Título: UMA PERSPECTIVA ANARQUISTA SOBRE O SUICÍDIO, A PRODUÇÃO DA MORTE E A PRESERVAÇÃO DA VIDA
Data: 2021
Fonte: Revista Estudos Libertários (UFRJ), v. 3, n. 8, 2021, ISSN 2675-0619

UMA PERSPECTIVA ANARQUISTA SOBRE O SUICÍDIO, A PRODUÇÃO DA MORTE E A PRESERVAÇÃO DA VIDA

Bruno Latini Pfeil

Cello Latini Pfeil



RESUMO

Apresentando uma revisão da forma como a Igreja, o Estado e as instituições médicas concebiam o fenômeno do suicídio na Europa dos séculos XV ao XX, o presente artigo ambiciona demonstrar as contradições existentes entre a exploração da vida pelo Estado e a preservação da vida por meio da penalização do suicídio, que, por sua vez, mascara seu caráter de manutenção da produtividade. Se o soberano, por um lado, detém o poder de matar seus súditos e a si, os súditos, por outro, não detém poder sobre seus corpos, devendo não só produzir riqueza para o soberano, como também permanecer vivos, porém na iminência da morte. Pretendemos comprovar que esses processos, embora tenham mudado de forma e justificação, seguiram princípios semelhantes, guiados por motivações econômicas e políticas.

Palavras-chave: suicídio; anarquismo; soberania; morte.


INTRODUÇÃO

Seguimos Camus, quando diz, em sua primeira obra[1], que o suicídio é o grande problema filosófico. Entre decidir viver e suprimir a vida, encontramos o ultimato da filosofia. No entanto, não nos voltamos ao suicídio com vista aos aspectos subjetivos da existência, ou à necessidade de sentido, ou à angústia. Nosso foco aqui não é o sujeito suicida, mas o que o circunda. O que nos chama a atenção é o impacto que o suicídio provoca em suas testemunhas, e não testemunhas quaisquer, muito menos em relação a qualquer suicídio.

Nosso objetivo neste estudo é demonstrar como as respostas de diferentes Estados europeus para com o fenômeno do suicídio denunciam o cerceamento da liberdade por suas instituições autoritárias – no caso, a Igreja, as instâncias jurídicas e médicas. A escolha da geografia de nosso objeto se dá em razão de sua impositiva regência em relação aos governos dos mais diversos territórios ocidentalizados, tendo em vista que organizações estatais de outros territórios, como terras latinoamericanas, são herdeiras diretas dos Estados modernos europeus (DE MORAES, 2020), concebendo o nascimento da modernidade pela perspectiva de Grosfoguel (2016), desde 1492, com a conquista de Al-Andalus. Ou seja, o modo como determinados governos europeus conceberam o fenômeno do suicídio e trataram das famílias e dos sujeitos suicidas influenciou a construção dos imaginários sociais e das legislações de outras populações em outros territórios em relação a esse mesmo fenômeno.

Explicando como se deram os processos de condenação do suicídio, principalmente dos séculos XV ao XX, em alguns países europeus, pretendemos comprovar que esses processos, embora tenham mudado de forma e justificação, seguiram princípios semelhantes, guiados por motivações econômicas e políticas. Com isso, demonstraremos a contradição existente entre a exploração da vida pelo Estado e a preservação da vida por meio da penalização do suicídio, que mascara seu caráter de manutenção da produtividade.

Pela lente da filosofia anarquista, procuramos identificar os processos de pecaminação[2], criminalização e patologização do suicídio, apontando para o significado valioso deste fenômeno em meio ao exercício da autoridade governamental. Antes de revisarmos a história do suicídio no Ocidente, disporemos desta introdução com algumas definições centrais: em que consiste a teoria na qual nos basearemos? Como propomos compreender os processos que fizeram do suicídio uma ofensa contra o Estado, seja pela ótica do pecado, do crime ou da patologia? O que caracteriza essa ofensa, escamoteada e dilacerada publicamente às ordens da Igreja e do Estado? Como atua a soberania, que, diferenciando o suicídio egoísta do suicídio altruísta, manuseia os mecanismos de poder religiosos, jurídicos e médicos e os imaginários sociais de vergonha e obscuridade referentes a esse fenômeno? As dinâmicas de poder concernentes à relação entre soberano/súdito ou dominus/colonus são essenciais para compreendermos as movimentações políticas e econômicas que determinam a condenação do suicídio.

