#title A luta em Oaxaca: a auto-organização do cotidiano #author Taiguara Belo de Oliveira #LISTtitle luta em Oaxaca: a auto-organização do cotidiano, A #SORTtopics México, Comuna de Oaxaca, movimentos sociais, autogestão, relações de solidariedade #lang pt #pubdate 2019-08-10T22:00:00 #notes Embora o autor do presente trabalho faça em um certo trecho uma citação a um autor do campo autoritário (Lenin), acreditamos que o tema "horizontalidade" e "auto-organização", centrais nesta rica experiência popular, são, por si só, suficientes para que mereça toda a atenção do campo libertário. Que a experiências dos povos de Oaxaca inspire as lutas latino-americanas e o verdadeiro Poder Popular! Resumo O artigo aborda o processo da chamada Comuna de Oaxaca, com destaque às bases organizativas que antecederam e se desenvolveram durante a revolta de 2006. Privilegiando os depoimentos de observadores e participantes, mas cotejando-os com as críticas teóricas e políticas, a análise concebe a experiência como um movimento propositivo que foi capaz de sintetizar na formação da Assembleia Popular dos Povos de Oaxaca as diferentes tradições de luta e resistência locais, através da prática militante cotidiana dos professores ao exercitarem a auto-organização social a partir dos problemas concretos da população do estado. ** Introdução Seguramente, a jornada de lutas que se estendeu de maio a novembro de 2006, no pobre estado do sul do México, representa um dos maiores experimentos antissistêmicos de nossos tempos, seja por conta da disposição demonstrada pelos seus combatentes seja pela radicalidade política e profundeza social que o evento abarcou. Particularmente ao tema que aqui interessa (a auto-organização dos trabalhadores), a Batalha de Oaxaca se apresenta como ponto de reflexão indispensável, uma vez que reavivou no horizonte político das esquerdas uma possibilidade concreta de luta que aponte para a autonomia. Com exemplos e situações práticas, o movimento reabriu caminhos para se pensar o protagonismo da classe trabalhadora em suas lutas contestatórias no capitalismo contemporâneo. Há certo consenso em tratar o conflito por Comuna de Oaxaca, encontrando aí vestígios históricos da Comuna de Paris, de 1871, ou da emergência dos soviets durante a Revolução Russa de 1917. Apesar de analogias históricas deste tipo sempre correrem o risco de incidir em anacronismos, a comparação não nos parece inoportuna na medida em que a revolta, ao menos temporariamente, pôs abaixo as principais estruturas do poder capitalista do estado ao mesmo tempo em que desenvolveu uma espécie de poder paralelo, uma forma política própria e independente que tomou corpo na formação da Assembleia Popular dos Povos de Oaxaca (APPO). Como pretendemos desenvolver nas linhas a seguir, a profundidade e o radicalismo da revolta, entretanto, não devem ser analisados apenas do ponto de vista de suas reivindicações imediatas. Partimos do princípio de que o verdadeiro sentido de uma dada luta está pressuposto na sua própria forma organizativa, ou seja, nas estruturas sociais e políticas que ela carrega dentro de si. Quanto mais coletivos e horizontais forem seus organismos internos de deliberação e ação, maior será seu alcance e significado políticos.[1] E é por estes motivos que a APPO, tendo equacionado estas questões à realidade local, conforme sugerem os relatos em que nos baseamos, se coloca como valioso objeto de reflexão. ** Contexto e antecedentes da revolta de Oaxaca A Comuna de Oaxaca nasce como uma luta pontual encabeçada por professores que exigiam aumento salarial, mas, após uma violenta repressão que os grevistas sofrem da polícia do estado no dia 14 de junho de 2006, se transforma rapidamente numa “revolta social generalizada” (BRANCALEONE, 2008, p. 139), que passa a ter como bandeira a renúncia do governador Ulises Ruiz Ortiz. Embora não seja o foco de análise deste artigo, não se pode, obviamente, entender o episódio sem situá-lo nas circunstâncias objetivas em que ocorreu. Grande parte dos que se debruçam sobre a revolta acredita que ela se insere num quadro de crise do padrão de dominação governamental e, de alguma maneira, responde ao agravamento das condições de vida, ocasionado pelos mais de 20 anos de intensa aplicação da política neoliberal. Conforme Vásquez: La crisis, sin embargo, fue el resultado de múltiples agravios a las organizaciones sociales y a la población que fueron acumulándose. Podemos decir que una crisis como la de Oaxaca no es producto solamente de un acontecimiento, sino de la acumulación de tensiones y contradicciones diversas. (VÁZQUEZ, 2008, p. 45). De acordo com esta leitura, o regime político no México tem sido marcado, entre outras coisas, por um presidencialismo sem alternância e altamente centralista, somado ao corporativismo e a um sistema de partido hegemônico. Em Oaxaca, particularmente, nas palavras de Torres, é mantida ainda uma estrutura de controle de tipo colonial, sustentada por políticos e caciques do Partido Revolucionário Institucional (PRI) [2], que governava o estado há 78 anos: “[...] Es una mezcla de paternalismo populista con una tiranía bárbara [...]”. (TORRES, 2006, p. 235). Em muitas regiões do território oaxaquenho, avalia Vásquez (2008, p. 46), o exercício deste poder autoritário tem se intensificado, apesar de haver um moroso processo de democratização do sistema político oficial. El “gobernadorismo autoritario” es personalista, se centrando en el gobernador; se funda más en el temor que en el consenso; en el ejercicio discrecional de la ley más que en un real Estado de Derecho; en el uso patrimonial del poder y los recursos públicos y no en una concepción republicana en la que éstos son de todos y no del gobernante; prefiere el ocultamiento y manipulación clientelar del ciudadano más que a su participación informada, libre, organizada […]. (VÁZQUEZ, 2008, p. 48). Junto aos casos de perseguição a lideranças sociais, prisões e assassinatos políticos, corrupção, repressão a manifestações, compras e manipulação de votos, etc., é sabido que o México, durante os mais de 20 anos que antecederam a revolta, foi palco de profundas medidas econômicas que afetaram duramente as condições de vida da maioria da população. Em Oaxaca, particularmente, a situação é mais delicada. Situado ao sul do México, o estado - desde há muito, um dos mais pobres do país – possui aproximadamente 3,5 milhões de habitantes, dos quais 32% são indígenas, pertencentes a 16 grupos linguísticos diferentes. (COMISIÓN..., 2010). Embora possua um território muito rico em recursos naturais, foi sempre uma região destinada a ser produtora de matéria-prima, o que, segundo Torres (2006, p. 233), teria sido um dos fatores estruturantes da pobreza e das elevadas taxas de emigração. Estima-se que quase metade da população sobreviva com menos de um salário mínimo por mês; grande parte, portanto, encontra-se entre a pobreza e a extrema pobreza. Pressionadas por estes fatores, ao longo dos anos, milhares de famílias indígenas foram