer dissidência ao caminho do progresso. Mas o anarquismo ainda contém muitas visões progressistas e eurocêntricas. Falta um saber anticolonial mais profundo. E embora esteja bem posicionado para combater nas novas lutas anticoloniais (um efeito que já vimos até certo ponto no Egito e na Tunísia), não tem nenhuma visão positiva da destruição do colonialismo para desempenhar o papel influente que primeiro teve o marxismo (um dica: poderia ter a ver com o fato de ele continuar a entender o colonialismo como um fenômeno marginal, portanto, entende o Ocidente como um lugar e não como um projeto).
Igualmente, nem deveria pretender exercer esse papel, que no final é uma posição autoritária da ideologia europeia que oferece soluções para os outros cantos do planeta. Da mesma forma, deve aprender com as lutas contra o colonialismo, contra a expansão do capital, contra o poder, que ocorrem há séculos em todos os continentes e que ainda se mantém, lutas que não são chamadas anarquistas, mas que sempre parecem ter algo anárquico, mesmo que seja apenas um setor, uma tradição ou uma prática entre várias. Uma pesquisa para nos ensinar o essencial do anarquismo, nos ensinar a encontrar o anárquico em todos os conflitos e também ver as operações do colonialismo em nossas próprias vidas e, finalmente, identificar os últimos bolsões de progresso, de alienação, do próprio capitalismo na visão de mundo anarquista. Nunca mais reproduzir e ampliar o que queremos destruir.
NOTAS:
[1] Nota de tradução Edições Insurrectas: Toda prisão é política.
[2] N.T. Insurrectas: O autor utiliza originalmente maroons, termo comum em territórios colonizados pelo Estado britânico, como Jamaica e EUA. Em espanhol é traduzido como cimarrón. Aqui decidimos traduzir por quilombolas para facilitar o entendimento. Todavia, apesar das particularidades de cada território, os 3 termos se referem às pessoas que foram escravizadas e se revoltaram, constituíram territórios liberados nas matas e montanhas do Caribe e da América do Sul, de onde articulavam as lutas pela liberdade e o enfrentamento direto à escravidão.
[3] Nota de Josep Garnedeys: O termo original se refere a um tipo de escravidão com contrato, normalmente de 7 anos, depois do qual o trabalhador seria colocado em liberdade. A escravidão limitada por contrato se desenvolveu na Inglaterra como maneira para separar os brancos escravizados (que teriam a possibilidade de alcançar os direitos humanos proclamados por importantes filósofos ingleses da época) dos negros escravizados e como mecanismo de controle contra as massas pobres e endividadas recentemente separadas de suas terras e excluídas de suas profissões graças aos processos contemporâneos de cercamento das propriedades comuns e do progresso tecnológico. Centenas de milhares de europeus brancos foram enviados para trabalhar nas colônias contra sua vontade sob o regime da escravidão contratada.
[4] N.T. Insurrectas: O autor utiliza o termo Mulatto groups para se referir a grupos que possuíam etnias misturadas e miscigenadas. Como no território dominado pelo Estado brasileiro este termo foi usado historicamente de um modo pejorativo e racista, decidimos traduzir por mestiços.
[5] Este epílogo foi escrito e publicado pela distro Josep Gardenyes juntamente com a versão do texto original em espanhol. Decidimos traduzir e manter na edição em português por conta dos comentários feitos sobre a relação entre as lutas anarquistas e as revoltas anticoloniais.