#title Anarquia e Cabeça Fria: o Especifismo como Ponta de Lança
#author T. Morago, Malfainer
#LISTtitle Anarquia e Cabeça Fria: o Especifismo como Ponta de Lança
#date 30/09/2024
#source [[https://www.regeneracionlibertaria.org/2024/09/30/anarquia-y-cabeza-fria-el-especifismo-como-punta-de-lanza/][www.regeneracionlibertaria.org]]
#lang pt
#pubdate 2025-04-09T11:14:59
#authors T. Morago, Malfainer
#topics especifismo, anarquismo, anarco-comunismo, estrategia
#notes Traduzido por Don Diego de la Vega.
“As revoluções sem teoria não avançam. Nós, os ‘Amigos de Durruti’, esboçámos o nosso pensamento, que pode ser modificado conforme necessário durante grandes convulsões sociais, mas que gira em torno de dois pontos essenciais e inadiáveis: um programa e armas.”[1]
As organizações anarquistas que seguem a estratégia especifista realizaram o nosso primeiro Encontro do Anarquismo Especifista. Este foi o passo seguinte num percurso de autocrítica e reformulação iniciado há algum tempo, separados mas dentro do mesmo contexto, que nos levou a afirmar o especifismo como o quadro que orienta a revolução que perseguimos. Nesta ocasião, queremos, enquanto militantes, destacar os contributos qualitativos que a estratégia especifista oferece ao conjunto da luta de classes. Isto significa explicar porque nos organizamos desta forma e não de outra, já que temos um compromisso militante com a nossa classe que nos impele a desejar a sua abolição, como parte da abolição do sistema de classes.
O texto divide-se em quatro partes mais esta introdução. Começamos por explicar que, enquanto revolucionários, as nossas ações resultam da avaliação das experiências passadas. De seguida, explicamos o conceito de militância dual, parte fundamental do especifismo. Na terceira parte, desenvolvemos o conceito de organização especifista e, finalmente, concluímos com a relação entre a organização especifista e a estratégia.
Antes de iniciar o artigo, achamos útil esclarecer que, quando falamos da classe trabalhadora, compreendemo-la na sua relação, enquanto classe e não enquanto indivíduos, com o sistema que organiza a produção e reprodução do nosso modo de vida como um todo. Ou seja, a classe trabalhadora não pode ser compreendida sem entender a totalidade das formas concretas de opressão vividas em termos de género, origem étnica, etc. Isto leva-nos a analisar cientificamente a realidade para identificar a base material que gera as condições específicas em que se manifesta a opressão racista, misógina, etc.
* 1. Avaliação como Pedra de Toque
Começamos por reafirmar que aderimos à estratégia especifista não por acaso, por estética ou pelas circunstâncias que nos rodeiam, mas porque acreditamos que “a avaliação da própria experiência é a marca de um movimento revolucionário”, como se afirma no Senda[2]. Se adotamos a estratégia especifista e não outra, é devido à nossa avaliação do ciclo político anterior, que pretendemos superar para não repetir os mesmos erros e para ultrapassar os entraves das nossas formas anteriores de organização. Este ciclo refere-se concretamente às lutas iniciadas por volta de 2008 com o rebentamento da bolha imobiliária, que ganham um carácter de massas com o movimento 15M e começam a esgotar-se após as Marchas da Dignidade de 2014 e o Procés em 2017, enfraquecendo significativamente após o confinamento devido à COVID em 2020.
Esta avaliação faz-se em três áreas: na nossa experiência organizativa particular, na conjuntura atual da luta de classes no Estado espanhol e na luta de classes a nível internacional[3].
Em primeiro lugar, adotamos a organização especifista para superar as limitações das formas organizativas insurreccionais, autonomistas e de síntese no anarquismo[4]. Ao mesmo tempo, posicionamos o anarquismo como semente da revolução e da abolição da sociedade de classes.
Em segundo lugar, adotamos o especifismo para rejeitar, nas organizações de base, a estratégia interclassista dos movimentos nascidos do 15M e dos movimentos de libertação nacional. Ou seja, organizamo-nos na organização especifista e nos movimentos da nossa classe para lutar pela independência política da classe trabalhadora.
Entendemos a independência política da classe trabalhadora (ou independência de classe) como a sua capacidade de manter uma estratégia própria na luta de classes, sem se deixar guiar por programas definidos pelos seus inimigos nem agir a seu favor. Opondo-nos ao interclassismo, que é a estratégia declarada de colaboração entre classes para acumulação de forças e que dominou o último ciclo político. A afirmação da independência de classe é inseparável daquilo que pretendemos quando defendemos a unidade entre meios e fins.