deixando suas localidades originais e buscando meios de vida na capital do estado, a cidade de Oaxaca. Assim, enquanto o centro da capital, com sua arquitetura remanescente da época colonial, é ocupado pelas famílias dos que concentram poder político e econômico na região, nas suas periferias “viven los sirvientes, empleados y albañiles, los choferes, cargadores y meseros, los subempleados, los pobres y los indios urbanos, en su mayoría migrantes o hijos de migrantes indígenas”. (TORRES, 2006, p. 234). Apesar de o setor de turismo constituir hoje o eixo da atividade econômica local e ser, por isso, importante fonte de renda para muitos, a cidade de Oaxaca acaba sendo muito dependente das remessas de dinheiro enviadas por trabalhadores que migraram para o norte do país ou para os EUA, posto que a maior parte da riqueza gerada localmente fica retida nas mãos dos grupos de proprietários de hotéis, restaurantes, empresas de serviços turísticos e proprietários imobiliários. Para Galvão (2008, p. 11), a experiência oaxaquenha, na linha do que acontece com outros movimentos sociais da América Latina, teria surgido como resposta ao desemprego, à precarização e à pobreza; indicadores agravados pela onda neoliberal. Paralelamente, nestes últimos 30 anos, surgem no estado de Oaxaca importantes movimentos sociais de luta pela terra, de enfrentamento a lideranças locais, de reivindicações étnicas e outros embates que implicam resistência à violência estatal. No caso das populações indígenas oaxaquenha, suas lutas têm se desenvolvido, em grande parte, pela conservação de suas terras e seus modos de organização baseados em seus “usos y costumbres” (GOGOL, 2006, s/p), daí que, em certos aspectos, apontam para o surgimento de autoridades territoriais paralelas ao Estado. Estas tensões em Oaxaca viriam a se acirrar ainda mais em 2004, ano em que Ulises Ruiz Ortiz, habilidoso político do PRI, assume o governo de estado após um processo eleitoral bastante disputado. Assim que assumiu o poder, Ruiz recrudesceu o estilo repressor de governar de seu partido. Para se ter um ideia, basta mencionar que, com apenas 18 meses de mandato, o novo governador já colecionava mais de 600 prisões políticas e 35 mortes por conflitos políticos e agrários. (p. 237). Eis que, em 22 de maio de 2006, os professores da Seção 22 do Sindicato Nacional dos Trabalhadores da Educação (SNTE) entram em greve e montam acampamento no centro da capital. A ação fazia parte de uma campanha salarial cuja negociação havia sido interrompida dias antes, o que, como é de se supor, acontecia invariavelmente todos os anos no estado de Oaxaca. Nos primeiros dias de junho, os grevistas ocupam as principais vias de acesso ao aeroporto da cidade e ampliam a força e a adesão ao movimento. Em resposta, o governador mobilizou a polícia do estado para dispersar os professores do centro da cidade. Depois de muitas horas de confronto que deixou centenas de feridos, professores e apoiadores conseguiram se entrincheirar novamente na praça central da cidade e começam a organizar seus próprios agrupamentos de defesa. A ação violenta de Ruiz, porém, despertou o apoio da população local e de outras centenas de organizações do estado ao movimento, o que resultou na secundarização da questão salarial e no surgimento da Assembleia Popular dos Povos de Oaxaca (APPO). A fundação deste “movimento de movimentos”, entre os dias 17 e 20 de junho, contou com a participação de aproximadamente 365 entidades sociais, oriundas dos mais variados campos de atuação: sindical, estudantil, indígena, ambiental, de direitos humanos, ONGs, associações de moradores, coletivos feministas, culturais e outros, e seria apenas o início de uma longa batalha que, em seu auge, chegaria a mobilizar centenas de milhares de pessoas em todo o México e se alongaria até os primeiros dias de dezembro. ** Origens e originalidade da luta de Oaxaca Consideradas as circunstâncias em que transcorreu, o episódio de repressão de 14 de junho, segundo a opinião da quase totalidade dos autores, teria servido apenas como um fator catalisador da crise política que se vivia em Oaxaca - algo mais do que conjuntural, mas uma efetiva crise de regime. Entretanto, sem ignorar esta dimensão, propomos conceber o processo a partir de outra ótica, que não relegue a seus principais agentes um comportamento meramente reativo. Apesar de estar indiscutivelmente na base dos acontecimentos e figurar, por isso, como terreno condicionante da revolta, o quadro de opressão e precarização das condições de vida não nos parece ser o elemento distintivo a ser destacado, uma vez que situações semelhantes se verificam em diversos outros contextos específicos da América Latina e do mundo. Ao se afirmar a falência da forma arcaica de dominação, é preciso ter em conta que este sistema não ruiu por si só. Assim, segundo nossas hipóteses, o trabalho de base que precede a constituição da APPO foi o componente determinante para que a revolta atingisse a radicalidade e a extensão que atingiu. Ademais, devemos nos atentar para outro dado relevante: os insurgentes não se limitaram a contrapor as ações estatais e as mazelas econômicas, mas criaram e puseram em funcionamento uma verdadeira experiência política alternativa, o que confere ao caso um caráter indiscutivelmente propositivo. Portanto, a causa da disposição para a luta manifestada pela população oaxaquenha deve ser procurada no processo que decorria por trás e simultaneamente às mazelas visíveis, ou seja, na longa e diuturna atuação das organizações populares, especialmente a dos professores da Seção 22 do SNTE. *** O movimento de Oaxaca se destaca não por ter trazido alguma novidade especial quanto às formas de luta, mas por ter produzido uma síntese de diversas experiências de resistência que estão dispersas (ou mais ou menos combinadas) pelos distintos movimentos sociais da América Latina e do mundo, e por ter levado esta convergência de fatores até as suas últimas consequências. Logo após o episódio de 14 de junho, os professores puseram-se a chamar uma organização popular por reivindicações mais amplas, e não somente pontuais. Os protestos passam a ser convocados sob o mote da luta contra a exploração, a pobreza e as injustiças. “Así es como las diversas organizaciones se juntan: unas que ya existían, otras que estaban en formación y acaban de surgir en esta coyuntura (…)” - conta a professora Guadalupe, que participou das mobilizações. (REJAS, 2007, p. 38) Já na primeira convocatória feita pelos professores, agregam-se o sindicato universitário independente, as organizações camponesas, indígenas, algumas ONGs, padres progressistas e grupos mais tradicionais de extrema-esquerda, como a Frente Popular Revolucionária (FPR). Posteriormente, o movimento saberia acolher ainda outras formas organizativas, como associações de bairros pobres e moradores de periferia, coletivos juvenis libertários e as barricadas. A junção dessa multiplicidade de forças políticas, em muitos casos divergentes quanto à tática e à estratégia