Sr. Controle Social
Acabe com todos os carros
Um protesto sincero e zeloso contra a superabundância de carros motorizados, junto com algumas sugestões para a eliminação desta desgraça na forma de uma carta aberta a todos os motoristas.
Caros Motoristas
O Absurdo de Tudo Isso
Estão por aí estes grandes pedaços de metal arremessando-se a alta velocidade em áreas residenciais. Eles são tamanha ameaça à vida e saúde que cada viagem feita qualquer outro meio é gasta principalmente evitando estes objetos monstruosos. Eles são a maior causa da poluição atmosférica e do aquecimento global. São o maior mercado da indústria de petróleo que fomenta a guerra. Seu ruído é o ruído da cidade. Estes carros são tão centrais à organização desta sociedade, especialmente à organização do trabalho, que uma ilusão tem que ser mantida de modo que ninguém veja nada de errado com o número sempre crescente de carros.
Proteger-se deles transformou-se na nossa responsabilidade como pedestres. Não é você que se supõe ter que parar, olhar e escutar. Estar em segurança na estrada é a primeiríssima coisa que as crianças são ensinadas. Supõe-se que todos nós identifiquemos nossos próprios interesses com aquele da economia, isto é, o crescimento econômico. Um dos indicadores principais do crescimento econômico é o crescimento da venda de carros. Os apresentadores de telejornais anunciam uma queda nas vendas de carros com o mesmo tom de voz usado para apresentar estatísticas de desemprego ou ataques de terroristas. Os anúncios, a mídia, o próprio design de nossas cidades, todos afirmam que o que é conveniente para você motorista é conveniente para todos. Isto é parte de uma suposição maior de que todos nós vivemos em unidades familiares feitas sob a medida do carro e de que todos queremos chegar de onde estamos indo o mais rapidamente possível.
De fato muitas pessoas vêem algo errado nesta situação. Mas a maioria delas não são motoristas. As pessoas que estão fora do difundido privilégio de possuir um carro geralmente estão fora do privilégio mais raro de possuir uma voz que possa ser ouvida. A maioria de nós resmunga ocultamente sobre o assunto no alto do ônibus e balançam os braços impotentemente em faixas de segurança de cruzamentos. Mas alguns vão mais longe...
Suas Viagens, Nossos Corpos
"O MX-5 distingui-se na sua capacidade de envolver o motorista em cada ação, de modo que você logo sinta que é apenas uma de uma riqueza de partes que se movimentam, tudo em total harmonia. Troque a marcha, a maneira que ela se agarra em torno da próxima abertura é uma revelação." Autocar & motor
Em 1991, numa conferência de escritores criminais britânicos foi perguntado "como você mataria alguém?". Muitas maneiras engenhosas foram propostas, algumas das quais poderiam criar excelentes mistérios: empurre-os para fora da vigia, enfie-os um pingente de gelo. Curiosamente, o método mais comum e o mais prático sugerido foi passar com um carro por cima deles. Não somente o criminoso já está no veículo de fuga quando o crime é cometido, mas mesmo se pêgo a punição será insignificante. A alarmante suavidade mostrada com motoristas assassinos talvez esteja relacionada à dissonância entre a finalidade declarada da justiça penal e seus resultados práticos. A julgar por estes fatos, a função principal de punições legais não é deter o crime mas criá-lo, consolidar e treinar uma classe criminal ativa. O espectro de tal subcultura faz o resto da sociedade parecer mais como uma prisão em sua volta. Nós nos tornamos temerosos de deixar nossas celas e começamos a considerar nossos carcereiros como protetores ao invés de opressores. Para que a criminalidade seja eficazmente aterrorizante ela necessita da figura do estuprador, do assaltante, do inexplicável marginal que ataca na escuridão, não do representante de vendas bêbado que dirige do escritório, da festa para casa. Onde o medo do marginal promove o conformismo, o medo do representante de vendas promove a rebelião. Por isso os motoristas que batem e correm não ganham a publicidade dos assassinos em série. Suas vítimas são tão mortas quanto as outras. De fato a frouxidão de medidas punitivas contra motoristas letais é apenas uma de uma confusa mistura de duplos padrões usados para depreciar os perigos do tráfego. Os políticos rejeitarão um aumento do crime como sendo causado "na maior parte por transgressões no tráfego", enquanto isso tornam-se completamente apopléxos sobre o roubo de carros e furtos para se dar um passeio. A polícia queixa-se pelo fato de quererem pegar bandidos mas "acabarem trabalhando no tráfego". Uma única morte em um acidente de trem é notícia de manchete, merecendo um inquérito público e a renúncia de ministros de transporte, enquanto o mais terrível engavetamento na estrada dificilmente merece uma menção na imprensa.