Em terceiro lugar, a análise histórica da luta de classes a nível internacional leva-nos a afirmar a necessidade de uma organização específica — uma organização com carácter político claro que reúna anarquistas que partilham um programa acordado coletivamente. Esta afirmação não surge de uma cópia mecânica das autocríticas surgidas após derrotas revolucionárias como a Comuna de Paris, o Território Livre da Ucrânia, a Espanha de 1936 ou a FAU nos anos 70, mas sim de uma análise contextualizada das suas experiências. Isto permite-nos extrair lições valiosas aplicáveis ao presente. Por isso, não adotamos acriticamente textos como A Plataforma Organizativa para uma União Geral de Anarquistas, os documentos COPEI[5], ou as publicações dos Amigos de Durruti em Amigo del Pueblo. Um exemplo desta avaliação, particularmente no campo da análise histórica da correlação entre teoria e prática do movimento anarquista global, é Bandeira Negra, de Felipe Corrêa.
Esta avaliação está a ser publicada no nosso meio de difusão, Regeneración. Este meio surge também da reflexão — integrada na avaliação — sobre a necessidade de um órgão que nos permita ter voz própria nos debates da nossa classe e das suas organizações militantes. Reconhecemos, por isso, que o proletariado revolucionário não se organiza exclusivamente numa estrutura orgânica única e que grande parte do impulso revolucionário surge do diálogo, da refutação e da validação das diversas teses revolucionárias promovidas pelo proletariado organizado.
* 2. Militância Dual
Fruto da avaliação histórica de que falamos, entendemos que a organização específica deve manter contacto constante com as organizações de massas, formas espontâneas e organizações potenciais da classe trabalhadora. Esta relação deve ser de fortalecimento, sempre com sentido estratégico.
A necessidade desta relação advém principalmente da necessidade de comprovar empiricamente hipóteses sobre a revolução — perceber que formas organizativas são úteis, quais não são, que necessidades são amplamente sentidas por grandes setores da classe trabalhadora, etc. Isto leva-nos, a nível organizacional, a adotar a militância dual: por um lado, militância dentro da organização específica e, por outro, militância nos múltiplos frentes surgidos das contradições do capitalismo[6].
Num primeiro momento, a militância dual dá-nos a garantia de impulsionar positivamente um frente sem o cooptar. Assegura que a organização especifista é uma organização de quadros militantes que trabalham para que o seu frente seja o mais útil possível para o interesse geral da luta de classes. Na sua militância dentro da organização especifista, os militantes nos frentes procuram colocar a particularidade da sua luta ao serviço de uma estratégia total, superando o isolamento dentro do seu próprio campo.
Esta articulação não é uma tática surgida do nada nem uma repetição dogmática de outros períodos de luta, mas sim uma resposta à independência e “autonomia pela autonomia”[7] vivida entre diversas organizações e setores da luta operária. Visa superar as várias formas de coordenação de lutas do ciclo passado, que fomentaram, em parte, compromissos, desistências e conflitos internos, levando-as a servir programas pequeno-burgueses[8].
* 3. A Organização Especifista
Ao contrário das organizações partidárias tradicionais, a organização especifista dá prioridade ao avanço dos frentes de luta concretos, posicionando-se como ferramenta para estes. Mas este não é o seu elemento distintivo. A principal característica da organização especifista é a capacidade de gerar uma estratégia total, participando em todos os frentes de luta da nossa classe e retirando deles ensinamentos para enfrentar o capitalismo como totalidade.
Como parte desta estratégia total que queremos construir, não aceitamos de forma irrefletida a forma atual da luta de classes, que denominamos forma-frente. Esta forma organiza-se em torno de frentes, de facto desconectados entre si, refletindo a fragmentação atual da classe trabalhadora e a conceção burguesa da realidade como compartimentos estanques. Organizamo-nos como anarquistas nestes frentes e moldamos a organização especifista com base neles porque a realidade é-nos dada, e se queremos que ela seja diferente, temos de nela intervir para transformá-la e adaptar as nossas ferramentas da melhor forma possível.
Consequentemente, e com base na nossa análise materialista, procuramos hoje reunir e organizar na organização especifista todas as pessoas que partilhem as posições políticas que tornámos públicas neste meio. Na construção de força social, a nossa militância em espaços mais amplos não se dá necessariamente onde há mais gente em torno de um problema concreto, mas sim, de acordo com a estratégia especifista, participamos em espaços cujas características qualitativas favoreçam a acumulação de força sob um programa de classe que gere estrutura com base democrática. Assim, procuramos evitar a reprodução do discurso dominante, fruto da ideologia burguesa, nos espaços em que participamos.