de luta, poderia ter resultado em algo completamente explosivo, mas acabou dando ensejo à construção de uma espécie de Comuna que, pautada em métodos radicais de democracia direta, suplantou as principais instituições oficiais do estado durante pelo menos três meses, governando-o em seu lugar. Para autores como Dantas (2009, p. 30), a unidade forjada só fora possível a partir da escolha de um lema político que permitiu abarcar todas as organizações. “Às demandas originais do magistério, a nova plataforma incorpora outra, neste caso de tipo político: a renúncia do governador do estado.” Porém, quando se analisa mais a fundo alguns pontos das resoluções da primeira Assembleia Estadual dos Povos de Oaxaca,[3] vê-se que as linhas programáticas da APPO eram bastante ambíguas, ao combinarem, por exemplo, estratégias de conquista paulatina de espaços de autonomia (refletindo a influência zapatista da “Otra Campaña”) com projetos de economia planificada e nacionalização de empresas (refletindo o programa de partidos e grupos de orientação marxista tradicional ou nacional-desenvolvimentista). (BRANCALEONE, 2009, p. 145146) Se, sob alguns aspectos, as palavras de ordem da APPO anunciavam propósitos de ruptura radical, sob outros, previa a disposição de se negociar com a ordem estabelecida, fundamentando-se muitas vezes em marcos jurídicos constitucionais. Do ponto de vista ideológico, ou mesmo o das reivindicações, portanto, é muito difícil afirmar a existência de unidade, e tampouco compreender o porquê de a experiência ter sido tão radical. A exigência da saída de Ulises, embora fosse um símbolo de elevada importância, figurava como unidade apenas aparente, superficial, ou seja, um ponto em comum em meio a um mar de divergências programáticas, incapaz de dar sustento a longa e intensa jornada de lutas que se travou. A palavra de ordem “Fora Ulises”, desse modo, foi muito mais a expressão geral do grau de coesão a que se chegara no plano organizativo do que o fator de unidade enquanto tal. Como ilustram os registros, o fator unitário conseguido em Oaxaca deve ser buscado na prática, onde havia uma preocupação dominante de impulsionar as mudanças a partir de um movimento de base. “A sua originalidade residiria em sua dimensão fundamentalmente pedagógica, anunciando através de novas práticas políticas, articuladas com certas tradições populares, o germe de outras relações de poder[4]”. Nesse sentido, notamos que um dos feitos mais marcantes dos protagonistas da Comuna de Oaxaca foi não ter deixado que os diversos discursos, bandeiras e posições ideológicas se sobressaíssem à necessidade da ação. Não se trata de dizer que estas tensões práticas não existiram (e disso falaremos mais adiante), mas simplesmente que não conseguiram paralisar a construção inicial de um poder popular. Segundo o relato da professora Guadalupe (REJAS, 2007, p. 38-39), apesar de as primeiras reuniões terem sido bem difíceis, o formato de assembleia foi, aos poucos, contornando a desconfiança e as diferenças entre as organizações. A respeito do caráter igualitário e assembleístico que a APPO foi assumindo, observamos que, grosso modo, as apreciações oscilam em derivar sua origem ora do comunitarismo ancestral dos indígenas ora das formas clássicas de luta do operariado industrial. Entendemos que, qualquer que seja a interpretação, se não for devidamente ponderada, tende a incorrer em idealizações. Em um dos pólos, temos a posição de Martín Juarez (apud DANTAS, 2009, p. 51), por exemplo, quando afirma que o movimento oaxaquenho “retomou, na prática, as melhores experiências do movimento operário de massas do continente nos últimos anos”; em outro, a opinião de Gogol (2006, s/p), para quem a raiz da APPO haveria sido a tradição assembleística indígena preenchida de um novo conteúdo. No primeiro caso, a autor, no afã de conceber o fenômeno à luz dos esquemas consagrados do marxismo ortodoxo, ignora o fato de, em Oaxaca, praticamente a totalidade dos trabalhadores assalariados atuarem no setor de serviços. Em contrapartida, o segundo negligencia o fato de o movimento ter sido iniciado por uma entidade sindical e ter se organizado, em diversos momentos, em torno de formas de lutas que nada têm a ver com a ancestralidade indígena, tais como greve, piquetes, barricadas, além do habilidoso uso de meios de comunicação modernos. Primeiramente, é preciso reconhecer que o México, nos últimos anos, tem vivido uma espécie de “assembleização do mundo popular” (BRANCALEONE, 2007, p. 141). Desde 1994, pelo menos, com a ascensão do zapatismo, cresceu o número de organizações indígenas que promovem uma cultura associativa, baseada nas tradições da vida comunal, e estimulam a criação de assembleias populares locais. O terreno social de Oaxaca, como tem insistido Navarro (2006a; 2007), vem sendo estruturado em núcleos associativos etnopolíticos, comunitários, agrários, de produtores, sindicais, ambientais e de imigrantes. Para ele, as centenas de organizações existentes no estado não são produtos de iniciativas partidárias, mas fruto de uma auto-organização que responde a dinâmicas e conflitos particulares. Em muitas comunidades do estado, verifica-se que a realização de assembleias populares é uma prática já tradicional e que, nalguns casos, são elas que nomeiam as autoridades locais, decidem os rumos da luta e outras questões. Mesmo assim, não nos parece correto concluir que os princípios organizativos do movimento derivem automaticamente do modo de vida comunitário dos indígenas locais. De acordo com a professora Guadalupe, é verdade que a especificidade cultural indígena aparecia, por exemplo, na parte cerimonial da APPO: “Las asambleas se inician con un ritual en que se pide permiso a todas las fuerzas del universo para iniciar el encuentro de ideas, donde se van a discutir alternativas para resolver problemas” (REJAS, 2007, p. 40) Mas, ainda segundo ela, não se pode afirmar categoricamente o caráter comunitarista indígena da Comuna, visto que, em muitos “pueblos” de Oaxaca onde há assembleias, por exemplo, as mulheres são impedidas de tomarem parte nas decisões e não têm direito de assumirem cargos - o que não ocorria na APPO. Igualmente, convém observar que, apesar de as múltiplas comunidades indígenas do estado manterem em seu interior fortes laços organizativos, esses laços não se encontram na mesma proporção nas relações que elas estabelecem entre si. Ou seja, há, entre algumas das comunidades, antigas rivalidades agrárias – estimuladas historicamente, é verdade, como técnica política da colonização. (MARTÍNEZ, 2006) As inúmeras leituras político-ideológicas possíveis, bem como as variadas formas de luta utilizadas, demonstram que a revolta de Oaxaca não foi extensão ou reedição de uma ou outra tradição específica de luta, senão um experimento original que conseguiu articular tipos de ação coletiva oriundas de uma base social bastante ampla. Sindicatos e partidos, organizações indígenas e comunitárias, movimentos rurais e urbanos, jovens e velhos, homens