Shuli Branson
Por um Feminismo Trans-Anarquista: Transição como Cuidado e Luta
Contágio Transgênero
Estou escrevendo esse ensaio a partir de um sentimento de insatisfação com o discurso anarquista, de frustração com o discurso trans, de frustração com o discurso feminista. Escrevo como feminista anarquista trans[1], para tentar trazer lições feministas ao anarquismo, para tentar re-enquadrar importantes ideias feministas enquanto fundamentalmente anarquistas e para tratar das experiências e possibilidades de transição como uma prática anarcofeminista. Pretendo assumir riscos em minhas reivindicações e conclusões, riscos de fracasso, riscos de me equivocar, a fim de que se torne possível agir para mudar o mundo aqui e agora, e não apenas em um futuro imaginado. Utilizarei como base obras de todos esses campos, mas lerei assumindo posicionamentos, lerei impiamente, como meios que se igualam aos fins que imagino - junto com todas as pessoas com quem estou conversando - pela emancipação coletiva. Sob esse prisma, sucumbirei às seduções das ideias passadas de emancipação gay e de emancipação feminina, tentando evitar qualquer ingenuidade ou idealização, porque acredito que nosso anseio por seu entusiasmo é legítimo, ainda que seus movimentos tenham fracassado. Não concordo com uma análise supostamente madura e rígida que nos prende em nossas circunstâncias ou que toma a reforma ou a assimilação como os únicos caminhos possíveis. Temos de ser ousados em nossas reivindicações e não fazê-las na linguagem da filosofia, da economia, do materialismo, da política, que sufoca os desejos que podemos descobrir em nossas práticas cotidianas. Para tanto, entendo o feminismo como um movimento que busca erradicar todas as hierarquias naturalizadas, o anarquismo como uma demanda para acabar com a ordem social, e a transgeneridade [2] (ou transição) como a possibilidade de mudança, de alteração de nossas circunstâncias.
Já se passaram oito anos do chamado "ponto de virada transgênero" oficial, que marcou uma representação diferenciada das pessoas trans na mídia - simbolizada por Laverne Cox, uma mulher trans negra que apareceu na capa da revista TIME. Se esse marco de representação ou visibilidade gerou esperanças de mais inclusão, de possibilidades de assimilação (especialmente para pessoas brancas que vivem de acordo com parâmetros coloniais) e de benefícios para um movimento trans reformista nos moldes do movimento gay rights [3] após a era da liberação, essas esperanças coexistiram com a violência contínua e crescente contra mulheres trans negras. Ou seja, o espetáculo da inclusão e visibilidade trans celebrado nesse "ponto de virada trans" foi refletido por uma violência espetacular como integrante da realidade cotidiana. Então, o que isso significa? No espírito da legislação sobre crimes de ódio, a violência contra as mulheres trans negras poderia ser classificada como uma resposta individualizada e fóbica - em sua maior parte, não explicitamente patrocinada pelo Estado. Alguns talvez ainda tenham esperança de que o Estado possa proteger melhor esse grupo específico com punições mais rigorosas contra a ocorrência de violência discriminatória. É claro, contudo, que a criminalização de mulheres trans racializadas operou em ritmo acelerado, e há exemplos de pessoas como CeCe MacDonald, que foi presa por autodefesa contra ataques antitrans. Portanto, o apelo ao Estado, na maioria das vezes, causa mais danos do que benefícios.
De fato, a última década também foi marcada por uma crescente onda de violência estatal contra as pessoas trans, desde os famosos projetos de lei sobre banheiros (HB2 na Carolina do Norte, que combinou a legislação antitrans com políticas antitrabalhadores) até a mais recente onda de legislação nos Estados Unidos que criminaliza a assistência médica trans, os pais de crianças trans, a discussão sobre a homossexualidade nas escolas, a participação trans em esportes, shows de drags e muito mais. Embora eu pudesse argumentar por quais motivos acho que essa tendência atual está consolidando uma direita fascista (cristã), vou me concentrar em argumentar que a transgeneridade é, com efeito, uma ameaça à sociedade atual - mas de uma forma positiva, uma ruptura com normas que contribuem para a reprodução da violência na atual ordem social. Embora eu não suponha que todas as pessoas trans representam essa ameaça do mesmo modo, nem que a assumem explicitamente, acho que feministas anarquistas trans - feministas-trans-anarquistas - podem olhar para nossas formas de vida em transição como uma maneira de cuidado e luta contra esse mundo e de criação de um mundo diferente. Algumas pessoas trans querem apenas viver e ser deixadas em paz. E, no entanto, isso ainda é visto como uma ameaça em si. Para nos tornarmos transfeministas anarquistas, encarnamos essa ameaça ao Estado, ao capital, a todas as formas de hierarquia e, por meio do cuidado trans e do apoio mútuo, criamos outros mundos que se contrapõem à violência cotidiana anti-trans.
Em Atmospheres of Violence, Eric A. Stanley traça a persistência do violento antagonismo trans ao lado da aparente narrativa de progresso da inclusão de gays e, então, de pessoas trans. O argumento fundamental de Stanley, considerado anarquista, é que "a violência racializada antitrans/queer não é antagônica ao estado democrático; ela está entre seus fundamentos - uma reivindicação menor que exige o fim do mundo" (2021: 114). Essa ascensão paralela da representação e da violência não é um paradoxo - trata-se de um trabalho importante de oferecer a promessa de uma vida boa, ao mesmo tempo em que nos bate com o bastão da violência cotidiana como sendo o melhor que podemos esperar. A inclusão sempre reproduz as hierarquias raciais, forjadas pelos legados da escravidão e do colonialismo (dos colonizadores); em última análise, a inclusão fortalece ainda mais o sistema que queremos destruir, conferindo-lhe o álibi da "diversidade". A ampliação do círculo de inclusão continuará expulsando outros para ambientes miseráveis de vida ou morte. Devemos exigir o fim do mundo, como escreve Stanley, porque estamos diante de um mundo de dominação racial que se dá por meio da hierarquia de gênero e da exploração econômica. Em uma abordagem anarquista da transição, podemos argumentar que nossos desejos contribuem para decretar o fim deste mundo, pois os orientamos para longe da inclusão e para a autodefesa e o cuidado comunitários.
A visibilidade e a representação podem ser uma armadilha, como sugere Stanley, e muitos outros concordam. No entanto, com a superação do ponto de virada, houve mais compartilhamento de informações e recursos que permitiram que mais pessoas entendessem suas próprias necessidades e desejos de transição. A visão reacionária sobre esse crescimento (relativamente pequeno) do número de pessoas trans - uma velha jogada reacionária na forma de fomentar o pânico moral - é considerar a transexualidade como um contágio [4]. Os recentes ataques legislativos e políticos à vida trans nos Estados Unidos têm se concentrado no acesso à assistência médica afirmativa, especificamente para jovens que (talvez) queiram fazer a transição. Junto com o ataque contra professores/educação, contaçaõ de histórias de drags e outras formas de mostrar que a vida queer não é ameaçadora, espalhou-se a ideia de que os adultos estão "preparando" as crianças para se tornarem transgêneros/transexuais (um eco das fobias passadas de tornar as crianças gays). O termo "grooming" vem da linguagem relacionada ao abuso, neste caso o abuso sexual na infância, uma forma de manipulação capaz de criar uma vítima que talvez nem mesmo perceba que está sendo abusada. Como de costume, a percepção de gays como abusadores de crianças surge para encobrir o fato de que a família cis-hétero (cristã fundamentalista) é mais frequentemente o cenário desse tipo de abuso.
Noah Zazanis reverte essa alegação de grooming em seu ensaio "Social Reproduction and Social Cognition", apontando para "as muitas influências sociais dedicadas a preparar as crianças para a cisgeneridade". Zazanis nos lembra que "a estrutura de gênero sob o capitalismo é formada por meio da violência em todos os casos", chegando à conclusão de que "em casos de identificação cisgênera [...] essa coerção tem sido mais eficaz" (2021: 43). Em outras palavras, o próprio gênero é uma ferramenta disciplinar, desenvolvida no contexto do colonialismo, do capitalismo racial e do Estado. Ainda assim, há algumas ideias que eu gostaria de extrair dessa afirmação de que a identificação cisgênera resulta de "coerção mais eficaz". De certa forma, podemos associá-la com o sentimento de que as pessoas cisgêneras são, na verdade, transexuais ineficientes ou pessoas que não têm a capacidade de se assumir. Esse tipo de lógica também está ligado a diferentes concepções de sexualidade: ou seja, gênero/sexualidade existe em um espectro, o que significa que ninguém realmente existe nos polos do binário hétero/gay, homem/mulher. E, no entanto, ainda temos um grupo específico de pessoas que fazem a transição e que fazem sexo gay, e que ostensivamente fazem isso abertamente entre algumas pessoas.