Através da organização especifista queremos superar a forma-frente atual, caminhando para uma unificação das lutas que antecipe a unidade orgânica da classe trabalhadora. Esta unidade orgânica, enquanto organização da classe como um todo, pode assumir diferentes formas, mas será a avaliação da experiência militante, da conjuntura e das necessidades da luta que determinará a sua forma.
Independentemente disso, consideramos mais importante o conteúdo do que a forma dessa unidade orgânica, entendendo que forma e conteúdo são inseparáveis. A forma organizativa mais potente é inadequada ao seu objetivo final — a abolição da sociedade de classes — se o seu conteúdo não for o da luta revolucionária da classe trabalhadora. Por este motivo, intervimos nos frentes de luta atuais para, para além das lutas partidárias, conquistar e defender a independência política da nossa classe. Seguindo a doutrina da unidade entre meios e fins, só dotando os frentes de um programa de classe estes poderão alcançar uma unidade orgânica da classe trabalhadora que ultrapasse a sua forma atual.
Embora o proletariado tenha sido o protagonista das lutas do início deste século em termos de número, não o foi necessariamente em termos dos interesses que defendia. Mais uma vez, vemos que um grupo social pode ser protagonista de um movimento ou organização sem defender posições que o beneficiem. Ou seja, a classe-em-si não traz intrinsecamente consigo o seu próprio programa de emancipação. Temos de reconhecer que, sob a forma de luta social autónoma, se alcançaram alguns avanços que melhoraram a qualidade de vida da nossa classe, a classe trabalhadora. Mas, para nos superarmos enquanto classe, as próximas lutas têm necessariamente de se desenvolver em direção ao horizonte do comunismo libertário. Para isso, a nossa principal tarefa como movimento especifista é hegemonizar o discurso de classe e o programa revolucionário. Este programa será fruto do esforço coletivo da classe, do diálogo entre os seus múltiplos setores e do debate orgânico necessário que termina com a tomada de decisões democráticas e só se reabre à luz de novos avanços científicos que ponham em causa as posições previamente acordadas.
* 4. Uma Estratégia para a Revolução
A organização especifista é um catalisador para unificar a classe trabalhadora em torno de uma teoria revolucionária. A pedra angular das funções mencionadas anteriormente da organização especifista é a sua capacidade de ser um centro de criação de discurso e estratégia para a totalidade da classe trabalhadora. Isto significa que, com a militância dual e a inserção social[9], a organização especifista permite à classe trabalhadora fazer o balanço da sua posição, das suas experiências de luta e dos seus inimigos — e aplicá-lo para continuar a avançar rumo à sua própria abolição.
“Propomos que, em vez de ser guiada pelo senso comum, a classe trabalhadora revolucionária, em cada momento da luta de classes, tenha decidido a sua direção de forma racional e científica — ou seja, tenha avaliado a sua posição, possibilidades, informação e conhecimento disponíveis e tenha agido em conformidade.”[10]
Um dos objetivos da organização especifista é, então, ser o órgão consciente da classe trabalhadora revolucionária.
Como exposto no Senda, a ausência de uma estratégia própria foi um dos fatores que permitiram a vitória do interclassismo no seio da classe trabalhadora, e a organização especifista surge em resposta a essa derrota. É, portanto, lógico que a organização especifista queira organizar a sua ação através da estratégia revolucionária.
Acreditamos que a organização especifista oferece uma resposta coerente e total à necessidade de organização revolucionária do nosso tempo. É capaz de assumir, impulsionar e desenvolver todos os frentes com potencial revolucionário onde a nossa classe possa intervir. Defendemos que este modelo de ação pode acumular forças de forma qualitativa e quantitativa dentro de uma teoria revolucionária, iniciando o caminho que torne a revolução possível. É nossa responsabilidade militante seguir em frente, avançando na causa proletária até à abolição da sociedade de classes.
* Conclusão
Resumidamente, entendemos o especifismo como um quadro teórico com conceitos definidos através da prática e fruto de uma avaliação crítica. Este quadro é adaptável, e a forma concreta da nossa organização responderá à situação concreta em que nos encontremos. Através da inserção social, realizada pela militância dual, podemos contribuir para o avanço da luta de classes, superando o particular e elevando-o à totalidade da luta política do proletariado pela abolição da sociedade de classes e de toda a opressão.
T. Morago e Malfainer
[1] Balius, J. (s.d.). Uma Teoria Revolucionária. El Amigo del Pueblo, 5.