Introduzindo-nos à teoria clássica da soberania, Foucault (1999) a define fundamentalmente como o direito da vida e da morte, de forma que o soberano, detentor da lei e legitimado por ela, tem o direito de produzir a morte e assegurar a vida: o “fazer morrer” e o “deixar viver”. A vida só existe para e a partir do soberano, e seus súditos, sem o direito de vida e da morte, não são nem vivos nem mortos antes do soberano, mas somente para e a partir dele (FOUCAULT, 1999). Foucault (1999, p. 286) compreende o súdito como “nem vivo nem morto. Ele é, do ponto de vista da vida e da morte, neutro, e é simplesmente por causa do soberano que o súdito tem direito, eventualmente, de estar morto”. Soberanos, por outro lado, têm tanto o direito de matar o súdito como o direito de matar a si, movimento que pode ser visto nos processos de pecaminação e criminalização do suicídio. Reconhecemos que a soberania é o exercício da autoridade. Seguindo para as palavras de Bakunin (1975, p. 28- 29),

Toda a teoria conseqüente e sincera do Estado baseia-se essencialmente no princípio da autoridade, isto é, nesta ideia eminentemente teológica, metafísica, política, segundo a qual as massas, sempre incapazes de se governarem, deverão sofrer o jugo benfeitor duma sabedoria e duma justiça que, de uma maneira ou de outra, lhes serão impostas de cima.

Embora Bakunin se refira à generalidade da teologia e da metafísica, seu pensamento volta-se especialmente ao cristianismo. Muito por isso, apontamos a Igreja como expoente fundamental do poder do Estado, sendo este a “soma da negação das liberdades individuais de todos os seus membros; ou melhor, a dos sacrifícios que fazem todos os seus membros, ao renunciarem a uma parte da sua liberdade em proveito do bem comum” (BAKUNIN, 1975, p. 26). Em suma, é a institucionalização da autoridade e sua ramificação, capilarização, como diria Foucault, nas demais instituições que exercem o poder soberano sobre o ser. Revoltando-nos contra qualquer exercício de autoridade e opressão, encontramos a teoria anarquista como base para nosso pensamento, devido à sua crítica total às instituições e ao autoritarismo. Compreendemos a anarquia como “negação de toda e qualquer tipo de autoridade quer seja religiosa, militar, estatal, econômica, social. [...] negação de todo governo, negação do Estado” (DE MORAES, 2020, p. 65).

A anarquia se fundamenta na luta contra a autoridade, tendo a liberdade e a igualdade como forças complementares; e a liberdade plena só poderia ser atingida “na medida em que existir a autogestão em todos os sentidos da vida e for realizada pela ação dos próprios interessados” (DE MORAES, 2020, p. 68). A liberdade promulgada pelo anarquismo não se limita ao sujeito anarquista que a brada, mas a todos os seres que o rodeiam, pois “quanto mais numerosos forem os homens livres que me rodeiam e quanto mais profunda e maior for a liberdade, tanto mais vasta, mais profunda e maior será a minha liberdade” (BAKUNIN, 1975, p. 22-23). Deste pensamento, surge a célebre frase de Bakunin (1975, p. 22-23): “A minha liberdade pessoal, assim confirmada pela liberdade de todos, estende-se até o infinito”. Portanto, a teoria anarquista

é intrinsecamente antiestatal, anticapitalista, antidiscriminatória e defende a máxima da ajuda mútua, caracterizada pela solidariedade e pelo livre entendimento das pessoas, sem a necessidade de uma instituição que contenha supostamente seus sentidos utilitaristas e violentos, que os fariam matar uns aos outros. Além do mais, é a única que acredita verdadeiramente na capacidade popular de se autogovernar.” (DE MORAES, 2020, p. 69)