Em Epistemology of the Closet, Eve Kosofsky Sedwick descreve esse dilema como “uma incoerência de definição” (1990: 11), que
mantém a visão minoritária de que existe uma população distinta de pessoas que "realmente são" gays; ao mesmo tempo, mantém as visões universalizantes de que o desejo sexual é um solvente imprevisivelmente poderoso de identidades estáveis; que as pessoas aparentemente heterossexuais e as escolhas de objetos são fortemente marcadas por influências e desejos do mesmo sexo e vice-versa para as pessoas aparentemente homossexuais; e que pelo menos a identidade heterossexual masculina e a cultura masculinista moderna podem exigir para sua manutenção a cristalização expiatória de um desejo masculino do mesmo sexo que é generalizado e, em primeiro lugar, interno. (1990: 85)
Recorro a este longo excerto porque, já no âmbito desta incoerência de definição, Sedgwick delineia os fracassos inerentes a um certo movimento de emancipação e de direitos dos homossexuais. A tendência universalizante talvez se alinhe com as primeiras iterações da liberação gay, como a de Guy Hocquenghem em Homosexual Desire, que vê o próprio desejo como potencialmente disruptivo do capitalismo e do Estado, juntamente com o patriarcado cis-hetero, especificamente nos modos como transcende a identidade individual - de fato, no trabalho de Hocquenghem, o Estado imperialista e capitalista pode ser visto como uma formação de reação à ameaça interna da homossexualidade, tal como diz Sedgwick. Enquanto isso, a tendência minoritária se alinha com o estreitamento da liberação no movimento dos direitos gays, empregando um essencialismo estratégico para ganhar alguns favores do Estado, que potencialmente reconhece o acordo de inclusão que implica em exclusão para outros. Mas é no ponto final de Sedgwick sobre a maneira como a sociedade ocidental moderna é formada por meio dessa convulsão da sexualidade masculinista e do gênero em torno da ameaça interna do desejo por pessoas do mesmo sexo (e talvez possamos acrescentar aí a feminização) que devemos mirar. Até mesmo muitas tendências liberacionistas, como Guy Hocquenghem revela em Gay Liberation After May '68, permaneceram presas a piedades esquerdistas que não fomentariam um profundo desenraizamento do Estado e do capitalismo, juntamente com suas armadilhas sociais de gênero/sexualidade, como a família, renunciando, em última análise, a uma possibilidade anarquista. Ou seja, até mesmo os esquerdistas ficam presos em lógicas estatais ou abordagens reformistas (Maoismo ou Marxismo-leninismo, socialismo, uma incapacidade de dar fim o liberalismo). O fracasso do movimento pelos direitos dos homossexuais é bastante evidente; o fracasso da liberação gay talvez ainda precise ser compreendido - e eu diria que esse fracasso vem de um anarquismo insuficiente (mais precisamente, um feminismo anarquista trans insuficiente). O fato de muitos dos primeiros escritos da liberação gay terem encontrado ressonância hoje em dia com anarquistas queer e comunistas antiestatais demonstra que podemos ser capazes de completar o pensamento esboçado ali. Esse pensamento exige, retomando Stanley, um fim do mundo.
O fracasso da liberação gay propiciou o fracasso do movimento pelos direitos dos homossexuais e, nesse processo, a dispersão incluiu mais uma separação de definições, em que os homossexuais de classe média - empregando exatamente o "essencialismo estratégico" mencionado acima, com o objetivo de maximizar sua própria chance de reconhecimento - retiraram as mulheres trans do termo mais amplo, então em uso, "homossexualidade". As formações de identidade que sustentam um movimento baseado em direitos se repetem. Em um ensaio recente, "We Are All Nonbinary: A Brief History of Accidents", Kadji Amin traça a maneira como as posições de identidade binária, seja gay/hétero ou trans/cis, são definidas a partir da perspectiva da posição não-normal/desviante e, assim, acabam idealizando a norma fixa, apesar da quase universal experiência vivida fluida. O argumento de Amin demonstra outra versão da incoerência definicional de Sedgwick, em que há um desalinhamento universal com as normas binárias de sexo e gênero, mas apenas uma minoria que reivindica os termos de desvio, como homossexualidade ou transgeneridade.
Amin se baseia nessa definição retroativa para destacar outra limitação do horizonte da política trans que se restringe à identidade individual. Para recapitular a análise de Amin: a heterossexualidade é definida retrospectivamente após a definição legal/médica/psiquiátrica da homossexualidade; o cisgênero é definido somente após a definição de transgênero. Essas definições não mudam o fato de que, digamos, muitos homens autoidentificados como heterossexuais fizeram ou fazem sexo com outros homens. A heterossexualidade, na verdade, não descreve "uma orientação sexual exclusiva, normal e saudável para com o sexo oposto", mas sim uma reivindicação de aspiração a "uma normalidade idealizada" (Amin 2022: 110-11). A mudança na definição de "transgênero" que Amin observa historicamente tem um efeito diferente. Transgeneridade é definida como uma categoria fora da homossexualidade, em decorrência de divisões no movimento de liberação gay, mas também como uma tática para que as pessoas trans tivessem acesso a hormônios e cirurgias. Na tradição (neo)liberal, a redefinição estratégica da transgeneridade acaba criando uma categoria de identidade destinada a realizar reivindicações políticas. As pessoas trans não são mais, como Amin afirma expressamente, "pessoas que desejam a transição", uma categoria que entende a transgeneridade de modo relacional, em vez de uma identidade - sendo as pessoas cisgêneras aquelas que não desejam a transição. Trans é sua própria identidade solidificada contra o mito de uma identidade social cisgênera, alguém que se sente à vontade em seu gênero em correspondência com o sexo que lhe foi designado no nascimento. É claro que, por experiência, até mesmo pessoas presumivelmente cis têm problemas com as normas de gênero. Mas pode haver uma distinção entre o desconforto - ou até mesmo uma perspectiva crítica - e o desejo de alguém modificar sua apresentação, sua fisiologia, seu status social e legal para corresponder ao seu gênero. (Novamente, dicas sobre o espectro universalizante).
O argumento mais amplo de Amin faz uma importante contribuição para a compreensão de gênero/sexualidade fora das categorias de identidade que despojam o desvio de gênero/sexualidade não apenas de seu contexto real, mas também de seu poder de resistência e construção de mundo. Combino a afirmação de Zazanis de que a cisgeneridade resultaria de uma coerção bem-sucedida e o argumento de Amin de que a invenção do termo cisgênero ajuda a espalhar o mito de que qualquer pessoa se sente realmente confortável em seu gênero, para reiterar o entendimento fundamental de que o gênero, antes de qualquer coisa, é uma ferramenta disciplinar. Embora o ensaio de Amin compreenda o conceito de performatividade de Butler e seu legado de leituras equivocadas como uma simples mudança de figurino, essa ideia de gênero como disciplina sustenta a teoria de Butler, que claramente vê o gênero como algo feito sob ameaça. Mas eu sugeriria que a reformulação da definição de Amin se torna importante para reimaginar a transgeneridade em sua ameaça potencial. Já que, como ele escreve, as pessoas trans são aquelas que "desejam a transição", poderíamos especificar, seguindo Zazanis, que esse desejo leva a uma recusa da disciplina e da coerção. Essa recusa é o que eu gostaria de desenvolver em um entendimento anarquista da transição.
Se nos atemos simplesmente à questão de gênero como um instrumento disciplinar - como uma forma vivida de opressão - então, quando falamos sobre pessoas trans, corremos o risco de nos confinar nessa posição abjeta. É compreensível que seja difícil ignorar a experiência vivida de opressão e violência, mas ela se torna parte integrante da (auto)definição. Quando a situação social da transgeneridade se transforma em uma posição de identidade no clima neoliberal, vemos um apego à abjeção da opressão, especialmente quando isso pode ser recompensado pela "política da deferência", em que o fato da opressão posicional supostamente torna suas ideias políticas mais dignas de serem ouvidas.
Por outro lado, a posição reativa que deseja suprimir o nominalismo trans que permite, como Amin descreve, uma identidade não binária sem expressão social ou vivida, também corre o risco de ficar presa. Nominalismo significa aqui que sou trans porque digo que sou. Sou não binário, mesmo que não me desvie das expectativas de gênero do sexo que me foi atribuído à força, a tão ridicularizada autoidentificação. Entendo a objeção de Amin ao nominalismo não apenas como uma tentativa de manter algumas pessoas fora da transgeneridade ou da não normatividade de gênero, mas como uma tentativa de manter o foco na transgeneridade como uma experiência social vivida. O nominalismo, adverte ele, pode se tornar um idealismo em que o gênero é entendido simplesmente como uma identidade interna. Entretanto, a resposta de Amin ao medo de perder a especificidade da transgeneridade pode levar a resultados semelhantes aos do teste médico da "vida real", em que a transgeneridade é arbitrada ("guardada") a partir de uma determinada medida e autoridade externas. Nomear-se trans pode muito bem ser uma articulação do desejo de fazer a transição, mas não sabemos em que ponto do processo essa pessoa se encontra, juntamente com todas as dificuldades de acesso às formas de transição e as vulnerabilidades a que ela se expõe. A reivindicação de gêneros diversos pode não apresentar uma mudança material clara no atual momento, mas não sabemos onde ela termina. Podemos mantê-la aberta e, ao mesmo tempo, reconhecer que existem posicionamentos diferenciados em relação ao poder e à violência.