Na Índia a vaca é tida como um animal sagrado o qual os motoristas devem dar passagem. Em nenhuma parte do mundo o ser humano é similarmente sagrado. O fato de não podermos cruzar a estrada se você estiver vindo é tão óbvio, tão banal, que mal parece questionável. Contudo, certamente este não foi sempre o caso, havia uma época em que nós tínhamos o direito de passar. Então como isto aconteceu? Imagine um mundo onde você sempre tivesse que parar para nós. Como ele seria? E você gastaria $20.000 em um carro sob tais circunstâncias? Talvez esta seja a chave do mistério. Talvez nós não devêssemos perguntar: como a sociedade tolera o matança anual de 5000 pessoas na Grã Bretanha, e de um milhão de pessoas no mundo? Mas sim devêssemos perguntar: como uma sociedade de motoristas tolera qualquer outra coisa? Para nós, esta matança é um dos muitos inconvenientes do carro. Para você, é uma das suas muitas vantagens. É o risco de dirigir que o torna excitante para você. Você considera seu carro uma forma de liberdade porque a única liberdade que você pode imaginar é a liberdade de matar e mutilar outros. Sua vida é planejada e ritualizada em cada detalhe. Seu plano de pensão, sua hipoteca e sua vida sexual são finalizados décadas antes. É alguma maravilha sua fome pela emoção de dirigir negligentemente? Não é dirigir a única coisa que você faz sem um supervisor olhando sobre o seu ombro? Não é a única coisa que você faz, de acordo com suas próprias vontades, para você mesmo? Não é o único momento que você tem para você mesmo? Poderia ser por isto que você é tão agressivo quando você dirige? Seria tanto uma forma incômoda de desespero quanto um tipo arrogante de machismo? O carro de um homem diz muito sobre ele. Mas por você cortar seu caminho através de um engarrafamento em um ritmo menor do que caminhando, você tem somente o potencial de alcançar a velocidade perigosa, erótica, prometida no anúncio. Se isto for verdadeiro, então você foi feito de bôbo. Te venderam perigo sem excitação. Você tem a liberdade de ir a qualquer lugar que você quiser, à medida que exista comércio suficiente no extremo oposto. Te venderam uma mera representação da liberdade, uma individualidade que é apenas como todas as demais, que é apenas suficiente para permitir que você tolere sua intolerável vida diária. Nós não lamentamos por você ou pelo tempo que você gastou trabalhando para pagar por seu carro e sua gasolina. Nós lamentamos por nós mesmos porque bêbado ou sóbrio você está nos mutilando e nos matando.