O suicídio enquanto fenômeno social não escapa das rédeas do Estado. Se somente soberanos detêm o poder sobre a vida, então o suicídio é um verdadeiro crime, pois não só atenta contra a vida – que pertence unicamente ao soberano –, como também atinge as riquezas que essa vida poderia gerar se não fosse interrompida. Nesse sentido, suicidar-se pode ser interpretado como um ato de revolta; significaria a fuga do controle e da violência do soberano. Contudo, da mesma forma com que o suicídio revolta-se contra o Estado – personificado pelo soberano –, este mesmo Estado suicida corpos negligenciados e excluídos socialmente ao relegá-los a condições indignas de vida. O suicídio está preso em contradição: enquanto é resistência às opressões do Estado, é provocado pelo mesmo; enquanto contraria a transformação dos corpos em ferramentas produtivas e subordinadas ou em sujeitos sistematicamente negligenciados, o suicídio também possui alvos definidos pelo aparato estatal. Ao mesmo tempo em que é a ação de uma política de Estado, pessoas que tentam o suicídio e sobrevivem têm um histórico de encarceramento forçado, estigmatização, tutela médica, difamação pública e exclusão social. Por vezes, em tempos passados, as sentenças para estes sujeitos não se limitavam ao encarceramento: estendiam-se à pena de morte. A penalidade para o autocídio seria morrer, não pelas mãos do sujeito, mas pelas forças repressivas do Estado.

A partir do cenário apresentado, partimos para a revisão histórica e anarquista das implicações do suicídio no contexto europeu, especialmente do século XV ao XIX. Identificamos, de início, suas atribuições ao fenômeno do suicídio: o caráter de pecado e o caráter de crime. Demonstraremos o vínculo entre Igreja e Estado, a moralização do sagrado e a sacralização da lei, dispondo do tratamento religioso, governamental e social para com os sujeitos que se suicidavam, os que tentavam se suicidar e suas famílias. Em seguida, apontamos o processo de descriminalização do suicídio, que passa a ser caracterizado como resultado de transtornos mentais. Apresentando as dinâmicas de poder voltadas aos sujeitos que consumavam ou tentavam o suicídio e às suas famílias, suscitamos questionamentos acerca das instituições médicas que se propõem a prevenir a morte e a preservar a vida.


O SUICÍDIO COMO PECADO E CRIME

Das três concepções de suicídio que abordaremos ao longo deste artigo, iniciaremos por aquela que se manifesta por um viés moral e jurídico. A concepção de criminalidade enquanto tal se instaura tão logo haja centralização de poder e de riqueza para uma elite. E percebe-se, também, que a instauração do suicídio enquanto crime percorre o mesmo trajeto. Kropotkin (2005, p. 181) logo afirma: “Esta imensa categoria dos chamados “crimes e delitos” desaparecerá no dia em que a propriedade privada cessar de existir”, isto é, os processos de criminalização sustentam-se e são mutuamente sustentados pelos regimes políticos e econômicos da sociedade em que ocorrem. Desse modo, investigar a concepção criminosa e, antes, pecaminosa do suicídio nos ajudará a compreender o papel desse fenômeno nas dinâmicas políticas e econômicas no contexto aqui apresentado.

Estas duas categorias – pecado e crime – se complementam quase que instantaneamente, impactando a forma como o suicídio mais foi e é concebido no mundo ocidental – e, por extensão, em terras ocidentalizadas –, fortemente delineado pelos ditames do cristianismo, a “religião por excelência” (BAKUNIN, 2001, p. 18). O cristianismo, para Bakunin (2001, p. 18), expressa o “empobrecimento, a escravização e o aniquilamento da humanidade em proveito da divindade”, exercendo o domínio soberano sobre a vida de outrem. Mas não é somente por meio da crença que essa dominação é exercida; são necessárias instituições que produzam a execução do aniquilamento, a perseguição de corpos dissidentes, o domínio sobre corpos que se recusem a corroborar com a produtividade que lhes é demandada. A violenta institucionalização do cristianismo com forças políticas opressivas se expressa no conceito de igrejismo (DE MORAES, 2018), segundo o qual se compreende a utilização do cristianismo para estabelecer o domínio da Igreja em benefício das elites econômicas e políticas. O igrejismo é, junto com o militarismo e os governantes, atributo fundamental da instituição estatal, tendo a autoridade, a hierarquia, a disciplina e a obediência como traços fundamentais.