Reformulando: queremos entender a transgeneridade por meio de seus efeitos materiais. Mas, ao fazê-lo, a experiência trans ainda pode acabar sendo avaliada pela sujeição à violência, pela sua exclusão de determinados serviços ou do acesso a hormônios ou cirurgias [5]. Isso apenas complementa a definição medicalizada de transexualidade, que tem sido aplicada tanto externamente (por profissionais médicos e psiquiátricos) quanto internamente (por pessoas trans que buscam acesso e, portanto, cumprem as normas médicas para obter o que querem e precisam). Certo pensamento materialista poderia simplesmente invocar a transgeneridade como definida por intervenção médica (uma modificação material do seu corpo) ou por uma história de trauma de gênero (a violência material dirigida ao seu corpo). Esse binário deixa de fora outras formas de transição - transição social, que provavelmente inclui a maioria das pessoas trans, mas também formas de transição legal em relação à documentação. Se esse binário na definição trans, por meio da medicina ou da violência, permanecer em consonância com a normalização da instituição médica, ele poderá consagrar caminhos específicos de transição, que mantenham intacto o binário patriarcal. Mas, como Hil Malatino aponta em Side Affects, apenas um pequeno número de pessoas trans conseguiria de fato viver de acordo com uma definição médica de transição como destino, uma vez que o acesso aos recursos geralmente está fora de alcance ou é intermitente, ou nem sempre é desejado. Portanto, houve um giro nas visões materialistas de transgeneridade voltado à transição como prática social. A definição de transgeneridade por meio de um processo interminável de transição visa evitar a reprodução da violência da ordem social; entende a disciplina e a coerção que nos colocam em categorias de gênero imutáveis e recusa esses termos (destroi o mundo) para oferecer um caminho vivido em direção a um mundo diferente no processo desigual, imprevisível, difícil e muitas vezes alegre de mudar de gênero e viver múltiplas vidas sexuais.
Dean Spade escreve que as narrativas de transição singulares e medicalizadas funcionam para interferir no desejo trans: "o reconhecimento de que as pessoas trans têm gostos e interesses distintos da possibilidade de se adequar às normas de gênero suscita a ameaça discutida anteriormente de que, de fato, as pessoas trans podem estar fazendo sua própria engenharia" (2006: 324). Spade entende especificamente o desejo de transição como uma ameaça à ordem social. Parte desse desejo de transição é descrito por Susan Stryker como "um meio de desidentificação com posições de sujeito compulsoriamente atribuídas": a pessoa trans escolhe "um conjunto de práticas que precipita a exclusão de uma ordem naturalizada de existência que busca se manter como a única base possível para ser um sujeito" (1994: 249). Seria um erro imaginar isso como uma simples liberdade de escolha baseada em um sujeito autônomo, uma vez que, como Stryker aponta, não apenas escolhemos ser excluídos, mas somos compelidos por nossos próprios desejos, por nossa incapacidade de nos encaixarmos nessa ordem naturalizada. Nessa teorização da vida trans, Stryker funde o indivíduo e o coletivo ao ponto de contradição, com um afeto politizado, a raiva, que pode alterar o espaço de compreensão do eu, do mundo e de suas estruturas de poder.
Mas, longe da ameaça de "engenharia de nós mesmos" que Dean Spade articula, a combinação de certas versões do materialismo trans com as normas de representação ainda corre o risco de acabar limitando o escopo da transgeneridade a outro movimento identitário e orientado em torno da conquista de direitos - em outras palavras, apenas clamando por sobrevivência sem exigir o fim do mundo. Preocupo-me com o fato de que a iteração de uma política trans que rejeite o legado da liberação gay (talvez devido à sua bastardização na teoria queer) e sua crítica da identidade como idealismo, em favor de um chamado materialismo trans que permaneça fundamentado em nosso cenário infernal sancionado pelo Estado supremacista branco neoliberal, continuará apenas a reproduzir a estrutura de classe da própria transgeneridade, em vez de ter como objetivo destruir essa sociedade. Isso é compreensível enquanto resposta, pois quando enfrentamos ataques do Estado à nossa própria existência, somos levados a medidas políticas e reivindicações de direitos civis que restringem nossa política e, geralmente, descartam abordagens anarquistas, que compreendem a ideia de "sobrevivência enquanto aguardamos a revolução", mas trazem o momento revolucionário para o presente, em vez de empurrá-lo para um futuro desconhecido. Ainda assim, a insistência em uma determinada representação de certas formas de vida trans corre o risco de reafirmar as condições contra as quais o processo de transição trabalha. Podemos aprender com os fracassos das lutas a favor do aborto que, ao limitar nosso horizonte às possibilidades políticas e sancionadas pelo Estado, nos torna sempre vulneráveis aos caprichos dos pânicos morais que instrumentalizam nossas vidas para alimentar a raiva e angariar votos.
Mesmo que possa ser ingênuo ou errado, quero pensar aqui na transição como uma ameaça à ordem social, não apenas como outra forma de vida que deve ser apoiada (embora seja isso também). Não se trata de afirmar que a pessoa trans é "um sujeito revolucionário", pois isso continua dentro de uma rubrica marxista ultrapassada, e, como Elis L. Herman adverte em "Tranarchism: Transgender Embodiment and Destabilization of the State”, deixaria as pessoas cis à vontade para não se juntarem à destruição da ordem social (2015: 80). Na verdade, o cuidado coletivo que as pessoas trans realizam é uma forma de apoio mútuo anarquista, um cuidado comunitário horizontal e descentralizado, que reproduz a transitoriedade por meio da transição como um fenômeno social, uma forma de reprodução social que altera as condições deste mundo. Esse apoio mútuo também é uma forma de autodefesa e participação na luta e, portanto, já faz parte da destruição deste mundo e da construção de um novo (ou de muitos mundos diferentes), seja isso consciente ou intencional ou não. Hil Malatino teoriza isso na forma de práticas t4t de amor entre pessoas trans: "Como tal, o t4t é inevitavelmente uma prática difícil de amor através da diferença em nome da coalizão e da sobrevivência e, portanto, não pode pressupor ou predicar esse amor na semelhança identitária ou subjetiva" (2022: 49). Mas esse modo de coalizão e sobrevivência ainda deve ser levado adiante - em direção a uma análise anarcofeminista. Caso contrário, corremos o risco de permanecer no espaço colaboracionista que Joy James teoriza por meio de sua ideia da "maternidade cativa", um espaço de cuidado e sobrevivência para aqueles que são mantidos em cativeiro - especificamente pessoas negras - onde, embora haja ameaça, ainda assim estabiliza a reprodução geral da violência do Estado capitalista. Essas instâncias de cuidado contêm um potencial revolucionário, mas ainda podem ser integradas ao funcionamento do racial mundo capitalista [6]. O fracasso da liberação gay nos mostra que não podemos assumir ingenuamente que trans é em si uma posição revolucionária, porque junto com esse mundo social que queremos destruir, teríamos que desistir também da própria ideia de transgênero/transexualidade. Esse ponto remete à incoerência definicional de Sedgwick ou à afirmação de Hocquenghem de que, depois que os movimentos gays se fragmentaram - ou se exauriram no ato de se assumirem -, não queremos mais ser homossexuais.
No auge de seu trabalho com o grupo gay combativo FHAR, Guy Hocquenghem escreveu: "Não escolhemos nos tornar homossexuais, mas escolhemos permanecer homossexuais" (2022: 85). Mas ele já estava pronto para abandonar essa posição. Ele estava escrevendo em resposta à busca incessante de encontrar uma origem para a homossexualidade - uma busca que ele abjura em seu primeiro livro, Homosexual Desire, ao teorizar sobre um desejo socialmente perturbador que não pode ser narrativizado dessa forma. O desejo de origem é o mesmo que o desejo de cura - ou, em outras palavras, o genocídio. Essa pretensão segue a linha entre o sujeito autônomo liberal com liberdade de escolha e a minoria biológica fadada pelo caminho do desejo. Hocquenghem discute a "sensação de traição, de esconder algo de seus pais e de todo mundo, o que é ao mesmo tempo repulsivo e delicioso": "nesse prazer de cumplicidade secreta há algo radical [...] e, ao mesmo tempo, uma espécie de prazer masoquista do qual estou entediado" (2022: 85). Dito dessa forma, contra o pano de fundo do movimento gay que se enquadrava como confissão, ou como sair do armário, já havia um senso de puerilidade. Como ele escreve, não importava realmente se alguém tentasse esconder, os outros - os normais - o enquadrariam. De fato, foi assim que Hocquenghem descobriu sua própria homossexualidade, quando os outros garotos da escola lhe disseram que ele era bicha. É por isso que, ao final de seu estágio nos movimentos de liberação gay franceses, Hocquenghem não quer mais nem mesmo se manter homossexual - ele passa para a ideia da folle, da queen, do homem efeminado, outra figura abjeta que Amin nos lembra que foi deixada para trás pela assimilação dada aos homens gays brancos burgueses cis. Nós não escolhemos ser gays/trans, mas escolhemos permanecer gays/trans e, eventualmente, poderemos deixar essas posições para trás.