A Transformação da Cidade
".... os esforços de todos os poderes estabelecidos para aumentar os meios de manter a ordem nas ruas culmina finalmente na supressão da rua." Guy Debord. A Sociedade do Espetáculo: 172. 1967
"O transporte urbano tem a ver não somente com a locomoção das pessoas e dos bens para dentro, para fora e através da cidade, mas também com a organização espacial de todas as atividades humanas dentro dela." John W.Dyckman. Transportation in Cities. Scientific American September 1965
No antigo terminal de ônibus Vicar Lane de Leeds há um aviso que diz: "O Estacionamento Nacional de Carros gostaria de desculpar-se aos passageiros de ônibus por quaisquer inconveniências causadas pela demolição deste terminal de ônibus e de sua conversão em um estacionamento para carro." Tudo bem, não digam nada senhores. Simplesmente em termos de número de passageiros, substituir uma estação de ônibus por um estacionamento para 20 carros dificilmente é algo eficiente. E existem mais coisas importantes para as cidades do que a eficiência. O terminal de ônibus Vicar Lane não era nenhuma maravilha mas fornecia ao menos um lugar de reunião com o abrigo da cobertura e assentos. Um estacionamento de carros, em contraste, é um espaço morto, vazio e funcional. Está lá somente para permitir que se trabalhe em algum outro lugar. Muitos outros exemplos poderiam provar a mesma coisa - que mesmo se os carros pudessem existir sem o tráfego, por exemplo se eles pudessem perambular através do hiperespaço de A à B sem ocupar quaisquer dos pontos entre eles, seriam ainda um incômodo considerável em termos da sua ocupação do espaço urbano. Eles são muito maiores do que o único ser humano que eles freqüentemente carregam. Eles são uma posse privada e por isso ficam inativos muito tempo (o que faz a curta vida-rodada de sua obsolescência planejada a coisa mais risível). Eles levam você ao trabalho, às compras, ao cinema e para casa novamente, de modo que cada carro através de seu espaço para estacionamento ocupa uma área maior do que a casa da maioria das pessoas. De qualquer modo, os carros não existem sem o tráfego, eles ocupam muito mais espaço como tráfego em movimento do que como objetos estacionados. São uma modalidade de transporte tão deficiente que não podem ir a nenhum lugar sem superfícies especiais chamadas ‘estradas’ para se locomoverem sobre elas, sem oficinas para os consertar, postos de gasolina para os reabastecer, sem escritórios de seguro, pontes e, é claro, hospitais. A ocupação da terra pelo carro toma proporções impressionantes na maioria das cidades: 23% de Londres, 29% de Tokyo, 44% de Los Angeles.
Este seria um estado de coisas terrível em si mesmo, porém ele é exacerbado pela natureza do espaço urbano que o tráfego roubou. Se nós considerarmos uma divisão em três partes do espaço do não-carro em:
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espaços privados, por exemplo: casas, jardins;
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espaços públicos, por exemplo: parques, praças;
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espaços de corporações, aqueles possuídos por firmas privadas ou mantidas inacessíveis ao público, usadas pelo estado, por exemplo: departamentos de polícia, locais de trabalho, lojas e faculdades.
Então diversas tendências podem ser vistas relacionadas à mudança da economia do espaço. Primeiro, quando o poder de gênero é mediado pelo espaço, ele acontece geralmente dentro destas categorias, não entre elas. Embora o assédio sexual na rua possa atravessar o limite entre o espaço do carro e o espaço público. Segundo, uma conquista gradual do espaço público pelo espaço corporativo está em andamento. A substituição de parques públicos por shopping centers de corporações privadas é um exemplo disto. Terceiro, enquanto o espaço privado não é obviamente afetado pela conquista de áreas públicas no entanto ele está longe de ser distribuído igualmente entre seus vários usuários. Por último, o espaço do carro está em um estado contínuo de expansão com o espaço público como sua vítima principal.
Estes fatos em desenvolvimento obviamente não fornecem a maior liberdade de movimento para todos. Camadas melhores protegidas de acessibilidade que variam do espaço genuinamente privado (não apenas a família) até níveis sobrepostos de comunidade específica e uso de espaço específico até grandes extensões de espaço genuinamente público (não somente dominado pelo tráfego), forneceriam uma liberdade de movimento e também de atividade muito maiores. Embora isto possa não ocorrer a menos que todos tenham pelo menos o controle espacial sobre seus próprios corpos. As economias atuais relativas ao espaço ditam a atividade canalizando o movimento ao longo de corredores estreitos, que ligam ambientes altamente controlados tais como a megaloja de brinquedos, o local de trabalho e o lar da família. O prospecto de que uma cidade que pudesse ser algo mais do que um conjunto conveniente de estradas que ligam espaços controlados parece hoje muito distante, em uma época em que mesmo os edifícios mais imponentes possuem um ar de utilidade monetária em relação a eles. Mas mesmo na Inglaterra Victoriana, muito dificilmente considerável uma sociedade utópica, o espaço público era uma consideração automática de qualquer projeto arquitetônico.