e mulheres convergiram esforços para forjarem uma ação política comum. ** A síntese viva Se é verdade que a persistente batalha dos oaxaquenhos não se assentou meramente sobre enunciados ideológicos, mas sobre princípios práticos compartilhados pela maioria das organizações, a chave para seu entendimento só pode ser encontrada nos laços de solidariedade que foram sendo tecidos subterraneamente ao longo do tempo, muito antes da deflagração da revolta. Foram vários setores da população que não se limitaram a ser a favor do movimento, mas puseram-se a combater como parte dele. E este é o elemento que, para nós, deve ser apontado como singular nesta experiência. O acontecimento extraordinário está no fato de a luta do professorado, no momento em que é atacada pelas forças policiais do estado, logo ter encontrado ressonância em grande parte da sociedade oaxaquenha. E sobre isto a quase totalidade dos textos que abordam o tema não deixa de realçar o papel central que tiveram os professores da Seção 22 no dia a dia da população. A Seção 22 do SNTE é atualmente uma dissidência interna da estrutura sindical mexicana, toda ela profundamente ligada ao PRI. Navarro (2006a, p. 72) lembra que, desde o 1º de Maio de 1980, a entidade procura se afastar do chamado charrismo[5] sindical, realizando um movimento de depuração. A partir de então, deu-se início a um processo que visava romper com as lideranças sindicais atreladas ao governo e com as práticas corruptas e centralistas da entidade. Durante vários momentos desse trajeto, as bases do movimento magisterial estadual impulsionaram mobilizações reivindicatórias combativas, em cujas pautas sempre estiveram presentes não somente temas salariais, mas questões que diziam respeito diretamente às comunidades em que atuavam, como café da manha, sapatos e vestuário adequados para os alunos. (TORRES, 2006; REJAS, 2007) Com cerca de 70 mil filiados, o SNTE tem atuação em todas as cidades do estado de Oaxaca, sendo, portanto, a única entidade capaz de apreender e transmitir anseios e insatisfações das camadas populares. (BRANCALEONE, 2008, p. 140) Por isso, em diversos textos o sindicato é tido como a “espinha dorsal” do movimento. E aí reside um grande diferencial: sem se limitar a enxergar aquilo que acontece nas quatro paredes da sala de aula, os professores puderam se misturar a outras bandeiras de luta, como as das organizações camponesas, indígenas e dos bairros pobres, o que lhes foi conferindo conhecimento do terreno e capilaridade social. Ao se ligar “aos pais de famílias e às suas lutas” (NAVARRO, 2007, p. 33), a prática militante da Seção 22 conseguiu extravasar as barreiras corporativistas que caracterizam a ação sindical dos dias de hoje. A origem social dos professores talvez ajude a elucidar as razões deste profundo relacionamento, conforme explica a professora Guadalupe (REJAS, 2007, p. 37): “Casi todos los maestros son de origen campesina e indígena. Son pobres de origen y la condición de maestro les proporciona mejores oportunidades. Casi todos los que están en las comunidades más alejadas son de esas mismas comunidades.” Segundo a professora, pela própria natureza de seu ofício, ela e seus colegas têm oportunidade de lidar diretamente com os problemas da população, tematizar cotidianamente o porquê de, ano após ano, eles terem de se organizar para exigir melhores salários, utensílios escolares, materiais didáticos e outras estruturas - o que ela entende ser um papel de politização que os moradores jamais teriam por outros meios. Na opinião de Navarro (2006, p. 72), também o fato de dominarem o espanhol e conhecerem os trâmites e procedimentos legais das instituições os torna agentes imprescindíveis para qualquer ação política com as comunidades.[6] Na vivência diária de seus trabalhos, a maioria dos professores de Oaxaca experimenta as mesmas dificuldades por que passam os alunos e as suas famílias. De acordo com Sanzon Jiménez Dominguez, locutor e coordenador da Rádio Plantón, um órgão do sindicato: As condições para lecionar não são nada favoráveis. Nas escolas, o professor não pode fazer bem o seu trabalho, pois não possuímos um bom espaço, material didático e uma equipe adequada. Aqui em Oaxaca, ainda há escolas sem luz, sem infra-estrutura. Faz-se de uma casa uma sala de aula. Não existem condições e isso debilita muito, atrasando o aspecto educativo. Existe crianças que caminham duas ou três horas para poder chegar à escola, chegam sem o café da manhã. Apenas trazem uma tortilha com pimenta seca, e esta é toda a sua comida. (FELDMANN & SANCHEZ, 2009, p. 05). Portanto, sendo um componente indissociável da realidade em que atuam, muitos professores foram responsáveis diretos pela formação de pequenas organizações independentes, vinculadas às questões locais. (MARTÍNEZ, 2006). Por conta disso, em muitas regiões de Oaxaca já há tempos vem sendo promovida a prática da democracia direta, pequenos núcleos associativos que transformam a indignação cotidiana naquilo que se convencionou chamar de poder popular. Conforme atesta a professora Guadalupe, ao comentar a importância dos embates que os professores travavam para se desvencilhar do charrismo do SNTE: Los plantones y las marchas fueron recurrentes hasta lograr salirse del control del SNTE. Es decir, las mismas prácticas de hoy. La asamblea, tan popular como la que ahora revive la APPO, fue parte de las formas de organización y toma de decisiones del movimiento, donde había delegados por regiones y representantes que tomaban las decisiones sólo después de haber consultado a las bases. (REJAS, 2007, p. 38). Em suma, somos levados a crer que muito tempo antes do 14 de junho de 2006, vem sendo traçada uma rede de solidariedade que conseguiu penetrar os problemas concretos vividos pela população de Oaxaca. Subjacente à dimensão visível e oficial da vida política do estado, parece ter se desenvolvido uma dinâmica política paralela, ou melhor, subterrânea, organicamente moldada conforme a heterogeneidade que caracteriza a baixa sociedade oaxaquenha. Organicamente, porque não se tratou apenas de uma combinação ideológica, baseada num amontoado de enunciados subscrito por diversas organizações, mas de algo concreto, encarnado na figura dos professores da Seção 22. Enraizada em problemas palpáveis das comunidades, a atividade diária destes professores constituiu a síntese viva de todas estas tradições de luta, o que, segundo a nossa leitura, foi o fator determinante para que essa experiência chegasse aonde chegou. ** Amores de barricadas: a dissolução da esfera política Como foi mencionado na introdução deste artigo, apesar de os objetivos expressos da mobilização, em seu primeiro momento, estarem circunscritos à lógica dominante, a avaliação do processo a partir dos aspectos práticos que envolveram a constituição da APPO (no que incluímos os anos anteriores à sua formação) autoriza-nos a afirmar que os trabalhadores oaxaquenhos puderam desenvolver uma luta que apontava - ao menos tendencialmente - para a superação do