No espírito da liberação gay, quero então expandir o "desejo de transição" de Amin e os "belos prazeres" de Spade. Não me refiro à "euforia de gênero" como o oposto ou como o antídoto da disforia, isto é, o momento da transição que lhe permite ser reconhecido corretamente. A mudança importante é se afastar de ser trans como uma identidade e se aproximar da transição enquanto um processo. Como Susan Stryker, Paisley Currah e Lisa Jean Moore explicam na introdução da edição "Trans-" da Women's Studies Quarterly, elas usam "trans-" em vez de trans ou transgênero para se afastar do "nominalismo implícito de trans" em direção à "relacionalidade explícita de trans-" (2008: 11). Essa mudança elimina o aparente erro de Butler, que se baseia na agência de um sujeito autônomo - outra repetição dos fracassos do movimento de liberação gay e dos direitos dos homossexuais, que se exauriu ao se assumir - ao se anunciar. Na introdução de Transgender Marxism, Jules Joanne Gleeson e Elle O'Rourke complementam esse entendimento de transição, escrevendo que "a transição também deve ser entendida pelos revolucionários como uma resposta à sua própria forma de fome. Os desejos que levam tantas pessoas a reconstruir vidas para nós mesmos que nos deixam completamente proletarizados ou expulsos, tornando-nos excedentes" (2021: 9). Em outras palavras, as pessoas trans são aquelas com "energias inquietas que produzem novas necessidades para nós", que não "negam seus desejos, nem se amaldiçoam por sua identidade imprópria" (2021:9).
Mesmo que não soubéssemos nada sobre a transição, ainda assim poderíamos ser vistos como trans (uma experiência comum para jovens que acabam fazendo a transição) - outro ponto em que vemos que a identidade (e a diferença) nos limita e até nos mata. Eric Stanley pergunta sobre esse momento de reconhecimento/desconhecimento, "por que a violência antitrans/queer, na maioria das vezes, é corretamente aplicada contra nós" (2021: 25), independentemente de a linguagem nos descrever com precisão. O epíteto genérico "bicha", por exemplo, abrangerá qualquer pessoa que seja vista como homem, mas que se desvie das normas de gênero/sexualidade. Nesse momento, a mulher trans é reintegrada à definição geral de homossexualidade como desvio que existia antes da fragmentação descrita por Amin. Há uma diferença, é claro, mas no momento em que se está sendo violentamente atacado, é justamente a diferença que é a ameaça. Se o liberalismo usa "a diferença como seu princípio organizador", há diferenças assimiláveis e não assimiláveis que texturizam a habitabilidade e a descartabilidade, geralmente ao longo de linhas racializadas (Stanley 2021: 25). Stanley se baseia na análise de Fanon sobre a negritude e, da mesma forma, evita uma leitura ontológica ou essencialista dessa posição, apontando para a definição tautológica de abjeções (você é oprimido porque é negro, você é negro porque é oprimido). Em um complemento arrepiante a esse momento de marcação, Stanley também afirma que o fenômeno do suicídio trans "lê o mundo como a imundície que ele é" (2021: 98). Ambas as instâncias de violência - antagonismo trans e suicídio trans - contêm uma descrição precisa ao lado de um desalinhamento fundamental. Somos desviantes, o mundo é sujo e não pertencemos a ele. Apesar de toda a atmosfera de violência que Stanley detalha para as pessoas trans/queer racializadas que vivem em estados "democráticos" modernos, o horizonte de resistência que Stanley indica é a "vida sediciosa" e o "tornar-se ingovernável", "um comportamento reformulado como existência". Ao catalogar a violência incessante, Stanley também aponta para outros modos de vida que existem atualmente na ingovernabilidade trans anárquica. Stanley extrai uma definição de "ingovernabilidade" do sistema de tribunais juvenis "como uma acusação para jovens que vivem em recusa". Elu observa que "a categoria legal de juventude produz numericamente jovens sob a jurisdição de outros e que, até certo ponto, também são de sua responsabilidade legal" (2021:118). Mas a categoria é imposta apenas em casos de desvio. A ingovernabilidade dos jovens é, então, "uma tentativa de encontrar uma passagem segura para fora" do "controle" de um sistema de violência (2021: 119). Mas Stanley observa que essas são "táticas compartilhadas de sobrevivência - uma socialidade de crianças más que conhecem a bondade da ruptura do grupo" (2021: 120). Apresentei todas essas ideias para fazer a afirmação, talvez não surpreendente em termos de reivindicação da negação colocada sobre nós, de que as pessoas trans são de fato uma ameaça. Que, assim como afirmam os temerosos e odiosos pais cristãos fascistas, estamos tentando transformar seus filhos em trans. Em vez da famosa recusa de Lee Edelman à figura da criança, que é invocada na política moderna para garantir a reprodução da mesma ordem social opressiva, podemos agora invocar a criança queer/trans como um rompimento dessa ordem, uma interrupção, um vislumbre de abertura para uma prática contínua de nossa própria recusa. Em vez de exigir paz social em face da morte, precisamos expandir essa vida ingovernável e sediciosa. Com um desvio pelas vertentes da teoria feminista, explicarei agora como podemos encontrar maneiras de viver que apresentem esses impulsos destrutivos e construtivos.
Feminismo contra a Sociedade
Uma das principais contribuições do pensamento feminista marxista foi a análise da reprodução social. Na ênfase marxista clássica sobre a produção e o trabalhador assalariado, a dependência do que Marx e Engels chamaram de trabalho reprodutivo não assalariado, o trabalho doméstico não reconhecido por mulheres, pessoas de gênero feminino, mas que também inclui outras pessoas feminizadas e racializadas, especificamente pessoas negras que realizam trabalhos domésticos, é ignorada. Silvia Federici escreveu talvez algumas das mais influentes dessas análises em seu livro Caliban and the Witch (2004) e também em seu manifesto Wages Against Housework (1975). Seguindo o argumento de Federici, podemos ver que a imposição vigorosa do capitalismo e da estrutura estatal ajudou a criar a mulher como a compreendemos hoje, como o objeto degradado do controle patriarcal. O segredo da aparente função do capitalismo é a utilização desse trabalho generificado, permitindo que o trabalhador masculino apareça todos os dias pronto para trabalhar, sem mencionar a criação de novos proletários por meio da gestação e do nascimento. A transição para o capitalismo também foi possibilitada pela captura e escravização de africanos e pelo genocídio de grupos indígenas nas Américas e em outros lugares. Não é possível desvincular a criação da feminilidade europeia (branca) de uma (des)generificação racializada da negritude e da imposição colonial de regimes de gênero. Até mesmo o trabalho doméstico não remunerado da mulher branca depende de mais trabalho e terras roubadas. Contudo, se nos atentarmos por um momento ao termo em si, “reprodução social”, podemos adquirir certa perspectiva sobre a reação insurgente a essa situação de trabalho generificado que é visto somente como exploração e imposição - e isso se vincula ao pensamento feminista decolonial e à descentralização das perspectivas das mulheres ocidentais (brancas). A crítica feminista marxista da "reprodução social" mostra que esse trabalho forçado, na verdade, estabelece a base para a reprodução das relações de exploração de classe. Sem a divisão generificada de trabalho que mantém a "mulher" branca em casa servindo ao homem, a produção industrial e a obtenção de lucros não funcionariam, e tudo isso se baseia na divisão racial e global do trabalho (forçado). É por isso que Federici chama seu panfleto de "Wages Against Housework" (Salários contra o trabalho doméstico) e não "Wages For Housework" (Salários pelo trabalho doméstico). Sua alegação é que exigir salários é o primeiro passo para se recusar a fazer o trabalho. Primeiro, precisa ser reconhecido como trabalho - porque, até agora, esse trabalho rotineiro de cuidado tem sido visto simplesmente como "amor", como o desejo natural da mulher de criar uma família. De fato, ele é visto como a realização da própria feminilidade. Mesmo as pessoas forçadas a fazer o trabalho não o veem como tal. Uma vez que esse modo de exploração se torna reconhecido - tão sutilmente entrelaçado em um senso de identidade - o apelo é para que se liberte dessa relação de exploração, a fim de redefinir a vida e o amor. Se todas as pessoas feminizadas parassem de cuidar da casa, o mundo capitalista pararia.