As estradas determinam não somente as proporções relativas de cada tipo de espaço mas também sua distribuição. Quanto mais pessoas têm carros, ou melhor, quanto mais dinheiro é gasto por motoristas, mais lugares tornam-se fora do alcance para pessoas quem não têm carros, testemunham o êxodo de lojas das ruas elevadas às beiras de estradas. Ironicamente, a máquina que é vendida por sua capacidade de dar a liberdade de movimento e por sua capacidade de cobrir distâncias cria de fato tanta distância quanto ela atravessa. Assim as duas tendências dominantes na distribuição espacial de atividades urbanas, a saber, o imperialismo do tráfego e o zoneamento urbano, são inteiramente circunscritas ao domínio do veículo de motor sobre o transporte como um todo. O carro está substituindo coisas que você quer fazer por coisas que você tem que fazer, enquanto locomove simultaneamente as coisas que você tem que fazer de modo que ficam cada vez mais afastadas umas das outras. Isto empobrece sua vida já miserável, uma vez que você tem que gastar cada vez mais horas no volante. Empobrece também nossas vidas, porque mais possibilidades se deslocam para fora de nosso alcance, nossos movimentos são canalizados ao longo de trajetos predeterminados e sempre mais estreitos, temos mais e mais estradas a cruzar cada vez mais movimentadas e perigosas.
A ironia final é que você não pode ganhar nenhuma satisfação de todo o espaço que está sendo convertido tão generosamente para seu uso. Você não usa realmente o espaço que você cruza mesmo que você impeça-nos de usá-lo, tudo que você faz é tentar minimizá-lo passando por ele o mais rapidamente possível. No que te toca, você nunca está realmente nele, você apenas assisti-o passar, como um programa chato de televisão projetado em seu pára-brisa. E quanto mais espaço há para você, de modo a você supor e desejar que não tivesse que dirigir, mais infeliz você é porque mais obstáculos existirão ao seu progresso: outros carros. Você deve odiar carros, realmente odiá-los, mais do que nós como pedestres podemos realmente imaginar.
A Necessidade de dirigir
De certo modo, você foi forçado a dirigir. Muitos bairros de Los Angeles não têm nem sequer calçadas. Milton Keynes é um pouco melhor. A vida para muitas pessoas é hoje impossível sem um carro. De modo a se ganhar ou se gastar dinheiro, o carro transformou-se numa necessidade. O que isto está fazendo com as pessoas? Propagandas dizem que dirigir é uma forma de liberdade, um tipo de poder. Os anúncios estão dizendo a verdade mas ao mesmo tempo estão mentindo. Porque os carros são caros, e falam do controle físico do espaço, tornaram-se símbolos de riqueza. Porque a sexualidade masculina foi construída como mecânica e agressiva, e porque o carro é um modelo de escala da família nuclear, os carros vieram representar o poder masculino. Como motorista você tem poder sobre os pedestres, sobre os passageiros e sobre o espaço urbano; assim o carro representa sua própria realidade: o poder do motor.
Mas o carro somente pode levá-lo onde ele já esteve. Dirigir é como fazer compras em um supermercado. Você está em uma pequena bolha, sozinho sem responsabilidade com ninguém. Você pode comprar (dirigir) qualquer produto (destino pré-fabricado) que você goste, mas você pode somente escolher o que se oferece. Você está isolado e ao mesmo tempo re-incorporado a um grande esquema de dominação. Você se sente privilegiado mas você está sendo usado. Os poderes estabelecidos preferem estradas às ruas porque uma estrada movimentada é apenas uma prisão com celas móveis. Um motorista pode deixar a estrada mas não pode influenciar outros para que façam do mesmo modo mais do que um cadáver pode começar uma insurreição em um cemitério. Um carro é um acidente que procura algum lugar para acontecer, e quanto mais as pessoas têm carros, mais parecidos todos os lugares se tornam, assim menos significativa é sua "liberdade de movimento".