[[https://www.grupgerminal.org/?q=system/files/Unateoriarevolucionaria-Balius-julio37.pdf][www.grupgerminal.org]]
[2] [[https://www.regeneracionlibertaria.org/2024/02/26/senda-balance-militante-de-la-experiencia-de-la-federacion-estudiantil-libertaria/][www.regeneracionlibertaria.org]]
(Senda: Balanço Militante da Experiência da Federação Estudantil Libertária)
[3] Para aprofundar o conceito de “balanço”, ver: [[https://serhistorico.net/2023/06/06/la-historia-es-un-campo-de-batalla-mas-de-la-guerra-de-clases-en-curso/][serhistorico.net]]
(A História como um Campo de Batalha na Guerra de Classes em Curso)
[4] Para uma introdução às críticas às abordagens autonomistas e de síntese, ver:
[[https://www.regeneracionlibertaria.org/2024/05/29/poder-popular-y-anarquismo-especifista][www.regeneracionlibertaria.org]]
ou [[https://blackrosefed.org/especifismo-la-praxis-anarquista/][blackrosefed.org]]
Para uma introdução às críticas à conceção insurrecional do anarquismo, ver:
[[https://www.regeneracionlibertaria.org/2014/10/28/las-razones-del-anarquismo-social/][www.regeneracionlibertaria.org]]
ou [[https://www.regeneracionlibertaria.org/2014/06/11/can-vies-poder-popular-o-insurreccionalismo/][www.regeneracionlibertaria.org]]
[5] Documentos estratégicos internos da Federação Anarquista Uruguaia. Disponíveis em:
[[http://federacionanarquistauruguaya.uy/copei-1a-parte-documentos-de-fau-1972/][federacionanarquistauruguaya.uy]]
e [[http://federacionanarquistauruguaya.uy/copei-2a-parte-documentos-de-fau-1972/][federacionanarquistauruguaya.uy]]
A nossa organização irmã na Colômbia, Vía Libre, desenvolve reflexões sobre estes textos em:
[[https://grupovialibre.org/2010/11/02/sesion-no-15-reflexiones-sobre-los-textos-copei-i-y-ii-de-la-federacion-anarquista-uruguaya-fau/][grupovialibre.org]]
[6] [[https://www.regeneracionlibertaria.org/2023/12/05/el-anarquismo-ante-el-nuevo-ciclo-politico][www.regeneracionlibertaria.org]]
(O Anarquismo Frente ao Novo Ciclo Político)
[7] “Por ‘autonomia pela autonomia’ referimo-nos à consagração da liberdade de cada assembleia, núcleo ou sede de um movimento para decidir teoria, estratégia, discurso, posicionamentos, etc.”
Isto foi a norma no ciclo anterior. Opondo-nos a essa autonomia, defendemos a unidade discursiva, tática e estratégica construída através de debate honesto e eficaz:
“[Os efeitos da autonomia pela autonomia] geram uma organização incapaz de cumprir o seu mandato: multiplicar as forças anarquistas que a compõem, fazer com que o todo seja mais do que a soma das partes. Não basta a vontade de ser uma organização geral: são necessários mecanismos para unificar posições, realizar análises adequadas e resolver conflitos.”
— Citações extraídas do Senda, já referido.
[8] Não atribuimos estas renúncias e compromissos nos frentes à autonomia pela autonomia nem à diversidade de agentes presentes nesses espaços, mas sim ao abandono da independência de classe e à ausência de um programa estratégico total e revolucionário — condições que favorecem o surgimento do reformismo.
Como a nossa classe não tinha neste período um referente de vanguarda claro, capaz de contestar e pôr em causa a ideologia hegemónica, as exigências de melhoria das condições de vida assumiram a forma de um pensamento ideológico pequeno-burguês com traços de social-democracia redistributiva, mas que, ao negar a existência do proletariado, não consideramos social-democrata.
[9] Para uma introdução ao conceito de inserção social e outros conceitos-chave da organização anarquista específica, ver:
Conceitos Fundamentais da Organização Anarquista Específica
Original em inglês: [[https://theanarchistlibrary.org/library/tommy-lawson-foundational-concepts-of-the-specific-anarchist-organisation][theanarchistlibrary.org]]
[10] [[https://www.regeneracionlibertaria.org/2024/06/04/el-programatismo-y-el-abolicionismo-en-el-recorrido-de-la-lucha-de-clases/][www.regeneracionlibertaria.org]]
(Programatismo e Abolicionismo no Percurso da Luta de Classes)