Sílvio Gallo
A educação e controle
Lembro-me de uma passagem de um texto de Félix Guattari na qual ele comenta um fato curioso para o exercício cotidiano de nossa função de educadores. Toma a situação hipotética de um aluno que esteja na sala de aula e, em lugar de prestar atenção à nossa maviosa explicação, começa a cutucar o colega do lado, a jogar pelotas de papel nas meninas e tudo aquilo que conhecemos bem. Qual é normalmente a reação do professor? Guattari diz que pode ser de variados tipos: um professor autoritário coloca o aluno de castigo, ou manda-o para fora da sala – rompendo, assim, com qualquer relação pedagógica possível -; já um professor mais progressista vai preocupar-se com a reação do aluno e tentará compreendê-la, para ajudá-lo: o encaminhará ao psicólogo da escola etc. Entretanto, muito dificilmente nosso professor em questão terá o estalo de imaginar que o que aquele aluno “relapso” está fazendo é, nada mais, nada menos, do que aquilo toda a classe faria, se tivesse coragem para tanto! Em outras palavras, professor algum pensará que o problema é seu, e não do aluno, que é sua aula que não está agradando a ninguém, que seu trabalho precisa ser repensado se pretende ser uma atividade realmente educativa.
Fiz este preâmbulo para entrar numa questão que sei ser polêmica, mas que penso que devemos encarar por outros pontos de vista. O governador do Estado de São Paulo, logo após sua posse, anunciou que pretende acabar com a reprovação entre as séries, como forma de diminuir a evasão escolar e os baixos índices de escolaridade e aproveitamento. Do mesmo modo, em seu segundo pronunciamento à Nação, em sete de fevereiro, o presidente Fernando Henrique Cardoso abordou a questão da repetência e da evasão escolar, tentando demonstrar que, pelos investimentos feitos na área, estes índices precisariam ser sensivelmente diminuídos.
Sem dúvida alguma, os discursos dos políticos sobre a educação, assim como suas promessas, precisam ser discutidos, esclarecidos, suas lacunas precisam ser denunciadas, assim como seus erros devem ser apontados. Haveria muito o que discutir acerca do pronunciamento de Fernando Henrique, como as falácias de sua argumentação sobre o investimento e sua fiel defesa dos princípios do Plano Decenal de Educação para Todos, que a UNESCO e o Banco Mundial estão fazendo com que desça goela abaixo de todos os países latino-americanos – o caso do Chile é paradigmático, e deveríamos estudá-lo a fundo – mas este não é meu objetivo neste momento. Limito-me, por ora, à questão da repetência e da evasão.
Pareço ouvir nitidamente o choramingo dos colegas professores de primeiro e segundo graus! Lembro-me de quando professor no ensino médio e fundamental, tanto no sistema público quanto no privado, as posições eram indistintamente as mesmas. Qualidade de ensino é sinônimo de reprovação. O professor que aprova a todos, ou a grande maioria de seus alunos, não é exigente, é negligente, não avalia corretamente etc. O fato de o aluno poder entrar com um recurso contra a sua reprovação é um democratismo demagógico e um duro golpe num ensino sério etc. Todos vocês, que por ventura estejam me lendo, conhecem muito bem essas afirmações, se é que não concordam absolutamente com elas. É por isso que proponho que as discutamos mais a fundo, muito mais a fundo.
Por detrás da questão da qualidade do ensino, está uma muito mais complexa, a da relação de poder no ato pedagógico. Esta foi a razão que me fez abrir estas reflexões com aquele exemplo levantado por Guattari. Quando um aluno é indisciplinado em sala de aula, vamos tentar entender o que se passa com ele, quando simplesmente não o isolamos por completo mas, apenas muito raramente, vamos tentar entender o que se passa conosco, rever nossa metodologia, rever os conteúdos que estamos ensinando, buscando uma ação pedagógica verdadeiramente significativa, tanto para nós, educadores, como para os alunos. Do mesmo modo, quando um aluno repete de ano, quando abandona a escola e este problema nos toca de forma direta, vamos nos debruçar para tentar encontrar e entender o problema do aluno, mas nunca pensamos que o problema possa ser nosso! Ou, como disse o Fernando Henrique em seu pronunciamento, quando alcançamos o índice de repetência e de evasão que temos hoje, não pode ser aquele imenso contingente de alunos que está errado, mas é a escola que deve estar errada.
Mas afirmei que por trás disto está a relação de poder. A equação saber é poder é bastante conhecida, embora Michel Foucault tenha tido a ousadia de afirmar que o poder produz saber, assim como o inverso também é verdadeiro, o que, no final das contas, não invalida a equação, apenas a amplia ainda mais. Ora, na sala de aula o professor é aquele que sabe; é, portanto, a autoridade, o local do poder. Devemos nos lembrar de que, nas antigas salas de aula, o mestre ocupava o púlpito; mesmo hoje, ainda temos algumas salas de aula em que o espaço do professor é um tablado, mais elevado do que o espaço dos alunos. Embora explicações didático-pedagógicas sejam sempre possíveis, é inegável e incontestável seu caráter ideológico e político – no sentido do exercício do poder. Algumas cenas do filme The Wall, dirigido por Allan Parker e baseado num álbum da banda inglesa Pink Floyd são mais do que emblemáticas a esse respeito.