Ainda assim, acho que, como costuma acontecer com o pensamento marxista, o termo teórico de reprodução social pode se tornar obscuro demais ou até mesmo estereotipado, e muitas vezes nos limitamos à demanda por salários ou reconhecimento. Embora alguns trabalhos instigantes - especialmente nos escritos trans marxistas recentes - tenham usado esse conceito para analisar as forças que são usadas para continuamente recriar esse mundo de dominação, a tônica continua sendo insuficiente para interromper o processo de reprodução do capitalismo e do Estado - que está acabando com o mundo. Como é comum na análise marxista, podemos ficar presos a todas as particularidades da teoria e à maneira aparentemente correta de falar sobre fenômenos sociais. Como feminista anarquista, eu gostaria de substituir "reprodução social" pelo que chamamos de vida. Além do nosso trabalho forçado visando à sobrevivência, o vocábulo marxista acaba abstraindo todos os aspectos de nossas ações diárias que compõem o que realmente queremos colocar em nossos corações e intenções, coisas que não seriam mais chamadas de trabalho após a abolição do capital e do Estado. No lugar do valor produzido para o capitalista que explora nosso trabalho para seu próprio lucro, criamos nosso próprio valor em nossos relacionamentos uns com os outros - não à mera sobrevivência, mas a todas as interações texturizadas entre nós e com nosso mundo que fazem parte da vida. Em Wages Against Housework, Federici escreve: "Queremos chamar de trabalho o que é trabalho para que, por fim, possamos redescobrir o que é amor e criar o que será a nossa sexualidade que nunca conhecemos" (1975: 6). Essa frase contém muito a ser desvendado, e concordo com a ideia de que o amor e a sexualidade - e o gênero - que conhecemos sob o capitalismo racial e o colonialismo (dos colonos) simplesmente nos prendem a um processo interminável de autodefinição nos termos da dominação. No entanto, eu também diria que essa não é a história toda; já estamos criando amor e sexo que se contrapõem às forças de dominação.
O feminismo decolonial oferece outra visão sobre a criação dessas identidades, como as de gênero, que pode ser mais útil do que a visão marxista da reprodução social. A ênfase no social é mantida, mas, com isso, nos ancora às relações cotidianas de nossa vida. O feminismo marxista branco pode sucumbir à universalização de uma compreensão de gênero que acaba reproduzindo o processo colonial de exportação das hierarquias ocidentais ao redor do mundo. Da mesma forma, muitas vezes ele não leva em conta a anti-negritude que está por trás da formação do Estado moderno e do capital. Por outro lado, a abordagem feminista negra e decolonial sobre Marx se esforça para "estender" sua estrutura conceitual, como disse o Combahee River Collective, ao incluir as experiências de mulheres Negras, Indígenas e de Cor, cujas vivências problematizam a aplicação da teoria e marcam outros pontos de resistência e recusa (1977:29). Eu diria que podemos levar isso a uma posição anarcofeminista, em que o feminismo visa abolir as hierarquias de gênero patriarcais, o que também implica a derrubada de todas as hierarquias dominantes e estáticas.
Em seu importante ensaio, "Under Western Eyes: Feminist Scholarship and Colonial Colonial Discourses", Chandra Talpade Mohanty critica a "noção monolítica de patriarcado" subjacente à maior parte do discurso feminista ocidental (branco), que, juntamente com sua ideia de supremacia masculina, parte do "pressuposto de que a mulher é um grupo coerente já constituído, com interesses e desejos iguais, independentemente de contradições ou localizações de classe, etnia ou raça" (1984: 336-37). Homogeneizar a diferença dessa forma, explica Mohanty, "implica uma noção de diferença de gênero e até mesmo de patriarcado (homens como um grupo coerente) que pode ser aplicada universalmente e entre culturas" (1984: 337).
Contra essa suposta uniformidade, em que as feministas ocidentais - ainda que talvez com boas intenções - olham para os contextos do "Terceiro Mundo" em busca de solidariedade, mas só encontram mulheres nas mesmas circunstâncias de sempre, Mohanty expõe a maneira como o gênero é vivido, uma maneira que permite a possibilidade de mudança em vez de degradação universal e eterna. Ela argumenta que as mulheres são "produzidas" por meio de relações sociais, mas também estão implicadas na formação dessas relações (1984: 340). Poderíamos simplesmente ignorar esse entendimento, como se o compreendêssemos, mas acho que vale a pena desenvolvê-lo. O que quer que seja "mulher" em qualquer sociedade específica - e chegaremos a isso a partir de uma perspectiva colonial - não é anterior aos relacionamentos entre as pessoas que formam a sociedade. Não somos lançados ao mundo totalmente formados. A dinâmica de poder das relações sociais pode nos preceder, na forma de cultura, mas também formamos nossas relações sociais por meio de nossas ações. Para Mohanty, essa perspectiva pode nos conduzir a uma forma particular de "planejar a ação política", "compreendendo as contradições inerentes à localização das mulheres dentro de várias estruturas" (1984: 346). O termo contradições tem uma ressonância marxista, mas, em vez de pensar que a incoerência interna dessas estruturas automaticamente significa sua ruína (com o curso da história), temos que entender, como explica Eric Stanley, que "as pedagogias de ação direta [...] nos lembram como a força do poder disciplinar reside em sua incoerência resoluta" (2021: 5). Há pontos de possível recusa. Se tivéssemos binários bem definidos de poder e ausência de poder, a luta revolucionária não teria sentido, exceto para mudar o jogo - a ideia foucaultiana de que a resistência é "inerente à operação do poder" (Mohanty 1984: 352) ou a luta de classes dialética de Marx. Mohanty, assim como Stanley, abre espaço para que possamos agir para derrubar essas estruturas de poder, sem cair na armadilha de uma dialética do poder.
Um dos pontos principais de Mohanty é que a própria produção de conhecimento feminista é uma forma de poder; não é neutra. Se você chegar a uma situação com uma noção preconcebida do que está procurando, você a encontrará. Mesmo que as feministas considerem seu trabalho como uma crítica e análise do poder, seu próprio discurso cria vias de poder, que são apoiadas por sua posição dentro de outras camadas de poder (como situação institucional, proximidade com a branquitude etc.). O risco dos estudos feministas como disciplina acadêmica é que eles adotam as estruturas da teoria e da produção de conhecimento ocidental, baseadas em falsas ideias de objetividade ou universalidade. Assim como a ideia do Combahee River Collective de "política de identidade" - não a ideia neoliberal que é feita hoje - que parte da experiência vivida e da posicionalidade para entender como nos tornamos livres, Mohanty defende posteriormente uma política que parte da "âncora experimental e analítica na vida das comunidades marginalizadas de mulheres" (Mohanty 2003: 510). Em vez de uma abordagem vertical ou da primazia do conhecimento produzido nos centros coloniais, Mohanty argumenta que precisamos começar com a micropolítica da vida cotidiana para entender não apenas as estruturas globais mais amplas do capitalismo e do colonialismo, mas também as muitas estratégias contínuas de resistência que estão ocorrendo [7].
Esse movimento que Mohanty faz - de deslocar as formas típicas de produção de conhecimento acadêmico em favor da atuação de movimentos locais que talvez nem mesmo sejam compreendidos pelos acadêmicos - é importante para imaginar a intervenção de um anarcofeminismo trans. Não podemos entender o feminismo simplesmente como uma lente de análise, mas como um projeto maior de liberação coletiva, abrindo as possibilidades de ação direta. Se as feministas quiserem produzir conhecimento, ele deve ter o objetivo explícito de acabar com o patriarcado, o colonialismo, o Estado e o capitalismo (geralmente considerado pelas feministas radicais como a fonte da opressão de gênero e racial). Como diz Cindy Milstein no título de um volume dedicado à "pobreza do liberalismo", temos de tomar partido (2015). Em outras palavras, se produzimos conhecimento, temos de fazê-lo explicitamente para acabar com essas estruturas hierárquicas. Não podemos ter como objetivo simplesmente realizar uma análise teórica correta dentro das estruturas institucionais que determinam o acerto. Talvez nosso erro tenha valor político, se estabelecermos como objetivo a destruição de hierarquias. Mais especificamente, nossa produção de conhecimento deve compreender as relações sociais já existentes e ajudar a conceber relações sociais que não reproduzam mais esse mundo. Nossas ações neste momento prefiguram o mundo que queremos e ajudarão a acabar com o mundo que tenta nos prender. Podemos sentir o sabor da morte do velho mundo em nossas relações que extirpam sua lógica e controle. Não podemos criar conhecimento acadêmico apenas para descrever como tudo é terrível e nos encurralar. Nosso conhecimento deve ser partidário e deve se basear em ações, não em ideias.
Voltando ao trabalho de Oyèrónke Oyěwùmí, podemos tentar entender como a própria produção de conhecimento ocidental limita a possibilidade de ação. Ela diagnosticou no pensamento ocidental um determinismo biológico profundamente arraigado que sempre intervém para naturalizar as hierarquias. Mesmo para os marxistas que analisam as relações sociais, ou para as feministas que operam por meio de uma teoria da construção social do gênero, ela percebe que a compreensão do social ainda depende de uma compreensão biológica da diferença que explicaria o comportamento e a interação. A raça e o gênero são o paradigma desse pensamento biológico/genético que torna a diferença evidente, justificando amplas generalizações de disposições e merecimento. As teorias de construção social, argumenta ela, acabam sendo um "convite a infinitas construções da biologia" (Oyěwùmí 2005: 10), o que apenas aponta para o fato de que o pensamento ocidental se baseia em uma ideia socialmente construída da biologia para entender a composição da sociedade. A instância (neo)liberal disso geralmente é explicada por meio de identidades, mas também pelo indivíduo falsamente neutro que possui um ponto de partida equitativo e um campo infinito de ganhos à sua frente, desde que se esforce o suficiente.