capitalismo e de suas correspondentes formas políticas e sociais. Tendo suspendido a vigência das instituições governamentais e negado, em seus vários momentos, as vias políticas oficiais criadas para as resoluções de conflito, a revolta se apresentou, a um só tempo, como efeito e causa geradora de uma nova realidade. Em outras palavras, isso significa sustentar que, enquanto a luta decorria, eram instituídas novas relações sociais, baseadas em princípios igualitários e coletivistas que, por sua própria forma de ser, opunham-se frontalmente à hierarquia de tipo capitalista. Sob esta perspectiva, não seria exagerado dizer que a Comuna de Oaxaca chegou a atualizar com exemplos práticos a noção de comunismo, conforme a acepção de Bernardo: O comunismo resulta da afirmação presente, e repetida ano após ano ao longo de renovadas lutas coletivas e ativas, as quais implicam sempre relações sociais novas, opostas ao capitalismo, alternativas ao capitalismo. Não é uma utopia, mas algo que, nas suas formas embrionárias e gestacionais, tem uma existência comprovada. (BERNARDO, 2009, p. 425). As condições para o surgimento e consolidação de novas relações sociais parecem ter se manifestado, particularmente, a partir de três táticas de ação adotadas pelo movimento: a própria constituição da APPO, a tomada dos meios de comunicação e as barricadas e corpos autônomos de autodefesa. Nestes novos espaços de sociabilidade instaurados pelas lutas dos oprimidos oaxaquenhos, verificou-se uma propensão a se desenvolver o domínio da coletividade sobre o conjunto da vida social. Quanto à constituição da APPO, cabe ressaltar a enorme penetração e legitimidade social que este organismo, originalmente criado para coordenar as ações políticas, conseguiu ter nos bairros, povoados e municípios distantes da capital. Miguel Linares, professor integrante do movimento, assim se refere à organização da APPO: En torno a esto se empezaron a crear comisiones internas, como las de prensa, barricadas y propaganda. Comenzamos a conformar toda una red em Oaxaca de organizaciones, y cualquier acción que quisiéramos realizar debía pasar por una consulta de las bases, tanto de los maestros como de la propia APPO. Este es el mecanismo que funciona, y siempre hay reuniones con todas las organizaciones y con los delegados de las colonias y de las barricadas. (OUVIÑA, 2006, s/p). Seu predominante caráter aberto e coletivista fica evidente quando notamos que para a sua apreciação chegavam não apenas problemas concernentes à luta propriamente dita, mas também demandas e conflitos da vida cotidiana: questões de transporte, segurança interna e externa e até conflitos intrafamiliares. (DANTAS, 2009, p. 33) A adesão à nova forma política inaugurada foi tamanha que, inspiradas pelo funcionamento da instituição pilar do movimento, várias comunidades afastadas da cidade de Oaxaca, durante todo o período de mobilização, organizaram-se em torno de APPOs locais, expandindo para algumas regiões do estado, e reforçando em outras, os métodos igualitários e assembleísticos de tomada de decisão. (GOGOL, 2006, p. 6) [7] Ao afirmarmos que os combatentes estiveram próximos de assumir completamente o poder político no território oaxaquenho, a rigor, estamos querendo expressar o fato de terem eles dado início a um processo de dissolução da esfera política. A política, que fique claro, entendida enquanto instituição apartada da sociedade e, por isso, espaço exclusivo, desaparece quando o conjunto da vida social passa a ser gerido pela generalidade das pessoas, e não por intermediários e profissionais da matéria. Nesse sentido, e guardadas as devidas proporções, parece-nos razoável observar que, por um período relativamente longo, a instauração da APPO pôs em prática aquilo que muitos marxistas normalmente entenderiam por definhamento do Estado.[8] A onda de ocupações de rádios é também componente bastante expressivo da profundidade social que assumiram os protestos. Tem sido uma característica dos movimentos sociais mais recentes atribuírem um papel destacado à questão dos meios de comunicação no processo de luta e, particularmente no México, a exemplo dos zapatistas, essa atenção dispensada já não era algo exatamente inovador. Contudo, a centralidade que esta forma de atuação tomou em Oaxaca foi altamente potencializada, possibilitando consolidar - numa escala massiva - uma base de comunicação direta e horizontal, sem intermediação das autoridades, que rapidamente entrou em sinergia com outras táticas de luta. Desde um ano antes da revolta, a Seção 22 mantinha em funcionamento a Radio Plantón, que nasceu com a finalidade de cobrir as jornadas de luta do professorado. Sanzon Jiménez Dominguez, coordenador do projeto, conta que já no dia 14 de Junho de 2006. As instalações da rádio foram atacadas com bombas de gás lacrimogênio, detiveram nossos equipamentos, o transmissor e os computadores [...] Mas os participantes que estavam colaborando de maneira solidária aprenderam a usar o equipamento, depois ocuparam a Rádio Universidade e proporcionaram a cobertura dos fatos. (FELDMANN & SANCHEZ, 2009, p. 6). Ocorreu que, no mesmo dia em que se interditava a Radio Plantón, outros combatentes se incorporariam à iniciativa e, junto a um grupo de estudantes, ocupariam a rádio da Universidad Autonoma Benito Juárez, que passou a ser chamada de Rádio APPO. Guadalupe narra que, tão logo a Radio Universidad foi tomada pelos estudantes, dezenas de pessoas oriundas dos bairros, e mesmo de comunidades distantes, começaram a chegar ao espaço, “todo el mundo quería hablar”. (REJAS, 2007, p. 40) Em 2 de Novembro, a Polícia Federal Preventiva (PFP) tenta invadir a cidade universitária para encerrar as transmissões da Radio APPO, a essa altura considerada um bastião central da Comuna. No entanto, frente a uma ampla rede de apoio com os ocupantes, as forças do Estado foram obrigadas a bater em retirada: A Rádio APPO manteve todo mundo informado sobre o rumo dos acontecimentos, num trabalho de coordenação que permitiu não só orientar os combatentes do povo, mas também articular um apoio nacional e internacional que colocou Oaxaca na pauta mundial [...] Vizinhos e mais vizinhos traziam vinagre para combater o efeito dos gases, e jogavam gasolina e excrementos sobre os carros de combate. Traziam lanternas e alimentos, informavam sobre os movimentos da PFP e dos outros participantes na operação, erguiam barricadas com o refugo local… (CECEÑA, 2006, s/p). Outro grande passo havia sido dado no dia 1º de agosto, quando um grupo de mulheres, por extensão de uma marcha que realizavam na cidade, encabeçou a tomada das principais instalações da Corporação Oaxaquenha de Rádio e Televisão (CORTV), veículo de comunicação do estado de Oaxaca. Geridas coletivamente por mulheres que nunca haviam tido a possibilidade publicizar suas histórias, durante cerca de três semanas, até que as antenas de transmissão fossem atacadas à bala pela polícia, estiveram no ar a Radio Cacerola e a TV APPO: [...] as pessoas levam vídeos para