As ditas pedagogias novas – escola nova e construtivismo, por exemplo – tentaram e vêm tentando esvaziar esse poder do professor, colocando o aluno como centro do processo e o professor como um auxiliar (ou facilitador etc. – os termos variam de autor para autor) do processo de ensino-aprendizagem, o que Régis de Morais chamou de “revolução copernicana no ensino”. Nossa prática quotidiana nas escolas mostra, porém, que tal revolução não vingou. Pode ter diminuído a prepotência de alguns mestres e certamente diminuiu a ação de todos, mas não esvaziou de poder o professor, devido, sem dúvida alguma, à surda e calada resistência dele, que agarrou-se a essa autoridade conferida pelo saber como os ditadores perseguidos agarram-se às suas fortunas depositadas em bancos suíços.
A questão ganha, hoje, contornos ainda mais complicados. A aguda crise da educação fez com que os professores fossem gradualmente perdendo seus salários e seu status social. Ser professor hoje é ser um pária; vivemos uma situação quase pior do que a do pedagogo grego, que não passava de um escravo. O professor hoje quer e precisa, portanto, assegurar o mínimo que lhe resta de dignidade, e acontece que o que sobra de tal dignidade é o fato de ele ser, pretensamente, aquele que sabe. Faço questão de frisar o pretensamente, dado que todos sabemos qual é o nível da formação acadêmica de muitos dos que, por uma razão ou por outra, pretendem ser professores.
É por isso que dificilmente se aceita discutir, nas salas de professores, a questão da repetência e da evasão. Parece que estão querendo, uma vez mais, jogar a culpa do fracasso sobre nós, tirando-nos o último traço de dignidade que nos resta. Só que, para que sejamos realmente dignos, devemos assumir, sim, a nossa parcela nessa culpa. E temo que ela não seja pequena...
A educação tem sempre se valido dos mecanismos de controle. Se existe uma função manifesta do ensino – a formação/informação do aluno, abrir-lhe acesso ao mundo da cultura sistematizada e formal – há também funções latentes, como a ideológica – a inserção do aluno no mundo da produção, adaptando-se ao seu lugar na máquina. A educação assume, desta maneira, sua atividade de controle social. E tal controle acontece nas ações mais insuspeitas.
Foucault denunciou os mecanismos mais explícitos da escola, quando traçou em Vigiar e Punir os paralelos desta instituição social com a prisão. Mostrou que a estrutura física e arquitetônica da escola está voltada, assim como na prisão, para a vigilância/controle de seus alunos/prisioneiros. São muitos os olhos que sentimos sobre nós, o que introjeta o controle e faz com que nós próprios nos vigiemos. Mas o filósofo francês também apontou outros mecanismos da escola muito menos explícitos, como a disciplinarização. Há dúzias de argumentos pedagógicos para explicar a razão de o conhecimento estar dividido em disciplinas: facilita o acesso/compreensão do aluno etc. etc. Mas, por detrás disso, paira o controle: compartimentalizando, fragmentando, é muito mais fácil de controlar o acesso, o domínio que os alunos terão e também de controlar o que eles sabem. Lembremos do sábio conselho do general romano: “dividir para governar”.
Outro aspecto deste termo ambíguo não por acaso, a disciplinarização, diz respeito mais diretamente à questão do poder. A escola é o lugar da disciplina, de seu aprendizado e de seu exercício. Não vai longe o tempo em que os alunos faziam, nos pátios das escolas públicas, antes de entrar em aula, exercícios de ordem unida, como recrutas num quartel, e acredito que em alguns lugares isso ainda seja prática comum. A disposição de carteiras numa sala de aula, por outro lado, visa também à disciplinarização dos alunos e uma melhor possibilidade de controle por parte do professor, que domina geopoliticamente a classe, percebendo seu mapa geográfico e podendo armar uma estratégia/tática de aula. Mesmo no caso das pedagogias novas, que rompem com o tradicional enfileiramento das carteiras, permanece uma forma implícita de o general dispor seu exército no campo de batalha da sala de aula. Em outras palavras, a sala nunca é um caos, com os alunos ocupando o espaço desordenadamente, mas há sempre uma ordem implícita que, se visa a possibilitar a ação pedagógica, traz também consigo a marca do exercício do poder, que deve ser sofrido e introjetado pelos alunos.