Oyěwùmí explica que o recurso ocidental à compreensão biológica ou essencialista do mundo vem do fato de se privilegiar o sentido da visão como forma de interpretar e produzir conhecimento sobre o mundo. Criam-se esses ciclos tautológicos em que se pode provar o que já se sabe vendo o que se quer ver. A autora analisa a sociedade pré-colonial yorùbá para oferecer uma alternativa - antes da universalização e exportação da compreensão biológica ocidental de gênero: "a sociedade foi concebida para ser habitada por pessoas em relação umas com as outras [...] a forma como as pessoas se situavam nos relacionamentos mudava dependendo dos envolvidos e da situação particular [...] Não se pode colocar as pessoas nas categorias yorùbá apenas olhando para elas. O que elas escutam pode ser a pista mais importante" (Oyěwùmí 2005: 13-14). A hierarquia social estava mais relacionada à "senioridade", que Oyěwùmí descreve como relacional e dinâmica. Oyěwùmí continua a criticar a produção de conhecimento dos acadêmicos ocidentais, inclusive das feministas: "Se o investigador assume o gênero, então as categorias de gênero serão encontradas, quer existam ou não" (2005: 16). O acadêmico que procura entender o gênero participa de "uma das forças hegemonizantes internacionais mais eficazes, produzindo não uma experiência social homogênea, mas uma homogeneidade de forças hegemônicas. As teorias ocidentais tornam-se ferramentas de hegemonia à medida que são aplicadas universalmente, com base no pressuposto de que as experiências ocidentais definem o humano". (2005: 16). Há uma ressonância aqui, também, com o trabalho de Sylvia Wynter sobre a hiper-representação ocidental do Homem, organizando possíveis conhecimentos para insistir que o mundo social deve existir tal como é, e alocando a subordinação aos grupos de pessoas racializadas - especificamente os negros - para fora de seu alcance (2003).
O nexo entre conhecimento e violência que o capitalismo e o Estado produziram por meio da história da escravidão e do colonialismo cria a sensação de uma compreensão universal do que é o homem e do que é a mulher. Mas esse esquema de gênero é sempre racializado e, portanto, instala a contradição impossível que Maria Lugones define em "Heterosexualism and the Colonial/Modern Gender System", em que "as mulheres colonizadas têm o status inferior de gênero como mulheres, sem nenhum dos privilégios que acompanham esse status para as mulheres burguesas brancas" (2007: 203). A incapacidade de enxergar as distinções coloniais/raciais de gênero, explica Lugones, criou uma compreensão do feminismo que "presumia uma irmandade, um vínculo dado com a sujeição do gênero", sem fazer o trabalho de "criar coalizões" (2007: 204). Da mesma forma, no contexto da mulheridade negra americana, Hortense Spillers teoriza, por meio da experiência da Middle Passage e da reprodução forçada do estado de escravidão por abuso sexual, uma experiência diferente de gênero para as pessoas negras. Às vezes, com as expectativas do gênero branco hegemônico, mas também expulsas "dos símbolos tradicionais do gênero feminino" (Spillers 1987: 80), as mulheres negras ocupam o que ela chama de uma posição "sem gênero". A tarefa apontada por Spillers não é "juntar-se às fileiras da feminilidade de gênero", mas, em vez disso, "ganhar o terreno insurgente como sujeito social feminino", apontando, em última análise, para um conjunto diferente de táticas de um feminismo negro (1987: 80) [8]. Aproximo Lugones e Spillers aqui para apontar as semelhanças e diferenças nas formas como o regime hegemônico de gênero foi imposto às pessoas colonizadas e escravizadas, mas também, o que é mais importante, para apontar as intervenções práticas que suas ideias possibilitam. Ambas afrouxam o domínio dos próprios termos do debate que o feminismo instaura a fim de destacar a necessidade de tomar partido contra a forma dominante - não para encontrar a liberdade dentro dela. A mulher negra ou a mulher colonizada ocupa um papel impossível, sendo ao mesmo tempo mulher e não pelos termos da ordem dominante, devendo corresponder, mas sendo afastada de quaisquer benefícios e violentamente punida por qualquer desvio.
Voltando a Oyěwùmí, podemos ver como essa operação complexa é inscrita no corpo por meio do sentido visual, em que a raça e o gênero parecem tão evidentes que é possível colocar instantaneamente as pessoas na hierarquia social - e presumir que essas hierarquias refletem uma ordem natural. O olhar "passivo" cria a situação de Eu e Outro, sujeito e objeto, o "conceito de objetividade" que produz um conhecimento incontestável (Oyěwùmí 2005: 15). Não importa que a percepção da feminilidade negra, ou da feminilidade colonizada, ainda perturbe essas distinções. Como Lugones e Spillers sugerem, essas posições dissonantes apenas criam a possibilidade de um espaço a partir do qual se pode destruir e criar algo novo. Essa destruição é o trabalho que todos nós temos de fazer - mas vou analisá-la no modo de um feminismo trans-anarquista [9].
Cuidado Trans para o Acabar com o Mundo
Embora nosso imaginário cultural da transgeneridade possa suavizá-la, a experiência corporificada de ser visto como trans é outra instância de problemática perceptual que contém tanto possibilidade como violência. A própria corporificação da transgeneridade expõe novamente as contradições do gênero colonial binário. Passar do "reconhecimento errôneo" para o "reconhecimento" é "um privilégio raro para as pessoas trans", lembra Hil Malatino (2022: 77). Malatino descreve o " fenômeno trans de reconhecimento errôneo" (2022: 53), um pouco diferente da "marcação" discutida por Stanley, em que o desvio geral é punido. Ao delinear esse reconhecimento errôneo, Malatino critica uma narrativa de transição medicalista transnormativa orientada para o futuro, em que o objetivo seria escapar e superar todos os momentos de erro de gênero, reconhecimento errôneo e violências diárias a que as pessoas trans estão sujeitas ao se aproximarem da cisgeneridade. De fato, Malatino, ao narrar sua própria experiência de ser nomeade erroneamente em uma reunião de trabalho, discute a dissonância perpétua entre a percepção e a experiência interna: "como nossa interpelação e posicionamento no mundo podem estar entrando em conflito com nossa própria autocompreensão" (2022: 53-54). Malatino adverte que essa desorientação, essa dissonância "pode muito bem ser o único tipo de subjetivação que [eles] entendem intimamente" (2022: 54): "uma estrutura de reconhecimento que parece quase englobar a complexa história de viver em um corpo trans e intersexo" (2005: 55). Malatino afirma que essa estrutura de reconhecimento é não-binária, embora, é claro, faça referência aos binários que não estão sendo corretamente corporificados. Mas o não-binário, para Malatino, fica no interstício entre cis e transgênero, um campo onde a maioria das pessoas trans vive.
Quando fundamentamos nossa compreensão de transgeneridade nesse encontro mútuo baseado no (des)reconhecimento - uma vez que poderia se dar em qualquer direção, outro binário - Malatino explica em outro lugar que "o reconhecimento chega até nós na forma de um presente" (2020). Malatino cita McKenzie Wark em uma conversa com Andrea Long Chu: "Mas acho que se você começar, primeiro, apenas com a díade, um eu e um você, então um começa como um suplicante, exigindo que o outro devolva o gênero para mim. E para nós, para as pessoas trans, isso está na forma como estamos pedindo; nesse sentido, para que sejamos livres para sermos nós mesmos, é preciso insistir que os outros reconheçam nosso gênero" (Malatino 2020). No entanto, há um paradoxo nesse momento, pois é a "atribuição de identidade" - a formação do sujeito individual, preso a uma identidade singular, como pensamos politicamente - que é, na verdade, o resultado de uma situação social determinada pelo regime de visão de gênero que nos faz sentir a necessidade de categorizar os corpos hierarquicamente. Na estrutura social que habitamos atualmente, queremos receber esse presente - e muitas vezes não o recebemos. Mas uma prefiguração trans anarquista mostraria o momento e o espaço em que podemos recusar a dádiva do gênero.