serem transmitidos. São imagens do ataque de 14 de junho, entrevistas em hospitais com professores feridos na ocasião, imagens das marchas, comícios, encontros. Material gravado e nunca mostrado em nenhum canal. (TERRIBAS, 2009, s/p). Juárez acrescenta que, logo após a ocupação, “alguns trabalhadores do Canal 9 (CORTV) simpatizaram com o movimento, oferecendo assessoria na parte técnica, pois existia a necessidade de informar as pessoas o momento em que se convocariam as próximas marchas” (FELDMANN & SANCHEZ, 2009, p. 7). Posteriormente, a onda de ocupações de rádios acabou se generalizando em meio à batalha, o que resultou na tomada de mais outras 12, públicas e privadas, com o que o movimento teve possibilidade de atingir cerca de 70% do território do estado. Assim, as rádios foram servindo não somente como instrumento de denúncia, mas, sobretudo, como polo aglutinador, suporte para o surgimento de novas relações sociais e redes de contato. Torres (2006, p. 240) salienta que as rádios ocupadas, além de dinamizarem a comunicação com as massas de Oaxaca, tiveram um papel fundamental na articulação entre as barricadas, fazendo com que a solidariedade entre os insurgentes fosse crescendo, como demonstraram os ágeis deslocamentos de grupos de apoio para defender barricadas atacadas por paramilitares e priistas. A formação de barricadas e corpos autônomos de segurança foi igualmente outra tática usada que exerceu um papel fundamental no prosseguimento da luta oaxaquenha. Estes agrupamentos começam a se multiplicar no início de agosto, quando grupos paramilitares iniciam suas incursões noturnas por conta da insuficiência das forças policiais oficiais. Assim o professor Miguel Linares recorda o acontecimento: “Las barricadas surgen ahí, cuando comenzamos a ser agredidos por grupos paramilitares. Se empezaran a formar entonces las autodefensas, para no permitir que anduvieran circulando libremente por Oaxaca.” (OUVIÑA, 2006, s/p) Além disso, quanto mais se intensificavam as operações de rua (bloqueios de entradas de hotéis luxuosos, aeroporto, avenidas, entradas de edifícios públicos e até o Congresso do estado) e, principalmente, as tomadas de rádios, tanto mais necessárias se tornavam as medidas de autodefesa. “Se crearon en todo Oaxaca cientos de barricadas. Incluso antes de que incursionara la Policía Federal Preventiva con los militares, llegaron a haber más de 1600 barricadas.” (Id., ibid., s/p). Acerca disto, há leituras que destacam a importância das barricadas somente sob a ótica do enfrentamento físico-militar - o que é um aspecto inerente ao processo, porém, a nosso ver, não pode ser tomado como fonte do “poder alternativo”.[9] Nesse sentido, concordamos com Gogol (2006, s/p), para quem as barricadas, mais do que artifício de defesa, serviram como base para a aprendizagem política e surgimento de uma nova sociabilidade entre vizinhos: Los vecinos salían por la noche para levantarlas y ocuparlas, y de ese modo comenzaban a hablar unos con otros de un modo inusual hasta ese entonces: debatían las cuestiones de la reforma radical, cómo transformar el estado, pero más allá de las reformas: ¿Qué significaba no solamente transforma las instituciones sino salir a la calle? (GOGOL, 2006, s/p). Em entrevista, Marco Antonio, marido de uma professora da Seção 22, relatou que, internamente à barricada de que participou, havia uma grande preocupação em minimizar os aspectos hierárquicos: “As pessoas tinham isto muito presente, não podiam dizer algo em nome das barricadas, a direção não podia tomar decisões sem antes falar com as pessoas. Sabemos que os líderes se vendem, então preferimos as bases, creio que isto foi o mais marcante.” Segundo o professor, nas tomadas de decisão “todos podiam opinar e ser levados em conta [...] todos tínhamos que sentar no piso, tomar café juntos”. Em cada barricada - ele narra - havia ainda a divisão de grupos para a execução de tarefas como a de preparar os alimentos, realizar a limpeza e traçar estratégias de defesa. (CARRANO, 2006, s/p) Nas barricadas, nos fóruns, nos plantões e nas longuíssimas reuniões, as pessoas traziam o que podiam: bananas, tortillas, panelas de arroz, alguns refogados, etc. De acordo com a professora Guadalupe: “Esto es lo que explica cómo pudo sostenerse el movimiento durante todo este tiempo. No hay ningún oscuro financiamiento, ni ningún partido: Es simplemente la gente”. (REJAS, 2007, p. 40). Esteva (2009) conta-se entre aqueles que perceberam a dimensão social que se criava no âmbito de uma barricada: Había aspectos espléndidos en esas noches de barricada: el diálogo inusitado entre jóvenes y viejos descubriéndose unos a otros, acaso por la primera vez, admirándose y respetándose en su mutua sabiduría; o el “Amor de barricada”, como se llamó un gustado programa de Radio Plantón… Pero eran noches terribles, a la expectativa, preparándose para la autodefensa: acumulando piedras o algunas bombas molotov; entrenándose en el uso efectivo de las resorteras; concibiendo planes de ataque o huída… (ESTEVA, 2009, p. 12). O entrosamento criado entre a tomada dos meios de comunicação e a formação dos grupos de autodefesa, como atestam alguns autores (TORRES, 2006, p. 238; MARTÍNEZ, 2006, s/p) chegaria, ainda, a dar vazão ao desenvolvimento, embora embrionário, de uma produção cultural de protesto autêntica e heterogênea – composta por poemas, grafites, performances, músicas com elementos indígenas misturados ao hip-hop, etc. - e que pode até hoje ser comprovada pela cidade. Estes casos bem ilustram de que forma e em que grau os preceitos organizativos da luta começavam a se converter em relações sociais mais gerais e cotidianas, dando ensejo ao desenvolvimento uma identidade de classe a partir da sua própria atividade política. Talvez isso explique o fato de a mobilização não ter sido vencida pela apatia, e seus métodos de funcionamento terem sido considerados tão perigosos a ponto de o governo do estado ter dado prioridade ao uso das forças policiais (oficiais e extra-oficiais) para atacar estas iniciativas: a APPO, as rádios ocupadas e as barricadas foram, durante meses, os agentes de dissolução da autoridade estatal. ** Declínio do movimento e considerações finais E, no entanto, a Comuna foi derrotada. Final de outubro e início de novembro marca o momento de debelação da revolta; e Ulises Ruiz, como se sabe, seguiu governando até o último dia de seu mandato. Não podemos deixar de registrar que, em Oaxaca, a repressão existiu. Para autores como Vásquez (2008, p. 55-57), as autoridades mexicanas puseram em prática uma ação repressiva a qual ele não hesitou em classificar de “terrorismo de Estado”. Um balanço da Comisión Nacional de Derechos Humanos, feito em 18 de Dezembro daquele ano, calculava a existência de 349 pessoas detidas ilegalmente, 20 mortos, 370 feridos, 25 casos de desaparição e 9 torturas. Mas, coerentemente com nosso ponto de vista, o importante é avaliar de que modo aconteceu essa suposta derrota e identificar se as relações sociais gestadas