Um terceiro e último aspecto é o que nos interessa mais de perto. Para disciplinarizar e controlar a escola faz uso do mecanismo da avaliação, também recoberto de mil argumentos didático-pedagógicos, mas outra marca indelével do poder e do controle. Ora, dirão alguns, como educar se não tivermos um feedback dos alunos, só possível através dos mais diversos mecanismos de avaliação, para reorganizarmos continuamente o processo pedagógico? E terão toda a razão. Mas, por outro lado, também não podemos deixar de reconhecer que a única forma que a burocracia escolar encontrou ao longo dos séculos para materializar os resultados de tais avaliações foi a sua quantificação em termos de notas e, modernamente, de conceitos que, no fundo, nada mudam, mas continuam classificando e quantificando. Se deixarmos de lado o caráter desprezível desta quantificação em nome de sua absoluta necessidade, não podemos negar que ela acaba servindo como instrumento de poder. O professor é aquele que tem o poder de dar a nota e, assim, aprovar ou reprovar o aluno.
Já no início deste século os pedagogos anarquistas rejeitavam a realização de provas, exames e a atribuição de notas aos alunos, denunciando o caráter eminentemente político e dominador desta empreitada. É exatamente esta questão que está por trás da resistência dos professores em aceitar abdicar de seu poder de avaliar. Avaliar é decidir. Decidir é dominar. Dominar é ter poder. Não temos um salário digno, perdemos nosso status e, o que nos resta e ao que nos agarramos com firmeza é o nosso poder de decidirmos sobre a vida dos alunos e, assim, dominá-los. Não importa se minha aula é chatíssima, se o conteúdo que “ensino” não é nem um pouco significativo. Como vou dar uma nota ao aluno, aprovando-o ou reprovando-o, ele é obrigado a assistir a aula. Como se assistir a toda e qualquer aula fosse o critério absoluto para uma educação de qualidade...
Reafirmo que a questão é polêmica. Num artigo pequeno e brilhante, Gilles Deleuze afirma que estamos transitando das sociedades disciplinares analisadas por Foucault – que deram origem à prisão e à escola como conhecemos hoje – para as sociedades de controle, que certamente engendrarão novas instituições, assim como provocarão agudas transformações nas que conhecemos. Demonstra o filósofo que a característica básica destas sociedade é dar a ilusão de uma maior autonomia mas, mesmo por isso, serem muito mais totalitárias que as anteriores. Por exemplo, hoje não preciso ir à agência bancária, pois controlo minha conta por telefone, fax ou microcomputador; pareço, por isso, ter uma autonomia muito maior. Porém, a facilidade do acesso informatizado permite aos governos que eu seja vigiado muito mais de perto, e o que é pior, na maioria das vezes sem nem ao menos suspeitar disso!
É claro que a escola não fica de fora nessa nova onda social. Nesse artigo publicado em 1990 Deleuze aponta rapidamente algumas transformações pelas quais ela deve passar:
“No regime das escolas: as formas de controle contínuo, avaliação contínua, e a ação da formação permanente sobre a escola, o abandono correspondente de qualquer pesquisa na Universidade, a introdução da ‘empresa’ em todos os níveis da escolaridade.”
Notaram algo parecido com o discurso de Fernando Henrique citado no início? Não, não é mera coincidência. As reformas propostas pelos governos estadual e federal não são movidas apenas por um desejo e uma necessidade de uma educação de qualidade; ou, dito de outra maneira, o paradigma de qualidade assumido por eles é o da qualidade total, este totem do neo-liberalismo que insiste em instaurar uma nova ordem mundial, sob seu absoluto e transparente controle. É assim que se propõe a avaliação contínua, a formação permanente, a parceria com as empresas e estes mecanismos para melhorar a qualificação do operariado brasileiro, a diminuição dos índices de reprovação e evasão escolar. É preciso que se mostre ao mundo que o Brasil é um país capacitado, apto a andar de mãos dadas com a modernidade! Mesmo que a modernidade signifique mais controle, e uma subserviência ainda maior...
Sim, este discurso precisa ser denunciado e criticado. Mas simplesmente não podemos fazê-lo com as armas velhas! Não podemos apontar uma adaga para combater um míssil com ogiva nuclear! Se quisermos fazer uma oposição séria e conseqüente ao discurso oficial, continuando na luta por um sistema de ensino sério, competente e verdadeiramente de qualidade, devemos buscar uma nova tática, que implica em que assumamos nossos erros.
Devemos começar por abdicar ao discurso do poder. Não podemos defender a rigidez do sistema de notas/avaliação que culmina na reprovação, pois subjaz a ele nosso sádico desejo de poder despótico, que é o mesmo que move as ações oficiais. Se a tônica do momento é a avaliação contínua, o acompanhamento do aluno sem sua reprovação por entre as séries, podemos fazer dessa ação pedagógica uma ação verdadeiramente educativa, contribuindo de fato para com a formação dos seres humanos que encontram-se quotidianamente conosco em nossas salas de aula.
Negar o passado não é a melhor forma de encarar o futuro, mas agarrar-se a ele tampouco possibilita um presente satisfatório. As maiores batalhas foram vencidas pelos exércitos que souberam aproveitar-se das armas do inimigo, voltando-as contra ele próprio. Penso que essa deva ser nosso caminho. Assumindo com humildade nossos erros históricos e a disposição de superá-los, podermos construir, de fato, a escola que queremos.