Modelando o espaço no qual a atividade humana ocorre, a rede de estradas pré-arranja nossos movimentos. Mesmo um ‘feriado’ não é nada além de uma longa viagem, uma seqüência linear de experiências com nenhuma estrutura ligando-as além de "qual é o próximo?". Finalmente a determinação das experiências, determina emoções. Você não tem mais poder para influenciar as imagens no pára-brisa durante seu caminho para o trabalho do que aquelas na tela da televisão da sua casa, então você se sente impotente. O isolamento nos faz sentirmos só. A repetição infinita dos mesmos pequenos rituais, reforçada pelo intratabilidade da geografia urbana, faz-nos sentir aborrecidos.
Nós podemos observar nosso tédio, do mesmo modo que podemos observar um estacionamento de carros e sentirmos tão pouco poder para acabar tanto com um quanto com o outro. O tédio é a conseqüência do estacionamento para carros e o estacionamento para carros é a reificação, a tradução no mundo material, do tédio. Este tédio não é nada mais do que o tédio do próprio mercado. Ele ocorre dentro de nossas pequenas bolhas. É uma miséria secreta e solitária, tão escondida quanto a miséria das viúvas do carro a motor, sonhando toda noite com seus maridos queimando à morte sem socorro, amarrados a um assento plástico em uma estrada.
A transformação do planeta
E se isso não é ruim o bastante, está começando a piorar. Este sistema de tráfego somente pode existir em um estado de expansão perpétua. Ele aumenta as distâncias sobre as quais os bens e as pessoas devem ser transportados. Então, engenhosamente, ele oferece uma solução a este problema: o carro e o caminhão. Cria ruas inseguras, vazias, detestáveis ruas, a seguir oferece o carro como uma forma de segurança. Cria um mundo rico voraz por estilos de vida de status e infinitas matérias-primas, oferece-se então como um parâmetro do grau de "desenvolvimento" ao mundo pobre. Do mesmo modo que ele está transformando a cidade, está transformando o resto do planeta.
A extração de minérios na busca por matérias-primas esculpe grandes cicatrizes abertas na paisagem, freqüentemente expulsando pedestres nativos de suas terras e de sua subsistências. Os minérios são processados em enormes indústrias. Os metais e os componentes são enviados através do globo em navios que vazam. Vidas são deformadas nas fábricas que montam componentes, nas indústrias que produzem borracha, nas minas e nas refinarias, nas forjas e nos fundições mutilantes. E em cada estágio, até atirar os destroços queimados do produto final em uma vala de concreto, transportando os pneus usados para o mar pela barca-carga e lançando as baterias vazando ácido em um rio, a poluição é jogada na atmosfera, escoando na hidrosfera e sendo enterrada na lama.
No alto disto tudo, os carros necessitam de gasolina que polui em seus pontos de produção e de consumo e em cada ponto entre os dois: o carro-tanque, o abastecimento do posto e o motor de seu carro. As emanações da queima da gasolina são a maior fonte artificial de carbono atmosférico no mundo. Os principais dissipadores de carbono que absorvem o carbono da atmosfera são os florestas tropicais e o plâncton dos mares do sul. Infelizmente as florestas tropicais estão sendo destruídas e o plâncton está sendo ameaçado pela diminuição do ozônio (um processo acelerado pelas emanações do carro). Mesmo sem esta destruição, os dissipadores seriam incapazes de lidar com o número atual de carros. O que está realmente em jogo aqui é a ecologia da superfície inteira do planeta.