antes e durante o auge da batalha foram de alguma maneira preservadas, acumulando força para embates futuros. Se à ascensão da luta corresponde o fortalecimento de laços de solidariedade, ao seu declínio, por consequência, corresponde a fragilização destes laços e a reestruturação dos mecanismos de controle capitalista. Assim, ao lado das operações repressivas por parte do Estado e grupos paramilitares, devemos incluir os limites e as contradições internas que contribuíram para o declínio do movimento. A esse respeito, é preciso ter em conta que toda luta antissistêmica não pode triunfar definitivamente desenvolvendo-se apenas em um ponto específico e isolado. Nesse sentido, a Comuna de Oaxaca alcançou o estágio mais elevado que era possível alcançar dentro de seu próprio contexto. A solidariedade que os veículos alternativos de comunicação conseguiram ativar pelo mundo e pelo restante do país[10], além de chegarem tarde, não foram o suficiente para refrear a onda repressiva. Não havendo tempo nem condições objetivas para se expandir social e territorialmente, cresceram as dificuldades de se contornar as tensões internas e impor um ritmo unitário de ação; algo que, segundo alguns autores, ficou exposto na marcha de 25 de novembro, a “Batalha de Todos os Santos”. “Después de los ataques de fines de Octubre muchos sabíamos que seríamos reprimidos y previmos que la movilización del 25 de Noviembre era el momento elegido para dar el golpe final y no pudimos hacer nada para evitarlo”. Segundo a avaliação de Torres (2011, s/p), a decisão de cercar a polícia federal, tomada por coletivos de jovens e alguns conselheiros da APPO, acabou sendo impositiva sobre os demais combatentes que optavam seguir de maneira pacífica, e contraproducente, ao dar aparências de legitimidade à ação repressiva. Também para Esteva (2009), a batalha do dia 25 de novembro deixou entrever uma “mudança de olhar”. Neste dia, manifestou-se com maior força aquela tendência interna que pensava o Estado como agente principal da transformação social e, por isso, objeto privilegiado da ação política. Enquanto para os lutadores ordinários, Ulises era apenas o símbolo dos anos e anos de opressão, na Coordinadora Provisional e no Conselho Estatal da APPO predominava a visão da tomada de poder, fazendo surgir uma disputa quanto à forma de dar um desfecho à mobilização. Aparecia, assim, uma tensão entre a “APPO real” (vivida nos bairros e comunidades) e os órgãos de coordenação, que procuravam restaurar as formas organizativas piramidais. Apesar de reconhecer que estes aparelhos de coordenação nunca chegaram a dispor de plenos poderes, Esteva entende que a APPO comportou desde seu início elementos cujo sentido de ação era o de restabelecer a realidade social anterior, favorecendo a repressão e a assimilação do movimento pela política mexicana oficial. E a isso o governo mexicano e classes dominantes, durante todo o conflito, não assistiram de braços cruzados, estimulando fissuras a partir das várias comissões de diálogo que se iniciaram em agosto ou quando Ulises Ruiz, Flavio Sosa, coordenador da APPO, e Enrique Pacheco, dirigente do SNTE, apareceram na TV, em 19 de outubro, para pedir o retorno às aulas, gerando o incômodo nas bases. Na marcha do dia 25 de novembro o conjunto das contradições internas se avolumou e eclodiu, expondo às autoridades o antagonismo entre diferentes concepções de luta que estavam em jogo. “Este no es un movimiento de líderes, sino de base” - dizia repetidamente um membro da APPO que procurava, sem êxito, dissuadir a parte que se lançava ao enfrentamento direto. O evento fez intensificar a repressão e resultou na prisão de mais 152 pessoas (VÁSQUEZ, 2008, p. 57-58); internamente, levou as pessoas à “frustração” e à “paralisia”, atingindo em cheio a evolução da revolta. (ESTEVA, 2009). No ano seguinte, por várias vezes, o movimento voltou a sair às ruas e chegou a fazer protestos significativos sob a bandeira da libertação de seus presos políticos. Mas, para todos os autores que fizeram o balanço, já não trazia mais a força e unidade para retomar a via da insurreição. Em outras palavras, entendemos que a APPO, enquanto viveu a sua fase de ascensão, comportou diversas tendências ideológicas sem deixar que atrapalhassem a unidade de ação. A partir do momento em que se deparou com obstáculos objetivamente colocados à sua expansão, e pressionado por fatores externos sem poder isoladamente superá-los, o movimento passou a manifestá-los enquanto dilemas práticos, dando início a uma fase de dispersão. Conforme nos descreve Torres (2011, s/p), acontece hoje em Oaxaca uma espécie de decantação política, em que alguns elementos da luta deslocam-se para as instituições de poder, com a esperança de, por dentro da legalidade, poderem modificar a realidade, enquanto outros persistem em “nuevas iniciativas para democratizar desde abajo y la izquierda”. Há ainda quem se apresenta como integrante da APPO, mas o fato é que ela já não existe mais naqueles termos de 2006. Tampouco seria prudente afirmar que da experiência nada restou. Oaxaca continua sendo palco de variadas formas de resistência e iniciativas de autonomia, centradas principalmente na luta em defesa do território. Como adverte Esteva (2010), ao contrário do que reproduzem as análises - sobretudo trotskistas - de que a energia das massas facilmente se dissipa se não for canalizada por uma direção política revolucionária, convém estar atento ao que se passa no subterrâneo das sociedades, às relações latentes que escapam aos mais minuciosos olhares da Ciência Política. Provavelmente Ulises Ruiz ignorasse isso quando ordenou que a pequena greve de professores fosse duramente reprimida no fatídico 14 de junho. A APPO, portanto, foi o encontro inesperado e a condensação das relações de solidariedade que vinham sendo tecidas cotidianamente nas diversas localidades do Estado. Em seu curso, a batalha ultrapassou os limites de uma luta que se estabelece apenas em resposta a uma atitude exterior, para se colocar como um ato criativo dos trabalhadores. Tratou-se, assim, de um exitoso processo precisamente porque criou condições para que os agentes em prática redimensionassem seus horizontes políticos e almejassem transformações sociais mais profundas. O fato de no início deste processo terem os professores exercido papel fundamental e de, posteriormente, ter ele se desenvolvido em ruas, bairros, povoados e veículos de comunicação levanta outro dado importante para a atualidade: hoje, os conflitos sociais tendem, cada vez mais, a se processarem fora dos ambientes formais de trabalho, para serem travados no espaço-tempo em que é formada a mais essencial mercadoria do capitalismo, a força de trabalho. E, nesse meio, a atuação política obedece a critérios específicos, ela deve adaptar-se às necessidades cotidianas e à variedade de atores que compõem o cenário local: uma luta longa e ininterrupta. Também sob esta ótica, a luta de Oaxaca é representativa do rumo que devem tomar as lutas sociais. Referências Bibliográficas: BERNARDO, J. Economia dos conflitos sociais. São Paulo: Expressão Popular, 2009. BRANCALEONE, C. Em busca do governo barato? A Assembléia Popular dos Povos de Oaxaca como experimento de (re) criação política. Lutas Sociais. São Paulo: 2º sem. 2007 e 1º sem. 2008, nº19/20. CARRANO, P. De como as barricadas se organizavam. Brasil de Fato. Brasil, 12 fev 2007. Disponível em: http://www.brasildefato.com.br/node/4672 Acesso em: 20 jul. 2011. CASTILLO, G. Ya están Ejército y PFP en Oaxaca. La Jornada, México, 29 out 2006. Disponível em: http://www.jornada.unam.mx/2006/10/29/index.php?section=politica&article=005n1pol Acesso em 20.07.11 CECEÑA, A. E. A segunda batalha de Oaxaca. Carta Maior. Brasil, 05 nov 2006. Disponível em: http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=12744. Acesso em 12 jul 2011. COMISIÓN NACIONAL PARA EL DESAROLLO DE LOS PUEBLOS INDÍGENAS. Nombres de lenguas, pueblos y distribución. 