Além de dispensável para a organização social, a autoridade estanca o desenvolvimento de uma sociedade e beneficia uma classe em detrimento da exploração das demais (MALATESTA, 2009), o que se reflete no igrejismo, considerando que membros de altas hierarquias clericais participaram, com forte impacto, das instâncias de manutenção da ordem e da exploração. A exploração somente pode ser realizada na medida em que a vida dos explorados é mantida, ainda que em condições execráveis, porém segura de sua permanência. Daí a afirmação de que o domínio sobre a vida e a condenação do suicídio não servem, portanto, para um propósito moral, mas sim econômico.

Embora Georges Minois (1999) se atenha inicialmente à Idade Média, ele aponta para o caráter criminoso do suicídio logo em Roma Antiga, em que soldados e pessoas escravizadas não tinham permissão legal para se suicidarem, pois seus corpos deviam servir à ascensão da pátria e da economia:

For obvious economic and patriotic reasons, suicide was forbidden to two categories of ancient Romans, slaves and soldiers. The suicide of slaves was considered an affront to private property (a notion that was later essential in medieval serfdo); the army had specific pênaltis for soldiers who survived an attempted suicide. (MINOIS, 1999, p. 48)

O suicídio de pessoas escravizadas configurava uma ofensa à propriedade privada, e soldados que se suicidavam sofriam penalidades – ainda que somente seus cadáveres sofressem a punição. Um pouco mais tarde, a prática da extorsão dos bens de sujeitos que se suicidavam ou das famílias desses sujeitos foi disseminada, beneficiando economicamente o Estado. Famílias perdiam patrimônios inteiros em decorrência de parentes suicidas, atribuindo ao suicídio sentimentos de vergonha e repulsa; todo suicídio – proibido pelo Senado – seria egoísta, pois o sujeito não só deixaria de contribuir economicamente para sua família, como seria responsável por promover a confiscação de bens pelo Estado. Sua família “pagaria” por seu pecado (MINOIS, 1999).

O domínio sobre a manutenção da vida e pelo controle da morte se fortalece na Roma do século XV. Em meio a crises econômicas e territoriais, Roma fortalecia seu sistema totalitário. Famílias perdiam seus direitos sobre suas propriedades e sobre si mesmas para um dominus, uma espécie de soberano mercantil (MINOIS, 1999). Embora permanecessem em suas terras, eram propriedade de um ‘mestre’, ou melhor, tornavam-se seu colonus. Com isso, legislações mais incisivas voltaram-se ao suicídio, pois, pela regra, somente o dominus poderia tirar a vida de seu colonus. Nenhum servo tinha poder sobre propriedade ou bens, e menos ainda sobre a escolha de estar vivo.

Em um contexto de pobreza e trabalho compulsório, a impossibilidade de poder “escolher” tirar a própria vida significava que os camponeses não poderiam não trabalhar para seu soberano, já que somente a morte poderia livrá-los disso. Tal domínio conferia ao soberano controle absoluto sobre o corpo de seu colonus. Para a população livre, soberana, não havia condenações ao suicídio, já que este seria considerado o exercício do livre arbítrio. Logo nessa organização política, que se reflete um tanto mais um tanto menos nas estratificações das sociedades europeias, localizamos o exercício da soberania. Minois (1999, p. 30) nos diz que “The servant who kills himself robs his master and owner; his suicide is an act of revolt, and he himself is “filled with diabolic fury””; dito de outra forma, o colonus, sujeito colonizado, não tem posse sobre o próprio corpo, pois este é propriedade do dominus. Portanto, suicidar-se é violar a propriedade privada do mestre soberano e, como veremos adiante, é contrariar as forças igrejistas (DE MORAES, 2018) de justificação da dominação.