A Terra não é por si própria possibilitadora da vida humana, ou de qualquer outro tipo de vida. As temperaturas atuais de sua superfície e a composição atmosférica tiveram origem através de interrelações entre organismos desde os últimos três bilhões de anos e são ainda hoje sustentadas unicamente pela continuidade destas interrelações. É totalmente óbvio que matando-se muitos destes organismos e jogando-se bastante sujeira no ar, no mar e no solo se irá interferir nestes delicados laços de interdependência. A superfície da Terra facilmente poderia ser tão hostil à vida quanto as superfícies de Marte ou de Vênus. A extinção de nossa espécie não vem necessariamente disto. Se bases na Lua e em Marte puderem ser criadas, se biosferas orbitais artificiais puderem ser planejadas, então a vida poderia ainda continuar apesar da Terra devastada. Cidades limitadas por abóbadas esféricas ou enterradas em cavernas do aço não são mais impraticáveis em termos puramente técnicos do que o túnel do Canal da Mancha. É exatamente nesta viabilidade da vida em um ambiente completamente artificial que reside a irônica idéia de que as classes responsáveis pelos males atuais da Terra serão eventualmente agradecidas pela nossa salvação.
Os especialistas Verdes asseguram-nos que sabem o que estão fazendo, e se apressam em fazer o próximo pedido de pacote de medidas, mas a afirmação que os donos do poder planetário não estão enlouquecidos bastante para realmente, realmente o fazerem não convence mais do que nos dias da Destruição Mutuamente Assegurada. Não importa quais são psicóticos e quais são benevolentes, porque os donos do poder são sempre devedores do próprio poder. Em um mundo governado pelos valores da bolsa o dinheiro não pára em nenhum lugar. Ele passa de Tokyo a Londres a Nova York e volta para Tokyo novamente. Por que eles devem se importar se o mundo inteiro for transformado em um deserto repleto de radiação? Se nenhum ser humano puder jamais ver a luz do dia com seus próprios olhos? O que significa para eles se cada criatura bonita e inútil do mundo for eliminada para sempre? Se formos reduzidos a beber nossas próprias urinas milhas abaixo do solo, dependente deles para cada inspiração de oxigênio que nós dermos? E se com este atraso eles estão dispostos a conservar a biosfera, então por que o mais Verde entre eles proclama que as florestas tropicais devem ser salvas somente à fim de que as plantas sejam usadas para fazer o shampoo de ervas? Se se importam com a qualidade de vida que seus subordinados levam, então por que milhões empenham-se no sul para alimentar as dívidas impostas pelos bancos do norte?
A verdade é que o desastre ecológico seria um golpe de sorte para aqueles que se beneficiam do domínio sobre nossas vidas. O carro é um dispositivo eficaz para representar e estender o poder sobre o espaço. Contudo ele é ainda vulnerável. Enquanto nosso ar for ainda respirável, enquanto a experiência da luz do sol sobre o rosto de alguém ainda permanecer; então qualquer um pode incendiar um carro, derrubar uma estátua, queimar um banco ou derrubar cinco casas juntas para fazer uma indecente comuna. Por outro lado, a destruição da atmosfera envolveria uma maciça centralização do poder político. O refúgio em cidades prateadas fechadas tornariam ataques físicos à superestrutura da vida urbana e do poder econômico não somente difíceis mas suicidas. De fato estaríamos todos vivendo em um enorme carro, e você não pode atear fogo a um carro quando você está sentado no banco traseiro.
A vida além do pára-brisa
"Por que as pessoas têm que partir depressa a algum lugar? Olhe para seu gatinho - está cochilando tão pacificamente! As máquinas trarão uma nova opressão ao homem. Elas apenas excitarão a inveja e a competição. A Revolução está no Risco, mas ele não será destruído. Se nós ganharmos, então nós aniquilaremos estes motores. No lugar, nós plantaremos os bosques de Jean-Jacques... " Desconhecido, Moscow, 1921
"Nós estamos tomando esta rua para plantar alho até que cada carro vire um vaso de flores e cada estrada um loteamento " Brighton Reclaim the Streets, dia dos namorados de 1996
Nós não estamos repletos de métodos alternativos de transporte para que você vá a todos seus ridículos shopping centers, edifícios de escritórios e tudo mais. Nós não estamos indo vendê-lo um bilhete para um dirigível ou um pônei para a pista lenta. Nós não acreditamos no melhoramento do transporte público. Nós detestamos o transporte público. Nós odiamos pagar por ele, esperar por ele, olhar as ruas sujas e bloqueadas por carros através das janelas deles.