19 jan 2010. Disponível em: http://www.cdi.gob.mx/index.php?option=com_content&view=article&id=758&Itemid=68 DANTAS, G. Oaxaca, uma comuna do século XIX. Brasília: Iskra, 2009. ESTEVA, G. Nuestros demonios. Herramienta: Revista de debate y crítica marxista. México, 2009, n. 40, ano XIII. ESTEVA, G. Rebeldias. Passa Palavra. Portugal/Brasil, 31 dez 2010. Disponível em http://passapalavra.info/?p=33814 Acesso em 12 jul 2011. FELDMANN, A. F. & SANCHÉZ, W. L. Comunicação e movimentos sociais no México: o caso da Rádio Plantón. Revista Alterjor. São Paulo: ECA-USP, ago-dez 2009, ano 1, v. 1. GALVÃO, A. Os movimentos sociais da América Latina em questão. Revista Debates. Porto Alegre: jul-dez, 2008, v. 2, n. 2. GOGOL, E. La batalla por Oaxaca: la represión y la resistencia revolucionaria. La Jornada, México, 7 fev 2007. Disponível em: Acesso em: 12 jul 2011. JUAREZ, M. A Comuna de Oaxaca: um primeiro ensaio revolucionário. In: DANTAS, G. Oaxaca, uma comuna do século XIX. Brasília: Iskra, 2009. LENIN, Vladimir. O Estado e a revolução. São Paulo: Expressão Popular, 2010. MARTINEZ, E. B. Una aposta por la democratización y la ciudadanía. Revista Memoria. México: Centro de estudios del movimiento obrero y socialista, out 2006, n. 212. NAVARRO, L. H. Oaxaca hoje: Dinâmica da resistência popular. Margem Esquerda ensaios marxistas. São Paulo: jun 2007, n. 9. ______ . Oaxaca: sublevación y crisis de un sistema regional de dominio. Observatorio Social de America Latina. CLACSO: Buenos Aires, mai-ago 2006a, ano VII, n. 20. ______ . A batalha de Oaxaca. Fórum Brasileiro de Economia Solidária. Brasil, nov 2006b. Disponível em: http://www.fbes.org.br Acesso em: 2 jul 2011. OUVIÑA, H. Miguel Linares, maestro e integrante de la APPO: “En Oaxaca estamos viviendo un proceso de insurrección popular”. Prensa De Frente, México, 1º Nov. 2006. Disponível em: http://www.prensadefrente.org/pdfb2/index.php/a/2006/11/01/p2245 Acesso em: 19 jul 2011. REJAS, M. J. R. La Comuna de Oaxaca (Entrevista a la maestra Guadalupe Ramírez). Trabajadores, Revista de análisis y debate de la clase trabajadora. México: Universidad Obrera de México Vicente Lombardo Toledano, mar-abr 2007, ano 11,v. 59. RESOLUTIVOS de la Primera Asamblea Estatal de la APPO. Disponível em: http://zapateando.wordpress.com/2006/10/05/appo-resolutivos-de-la-primera-asambleaestatal/ Acesso em: 20 jun. 2011. RÍOS, Á. G. Maíz y neoliberalismo en Oaxaca. In: La Jornada. México, 27 set 2006. Disponível em: http://www.jornada.unam.mx/2004/09/27/eco-b.html Acesso em: 11 jul. 2011. TERRIBAS, B. Comuna de Oaxaca: as mulheres tomam (as antenas d) o céu de assalto. Latino Americano: Comunicação, jornalismo e cultura popular da América Latina. Brasil, ago 2009. Disponível em: http://www.latinoamericano.jor.br/reportagem_oaxaca.html Acesso em: 18 jun. 2011. TORRES, C. B. El largo verano de la revuelta oaxaqueña. Desinformemonos. México, jun 2011. Disponível em: http://desinformemonos.org/2011/06/el-largo-verano-de-larevuelta-oaxaquena/ Acesso em: 9 jul 2011. ______ . Oaxaca, una rebelión plebeya. Observatorio Social de America Latina. CLACSO: Buenos Aires, set-dez 2006, ano VII, n. 21. VÁSQUEZ, V. R. M. Crisis política y represión en Oaxaca. El Cotidiano. México, marabr. 2008, ano/vol. 23, n. 148. VIGNA, A. Oaxaca resiste. Le Monde Diplomatique Brasil. Brasil, 1º nov 2006. Disponível em: http://diplomatique.uol.com.br/acervo.php?id=1830&PHPSESSID=2992afb2cd65c8594faad2ff286459fc Acesso em: 18 jun. 2011.
[1] Para saber mais a respeito desta perspectiva analítica, ver Economia dos conflitos sociais (BERNARDO, 2009), especialmente os capítulos 2. Mais-valia relativa e mais-valia absoluta (p. 89-139) e 7. Economia dos processos revolucionários (439-459). [2] O Partido Revolucionário Institucional é um dos maiores partidos políticos do México. A sigla governou o país ininterruptamente desde 1929. Nas eleições presidenciais de 2000, essa sequência é rompida com a vitória de Vicente Fox Quesada, candidato do Partido da Ação Nacional do México. Apesar disso, o PRI conserva um significante número de cadeiras no congresso nacional e mantém o controle de diversos estados mexicanos. [3] Cf. Resolutivos de la Primera Asamblea estatal de los Pueblos de Oaxaca, celebrada na cidade de Oaxaca, nos dias 27, 28 e 29 de setembro de 2006. [4] Op. Cit., p. 147. [5] Charrismo é o termo que os mexicanos usam para designar aquilo que entendemos por corporativismo sindical, ou seja, uma política que promove uma união de interesses entre direções sindicais, governo e entidades patronais. [6] Para bem da verdade, convém mencionar que este papel de “porta-voz” desempenhado pelos professores é igualmente utilizado em proveito das lideranças políticas conservadoras. O professorado é frequentemente recrutado como quadro político de partidos como o PRI, por exemplo. [7] O relato de Gogol (2006) é baseado em sua participação como membro de uma delegação emergencial de direitos humanos que visitou Oaxaca durante a terceira semana de dezembro de 2006. [8] O maior exemplo disso talvez seja Lênin (2010) em O Estado e a revolução. [9] Cf. A Comuna de Oaxaca: um primeiro ensaio revolucionário, de Martín Juarez (apud Dantas, 2009, p. 54-57). Para o autor, as barricadas nada mais foram do que a expressão da “violência revolucionária das massas [...] Esse poder alternativo baseou-se nas barricadas, sustentadas através de medidas relativamente precárias e instrumentos de autodefesa, e nos corpos de segurança da APPO”. Limitando-se à dimensão bélica do acontecimento, Juarez ignora a profunda transformação social que estava em jogo e em curso naquele momento; o que nada tem a ver com a perspectiva aqui adotada. [10] Navarro (2006b) lembra que, ao final do ano, uma rede de solidariedade se erguia através de ocupações a consulados mexicanos em várias cidades européias, além de protestos e greves que se preparavam para acontecer em outros estados mexicanos. Em 22 de dezembro, ainda aconteceram atos de apoio em 37 países, pelo “El día de la movilización mundial por Oaxaca“, convocado pelo EZLN. (GOGOL, 2006).