Se quisermos chegar ao desejo que sustenta a transgeneridade, não podemos imaginar que se trata simplesmente de nos sentirmos bem ajustados ao reconhecimento, porque, como observa Malatino, a experiência real da corporificação trans é uma série de dissonâncias e reconhecimentos errôneos que nos fazem sentir nossos corpos como "fundamentalmente perturbáveis" (2022: 76): "muitos sujeitos trans experimentam a 'passabilidade' apenas de forma descontínua e situada" (2022: 28), o que torna essa visão linear da transição "inadequada". Contra essa forma de transição e reconhecimento, Malatino pergunta "como os sujeitos trans poderiam cultivar (e cultivam) formas de autoconsideração e reconhecimento intracomunitário que reforçam nossa capacidade de nos vermos - e amarmos a nós mesmos e uns aos outros - mesmo quando formas cruciais de reconhecimento intersubjetivo de gênero são negadas" (2022: 29). Nossos corpos disruptíveis também podem encarnar a disrupção. Malatino sugere que reformulemos nossa compreensão da transição, afastando-nos da meta de uma identidade de gênero perfeita ou perfectível - especialmente porque poucas pessoas realmente têm acesso a essa ideia mítica -, enfatizando, em vez disso, o "interregno", a transição como um processo de transformação: "um momento de fomento, geração, complexidade e fervor, repleto de parcerias inesperadas, eventos fortuitos e conexões fortuitas e menos fortuitas; um espaço de liberdade e possibilidade, ainda não codificado e fixado em significado, significação ou economia representativa" (2022: 32). Malatino encontra uma iteração desse espaço de transição em narrativas e exemplos de amor e cuidado t4t, um "separatismo estratégico" que poderia contribuir para "cultivar o amor-próprio, o respeito-próprio e o cuidado-próprio, especialmente porque confronta e rompe as lógicas assimilacionistas que estruturam as formas limitadoras da aspiração individualizada do futuro" (2022: 45). Entre as pessoas trans, a transição se concentra em "desejos compartilhados e orientações afetivas, em vez de acesso a tecnologias de transição" (2022: 47): pessoas que compartilham informações sobre como navegar em sistemas médicos e em outros sistemas, pessoas que compartilham hormônios, pessoas que ajudam a arrecadar dinheiro para a cirurgia e que fornecem cuidados posteriores etc. Nesse coletivo formado pela transição em torno do desejo, Malatino enfatiza a "imperfeição e complexidade éticas", uma "relacionalidade trans" que não idealiza identidades, boas e ruins, nem mesmo a ideia de que todas as pessoas precisam se dar bem o tempo todo. A complexidade e o desejo são fundamentais aqui, pois em nossa compreensão de nossas vidas e possibilidades trans, precisamos abrir espaço para o conflito. O interespaço de transição, de conflito e complexidade, de cuidado e recusa, forma a socialidade trans contemporânea, um enclave em meio às violências contínuas do capitalismo racial e do Estado, que incorpora a ética prática do anarquismo e da abolição. Podemos acrescentar esse processo social de transição à nossa compreensão feminista decolonial sobre a maneira como criamos e somos criados pelas relações sociais.
Isso nos ajudará a pensar sobre nossas tentativas de parar de reproduzir esse mundo - para dar-lhe um fim. Kadji Amin argumenta que a simples alegação de recusar o gênero por meio de uma identidade não-binária, embora muitas vezes anunciada como uma recusa do regime capitalista colonial/racial de gênero patriarcal, na maioria das vezes faz pouco para perturbar esse regime e, mais frequentemente, se baseia no "indivíduo soberano autológico" em detrimento dos "laços genealógicos não escolhidos do social" (2022: 116), em outras palavras, reproduz a ideologia colonial. Amin nos convida a "abandonar a fantasia de que o gênero é um meio de autoconhecimento, autoexpressão e autenticidade, em vez de um esquema social compartilhado e, portanto, imperfeito" (2022: 117-18). Em vez disso, Amin nos lembra que "o que é socialmente relevante é a transição - uma mudança nas categorias sociais de gênero, sejam elas quais forem - e não a identificação - uma relação pessoal, sentida e, portanto, altamente fantasmática e lábil com essas categorias" (2022: 115). A diferença não é simplesmente que as pessoas não-binárias que não praticam o desvio de gênero ou não desejam a transição não se deparam com os mesmos momentos sociais de reconhecimento errôneo, com toda a violência que isso acarreta (essa perspectiva, embora social, ainda fundamenta o gênero como uma identidade). Ela enfoca o processo de transição, ou seja, sobre como é mudar de gênero. Assim como Malatino, Amin quer reformular a transitoriedade entre as pessoas, mantendo a noção de que não pode haver emancipação dentro do próprio regime de gênero.
O projeto maior de Amin no ensaio, de traçar a separação da identidade transgênera da homossexual por meio de projetos políticos específicos, fala da separação entre gênero e sexualidade em nosso pensamento. Embora a sexualidade já tenha se tornado uma identidade - você é gay? heterossexual? -, o gênero, ainda mais, parece falar de um tipo específico de identidade. Voltando a Oyěwùmí e Mohanty, quando proclamamos nosso gênero como algo conhecido e cognoscível, talvez estejamos apenas nos prendendo a essa noção preconcebida que determina automaticamente nossa relacionalidade. Reenquadrar a transitoriedade por meio do desejo de transição, um tipo de avidez que não permite que a pessoa permaneça na categoria imposta, não apenas para se desviar minimamente, mas para mudar de gênero, nos ajuda a repensar a transitoriedade para além do indivíduo, como uma recusa dos privilégios de legibilidade social que nosso mundo dominante oferece [10].
O trabalho de Amin se conecta com o recente trabalho sobre materialismos trans que se concentra na transição em vez da identidade, para enfatizar o que Zazanis chama de "agência coletiva [...] por meio de atos cotidianos de reprodução em comunidade" (2021: 33). Rosa Lee mostra que a transição enquanto processo oferece "um vislumbre da formação de novas formas de solidariedade que podem romper um novo modo de produção" (2021: 67). E Jules Joanne Gleeson, observando o processo de transição em comunidade, afirma que essas "fontes autônomas de força e formas de organização que promoveram o atual crescimento da prevalência de pessoas trans em todo o mundo" (2021: 82), formam um novo mundo onde "as comunidades trans servem como base para o desenvolvimento compartilhado de padrões éticos" (Gleeson 2021: 81). Gleeson reflete sobre o fato de que as pessoas trans, entre nós - t4t -, criaram essas forças que realmente interromperam a reprodução do regime de gênero racializado do Estado e do capital. A transição aqui mostra que podemos reorientar nossas relações sociais, afastando-nos da reprodução da família, do eu atomizado (cis)gênero, da sociedade em geral. O fato de isso ser um fato social pode ser verificado na forma como a retaliação fascista instrumentalizou a transexualidade como sua atual estratégia. Não se trata apenas de visibilidade, reconhecimento, mudanças nas políticas de acesso médico ou carteiras de identidade. É o fato de que mais pessoas vislumbram a possibilidade de transição. É o fato de que estamos encontrando uns aos outros no cuidado e na luta e forjando nossas próprias vidas. A engenharia de nós mesmos, como disse Dean Spade.
O que poderia ser essa esfera social ética que o cuidado e a luta t4t criam? Quero me ater à complexidade - como pessoas trans, provavelmente já tivemos alguma experiência com tentativas de responsabilização e, certamente, experiências de trauma e abuso. Como advertem Malatino e Amin, temos de evitar a idealização. Não é que a transição faça de você uma pessoa melhor. E não podemos simplesmente dizer que a transição é a emancipação. Mas ela nos torna pessoas diferentes - basta olharmos para o fenômeno da mídia social de publicar fotos com uma década de diferença, antes e depois da transição. Na ruptura com os modos dominantes de reprodução (e muitas vezes de produção, pois talvez seja ainda mais difícil arrumar trabalho), encontramos novas formas de relacionamento, novos locais para nossas dores e alegrias, que não têm interesse em preservar o mundo social tal como ele é. Com base na longa experiência de Rupert Raj em ajudar as pessoas durante sua transição, Malatino escreve sobre pessoas trans que realizam "trabalho de gênero", o tipo de trabalho de cuidado que torna a transição possível - e que também nos deixa exaustos (2022: 147). No entanto, o processo de descobrir em comunidade que a vida pode ser vivida de outra forma, que a dor e o desalinhamento que sentimos são reais e podem ser nomeados e, portanto, pelo menos por um momento, compreendidos, é necessário para viver a transgeneridade. Isso nos deixa exaustos porque o mundo é hostil a esse processo. Mas as pessoas trans que realizam esse trabalho estão praticando outro tipo de solidariedade e apoio mútuo ou, pelo menos, tomando essas coisas como um ponto de partida.
Herman adverte contra a suposição de um anarquismo simples ou natural na corporificação trans, mas também ressalta que " Assim como o transgênero existe tanto por meio de relações com a hierarquia quanto por meio de visões radicais de como o mundo poderia ser, o mesmo ocorre com a anarquia" (2015: 81). Quero articular um projeto abolicionista de gênero situado na transgeneridade de acordo com essas linhas: onde nosso horizonte é a abolição do gênero como o conhecemos - um sistema racializado e colonial de hierarquia, vigilância e violência - ao mesmo tempo em que apoiamos a transição de qualquer pessoa e oferecemos a todos tudo o que precisam para realizá-la. Existem versões transfóbicas da abolição de gênero que remontam às feministas separatistas lésbicas da década de 1970 (até hoje), e muitos "aliados" trans sentem-se desconfortáveis com a ideia de abolição de gênero porque entendem gênero como o terreno de expressão ou representação que permite que seus amigos trans vivam a vida que desejam. Em vez dessas perspectivas, adoto a visão anarquista/abolicionista de que o gênero não é um meio de libertação, de que o termo em si, da forma como o entendemos atualmente, está embutido nessas histórias de violência e hierarquia, e qualquer que seja o gênero que vivamos por meio de nossa autodeterminação ainda está limitado por esses sistemas. Mas de que aqueles que desejam a transição estão dando um passo inicial de recusa.