Sem tráfego as cidades poderiam viver. Se o transporte fosse suspenso e liberado, então o interior tornar-se-ia irreconhecível. A suspensão permitiria que vastas faixas de terra pública fossem liberadas, fazendo a cidade um lugar emocionante e agradável de estar. As gigantescas rótulas nos centros das cidades transformar-se-iam em fóruns públicos novamente, com fontes borbulhantes e com árvores plantadas. As largas estradas que cortam nossas cidades em fragmentos transformar-se-iam em passagens genuínas, ligando comunidades ao invés de as dispersarem. Haveria uma extremidade, um fim, às estradas e nós teríamos ruas para andar. Talvez algumas tivessem canais cortando os seus centros com decorativas pontes para se atravessar à pé, e lindos pássaros emplumados pisando cuidadosamente em coberturas de lírio. Se as atividades fossem menos dispersas geograficamente elas poderiam ser forçadas a tornarem-se menores em escala. As pessoas seriam trazidas ao mútuo contato diário. As ruas não seriam desertas, assim o crime de rua tornar-se-ia virtualmente impossível, fazendo a confiança entre diversos indivíduos e comunidades um objetivo realístico ao invés de uma vazia retórica liberal. Tudo isso tornaria praticável a idéia de democracia municipal, a idéia de pequenas áreas locais que são governadas diretamente por seus habitantes. Os conselhos de trabalhadores em uma fábrica não traz o controle dos trabalhadores sobre a produção se a fábrica faz apenas os componentes a serem montados em outra parte em um equipamento desconhecido. Do mesmo modo, nas cidades de hoje a democracia municipal não traria o controle das pessoas sobre as suas condições de vida, pois estas são montadas em outro lugar. A supressão do transporte, no mínimo, cria uma possibilidade de democracia.
A supressão dos transportes abriria um caminho para sua libertação. Não mais limitado pela racionalidade do tráfego, da repetição diária, do tempo, da economia e sobretudo da segurança; não mais ocorrendo a partir da devastação sem vida, do horroroso vazio, todas as viagens poderiam tornar-se prazerosas, mesmo que triviais. Toda locomoção poderia ser um passeio. Enquanto eu escrevo, as macieiras silvestres do lado de fora de minha janela foram cortadas pela administração pública porque os motoristas achavam um incômodo encontrar frutas derrubadas pelo vento em seus capôs. É surpreendente que você gaste tanto tempo limpando e polindo máquinas que tornam todo o resto ao alcance de sua vista uma imundice fedida. Macieiras silvestres não são um incômodo. Os carros são um incômodo. Sem carros nós poderíamos ter árvores em toda parte: Limeiras, Cajueiros, Amieiros, uma fila de Álamos-pretos em vez da Estrada-Leste, grandes carvalhos em vez do Minhocão. De onde você acha que vem o oxigênio afinal? Da merda do seu cano de descarga?
Estas mudanças não seriam garantidas pelo abandono dos carros, mas a ausência destas mudanças é garantida pela sua persistência em dirigi-los. Não há nada revolucionário em relação a qualquer coisa tão racional como a abolição do carro, embora possa ter que haver uma revolução para liquidar os interesses multinacionalmente investidos que impedem que tal racionalidade seja alcançada.
Se revoltando contra o carro
Para recapitular: muitas pessoas odeiam carros, apenas você não ouve muito sobre elas porque normalmente as pessoas que odeiam carros não são as mesmas que possuem jornais e companhias de TV. Fazer campanha contra o carro, contra seu domínio do espaço, sua destruição, tem uma vantagem peculiar sobre campanhas recentes de ação direta. Ao contrário dos armazéns, dos políticos e dos mísseis nucleares, os carros a motor e seus condutos não são difíceis de encontrar. O que é tão irritante neles é também o que os tornam assim vulneráveis: eles estão absolutamente em toda parte.