A abolição das prisões, através de conceitos como "reformas não reformistas", tenta caminhar na linha entre o horizonte de dar fim ao sistema prisional (e ao estado carcerário) e, ao mesmo tempo, apoiar as pessoas que estão atualmente encarceradas e que enfrentam a violência diária pelas mãos do sistema. Este tipo de trabalho de apoio é particularmente urgente para as pessoas trans encarceradas, que estão sujeitas a enfrentar mais violência por parte dos guardas e de outras pessoas encarceradas, juntamente com a falta de acesso a cuidados médicos e, muitas vezes, a outras formas de destransição forçada, como o alojamento numa instituição com o gênero errado e a recusa de acesso a hormônios. Muitas vezes, as pessoas trans presas são colocadas em isolamento como forma de "proteção", embora isso na verdade seja uma punição mais severa, pois é amplamente reconhecido que o confinamento solitário equivale a uma forma específica de tortura. Além disso, muitas pessoas trans que estão presas descobrem que, mesmo que sejam transferidas para uma instalação que corresponda ao seu gênero, elas não estão livres de violência e vigilância adicionais devido à sua transgeneridade - sem mencionar que pode haver represália dos agentes carcerários. Reformas não reformistas e apoio aos indivíduos presos são trabalhos que os abolicionistas (tanto internos quanto externos) realizam para garantir a sobrevivência ou o acesso às necessidades básicas das pessoas que estão atualmente presas. A regra geral é evitar a promoção de reformas que fortaleçam a instituição carcerária (um exemplo importante é não promover prisões trans, porque isso significa mais prisões, o que se opõe à meta abolicionista de acabar com as prisões). Podemos aprender com essa organização do lado de fora: ao nos concentrarmos na legislação ou no tribunal enquanto o Estado tenta nos apagar, amarramos nosso movimento para combater o Estado em seu território, o que significa que quaisquer ganhos que obtivermos serão comprometidos desde o início (Roe v. Wade, por exemplo, não oferece aborto seguro para todos, mas ainda estratifica o acesso de acordo com as linhas de classe racial).
Minha ideia, em resposta a isso, é ampliar a ameaça que as pessoas trans representam na ideologia dos antagonistas e pensar sobre o transtorno que as vidas trans podem causar ao Estado. Isso significa confrontar ativamente as forças atuais que estão nos usando para alimentar o medo e a violência. De forma clássica, podemos reivindicar a abjeção imposta a nós pela ordem social e incorporar a ameaça. Mas temos de fazer isso de forma anárquica, sem nos prendermos a medidas políticas, reformas social-democratas ou projetos socialistas/marxistas-leninistas. Com isso quero dizer uma série de coisas. Devemos reconhecer que a própria transgeneridade deve ser abandonada, nos moldes da luta de Federici por melhores salários para que possamos nos recusar a trabalhar, ou da luta de Monique Wittig que compreende mulheres como classe para poder acabar com a Mulher como classe (1981). Dessa forma, podemos ver a transição como uma etapa de recusa dos salários deste mundo, mas é preciso ir além para erradicar as outras lógicas internalizadas de anti-negritude, o estado carcerário, o capitalismo racial, o colonialismo dos colonos, sem mencionar a homofobia e a (trans)misoginia. Como Cathy Cohen argumenta em "Punks, Bulldaggers, and Welfare Queens", não seremos salvos por nossas identidades enraizadas em binários que facilmente mapeiam o bom e o mau. Em vez disso, para formar coalizões rumo à emancipação, ela nos diz que nossas identidades e comunidades "devem ser complicadas e desestabilizadas por meio do reconhecimento das múltiplas posições sociais e relações com o poder dominante encontradas em qualquer categoria ou identidade" (Cohen 1997: 459). Assim, é possível estabelecer conexões inesperadas por meio do posicionamento, entendendo que o desvio da norma é tanto imposto às pessoas como continuamente escolhido. Eu não escolhi ser trans, mas escolhi fazer a transição. Ainda não sei aonde isso vai me levar.
O melhor pensamento feminista voltado ao ativismo dos últimos cinquenta anos sempre buscou maneiras de formar coalizões. Identidades impostas, como gênero racializado, não nos unem automaticamente - nem todos os gays são camaradas. Como escreve June Jordan, "A conexão definitiva não pode ser o inimigo. A conexão definitiva deve ser a necessidade que encontramos entre nós. Em outras palavras, não é apenas quem você é, mas o que podemos fazer um pelo outro que determinará a conexão" (2003: 14). Ela reflete o ponto de vista de Mohanty aqui, pois formamos as conexões sociais em nossas interações, não por meio de quem presumimos que nós e os outros somos. É um trabalho que precisamos fazer, diferente do trabalho sob o regime capitalista.
Este é o trabalho que fazemos para recusar nossas posições dentro desse mundo. Agora, partimos dessa posição, mas se quisermos sobreviver ao fim do mundo, deixaremos isso para trás - transicionamos. Assim, um feminismo trans-anarquista, fundamentado no cuidado com a transição, auxiliando uns aos outros durante o processo, compreende que falharemos e tentaremos novamente. Você não precisa entender sua transição como política, pois o anarquismo, assim como o feminismo, recusa a divisão liberal de nossas vidas em esferas políticas e pessoais. Mas podemos encarnar nossa transgeneridade como recusa, uma recusa do gênero coercitivamente imposto e uma recusa da sociedade que nos entende por meio da violência. Não sabemos para onde estamos indo - a transição é um processo aberto e não teleológico, assim como o anarquismo. O anarquismo como transição é uma derrubada feminista de hierarquias onde quer que elas se formem, a fim de construir um mundo de cuidado mútuo. Já estamos implicados, portanto, é preciso começar agora.
Obras citadas
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[1] Nota do tradutor: no título original, o termo que traduzo como “trans-anarquista” é “tranarchist”. O termo tranarchism surge em língua inglesa como uma resposta ao anarquismo queer, tendo maior ênfase sobre as demandas e insurgências de pessoas trans. Optei por empregar o hífen entre “trans” e “anarquismo”, para enfatizar seu significado original [de junção das palavras trans e anarquismo] e manter os termos juntos sem confundi-los. Contudo, não pretendo encerrar as discussões sobre a tradução desta forma. Caso haja discordâncias, deixo meu contato mltpfeil@gmail.com e me coloco à disposição para pensarmos mudanças.
[2] Nota do tradutor: no texto original, a palavra é “transness”. Como a palavra “transness” não possui tradução exata para o português, pensei em três variações: transidade [considerando que ‘trans’ seria um adjetivo e o sufixo ‘idade’ o transformaria em um substantivo], tranzisse [nesse caso, eu traduziria ‘ness’ como ‘isse’, em conotação menos formal] e transgeneridade. Por questões de acessibilidade e costume, e tendo em vista as dificuldades que algumas pessoas com deficiência já encontram em aplicativos de leitura, escolhi usar “transgeneridade”.
[3] Nota do tradutor: movimento social estadunidense pela garantia de direitos à população homossexual e que, em muitos momentos, andou de mãos dadas com as instituições governamentais.
[4] Não é coincidência que isso aconteça durante uma pandemia em andamento com milhões de mortes atribuídas a Estados e corporações. Mas a ideia de queerness [queeridade/transidade] como um contágio social, ou praga, tem um histórico tanto de ataques fóbicos quanto de reivindicações queer.
[5] O artigo "Undoing Theory", de Vivian Namaste, apresenta uma objeção anterior a Butler e a outros que usam mulheres trans como exemplos na teoria e, assim, perdem a especificidade de suas experiências, por exemplo, com o HIV ou como profissionais do sexo. Ela discute como o Trans Day of Remembrance acaba, na verdade, reduzindo a vida trans à violência transfóbica.
[6] Além do incrível trabalho realizado pela Street Transvestite Action Revolutionaries, posso pensar no trabalho de Ash Williams e da House of Kanautica, que apoia mulheres trans negras encarceradas para que obtenham o que precisam na prisão e, ao mesmo tempo, as ajuda quando saem. Como Ash Williams me disse em uma conversa, muito foco é dado ao trauma da vida trans negra, sem atenção suficiente para apoiar a vida e a alegria das mulheres trans negras diariamente.
[7] Estou usando Mohanty aqui como exemplo de vertentes de pensamento encontradas em feminismos decoloniais e negros. Mas isso também pode ser visto em escritos anarquistas negros, como Wayward Lives, Beautiful Experiments (2019), de Saidiya Hartman, em que ela articula um anarquismo cotidiano de mulheres negras dentro e fora do arquivo, ou As Black As Resistance (2018), de Zoe Samudzi e William C. Anderson, que teoriza a negritude como uma apatridia que pode levar à organização anarquista.
[8] C. Riley Snorton (2017) se baseia no entendimento de Spillers sobre gênero racializado para contar histórias de transgeneridades negras - ou de sexo e gênero sendo vistos como "mutáveis" - que deram forma ao entendimento médico de sexo e gênero, bem como às possibilidades fugitivas.
[9] Dessa forma, podemos voltar à reticência que Butler demonstra em seguir suas afirmações sobre performatividade, pois elas também estavam presas a um discurso feminista que precisava manter algum conceito de definição de mulher. Eu me arriscaria a dizer também que o transfeminismo é uma ameaça ao (cultural e branco) feminismo - as TERFs estão certas, mas não pelos motivos certos.
[10] Ver Harry Josephine Giles, Wages for Transition (2019).