O tráfego não é um assunto para ser tratado com medidas reformistas como a concessão de recintos para pedestres, passarelas e assim por diante. Isto não significa dizer que os reformistas não conseguiram reformas. Entretanto a reforma não pode desafiar o poder político da Estrada como uma instituição, nem o poder do Capital a que serve. De fato, bobas restrições ao carro somente servem para reforçar e legitimar a maquinaria do poder do motor, assim como o modo que a exposição excessiva de assistentes sociais somente legitima a barbárie diária da Família, destacando seus exemplares mais "disfuncionais". Nós não reconhecemos mais a distinção entre carros "verdes" e outros, entre a gasolina "verde" e seus produtos rivais, do que a distinção machista de desempenho entre dirigir "bem" e "mal".
Nós odiamos os carros porque estamos cansados de ver o mundo em nossa volta rasgado a força, um mundo onde não temos nenhum controle sobre qualquer coisa que fazemos. Estamos cansados de nos vermos fazendo o necessário. Nós poderíamos estar participando no que é agradável. Há uma distinção entre assistir a um espetáculo de vida e realmente, verdadeiramente, viver. Infelizmente aqueles anarquistas (gritos, fora do armário agora) que adotaram esta distinção enquanto parte de suas opiniões têm freqüentemente obscurecido as atividades políticas práticas que tendem a confirmar suas teorias. Felizmente, contudo, existem muitos odiadores de carro tornando seu ódio em bem sucedidas, coletivas e divertidas transgressões da lei do carro a motor. Por exemplo, em fevereiro de 96, sozinhos, ciclistas em 17 cidades criaram uma paralisação no tráfego através das agora mensais manifestações de Critical Mass, milhares lutaram contra a construção do desvio de Newbury enquanto outras 5 campanhas anti-estrada ao longo do país ocuparam espaços contra o Departamento de Transporte; showrooms de carros foram invadidos por ativistas em Glasgow, escritórios de construtoras de estradas foram ocupados em Winchester, Londres & Southampton, 600 delirantes odiadores de carro recuperaram por 4 horas uma estrada principal em Brighton no dia dos namorados ouvindo bandas ao vivo, dúzias de percursionistas, tocando em um dançante castelo no meio da rua enquanto comiam algodão-doce cor-de-rosa e alta e prodigamente proclamavam ‘Snog Not Smog!’. {1}. Há um movimento crescente dançando e festejando contra o carro. Mas se agimos com tanto menosprezo assim a este sistema, porque ele se apresenta a si próprio como tudo que uma sociedade pudesse ser, se odiamos tudo que é parte dele, se somos tais nihilistas de modo a desprezar qualquer pequena campanha boba sobre um tema particular e isolado em favor somente de um ataque em todas as frentes, então por que escolher o carro? É porque o carro é um símbolo? Bem, um símbolo ele definitivamente é, mas ele é também uma realidade física. Seu tráfego incessante no tráfego é o que nos faz parar de gozar a vida. E talvez também o que nos impede de nos comunicarmos com você. É por isso que queremos despedaçar seu pára-brisa; nós queremos quebrá-lo para você e dizer que há um mundo aqui fora. Queremos alcançá-lo e retirar suas mãos do volante suado e levantá-lo delicadamente para fora do carro. Antes de derramarmos a gasolina no assento e ascender luz a esta horrenda coisa. Pela gasolina ele nasceu e pela gasolina ele morrerá. Portanto não diga que você não foi avisado.
"Foi demais para o autor Kudno Mojesic. Ele foi preso na rua do lado fora de sua casa em Belgrado atacando carros com um machado, gritando ‘acabem com todos os carros, eles são obra do diabo!’"
SUNDAY MIRROR, Londress: 11 de Janeiro, 1976.
Reclaim the Streets
Notas
{1} ‘Amasso não Fumaça’ (NT).