Na medida em que a soberania é concebida como o direito de matar, a política se compreende como a distorção dos limites entre a vida e a morte: a política é o trabalho da morte (MBEMBE, 2016). O soberano “dribla” a morte ao provocar constantemente a morte do outro, de forma que a morte só exista na realidade do outro; e este outro, sujeitado à soberania, tem sua sujeição legitimada pela lei mediante discrepâncias demográficas, culturais e subjetivas. O suicídio, ou sua tentativa, não se configura somente como a violação da propriedade privada do mestre soberano, mas também, e principalmente, como a revolta contra sua soberania. A morte se apresenta como uma alternativa para não se viver em subjugação, considerando que uma vida dedicada exclusivamente à produção de riqueza para o soberano, sob risco de punição caso a produção seja insuficiente, é uma morte antecipada. Mbembe (2016) aloca o suicídio entre os limites da resistência e da libertação: antes que me mate, eu mesmo me mato. Nesse contexto, o suicídio se mostra como uma forma de resistir às opressões governamentais, fazendo deste fenômeno um grande problema para a manutenção do poder soberano. Condenando o suicídio, o direito de morte retorna ilusoriamente às mãos do soberano.

Remetendo o suicídio à morte de Judas, por exemplo, os cristãos do século XV o condenam enquanto pecado, no intuito de diminuir as ocorrências de suicídio pelo medo do pós-morte no inferno. Todavia, as argumentações cristãs contra o suicídio são paradoxais: devemos, por um lado, odiar a vida e almejar o momento pós-morte, rejeitando prazeres carnais, desprendendo-nos de tudo o que é material; contudo, não devemos desejar a morte. Esta não pode ser auto-infligida. Nesse momento, a proibição do suicídio ocorre de forma pouco contundente, requisitando argumentações complexas que foram rompidas e reconstruídas ao longo dos séculos. O desespero (despair), enquanto causa do suicídio, teria como cura a confissão, que abdicaria o sujeito de seus pecados e o reconciliaria com Deus. As práticas confessionais, desenvolvidas principalmente entre os séculos XI e XII, foram cruciais para a argumentação cristã e para sua constituição enquanto instituição política.

Tempos depois, na Inglaterra do século XVI, o suicídio é considerado uma obra estritamente demoníaca, demandando práticas ritualísticas radicais da população para combater as assombrações do mal. Tais práticas se resumiriam, em geral, a atravessar o cadáver com uma estaca e posicioná-lo como um espantalho em beiras de estradas, com o objetivo de confundir o espírito e impedi-lo de voltar à cidade natal, além de impressionar quem quer que avistasse o corpo, fortalecendo o horror ao suicídio e seu caráter pecaminoso (MINOIS, 1999). Estas práticas não se limitavam à proteção dos vivos contra os mortos e os demônios; configuravam-se como uma segunda morte.

Contudo, nem todo suicídio ou tentativa de suicídio tornava-se pecado ou crime. O recorte de classe e casta determinava como o suicídio seria concebido publicamente e diante das instâncias governamentais, incluindo a Igreja. Suicídios de pessoas que pertenciam à elite, englobando desde classes sociais elevadas até classes clericais, costumavam ser indiretos. Por exemplo, um cavaleiro que, após perder uma batalha, pedia que outro o matasse se enquadraria em um suicídio “altruísta”. Encontramos esse suicídio altruísta na literatura, em heróis que imploram para que Deus ou terceiros tirem-lhes a vida (MINOIS, 1999). Tais personagens suscitam admiração, pois a morte ocorreria em virtude de sua redenção diante de Deus, do sentimento de inferioridade frente ao Todo Poderoso.

Heroes make the supreme sacrifice when it is the only way to compensate for a shameful fault or to overcome an obstacle insurmountable by human means. Through suicide they surpass their mortal condition and rise above ordinary humanity. (MINOIS, 1999, p. 16)

Por outro lado, um camponês se suicidaria sozinho, majoritariamente por enforcamento, por suas próprias mãos; um suicídio “egoísta”, sem possibilidade de redenção. Ressalta-se que as mãos costumavam ser separadas do corpo do sujeito que se suicidara, na Idade Média, atribuindo ao suicídio o caráter de “homicídio de si mesmo”. Quando o suicídio ocorria por intermédio de outrem, mais especificamente pelas mãos de outrem, não mais era penalizado. Como Minois nos mostra, tais tipos de suicídio não se distribuíam aleatoriamente pelos segmentos sociais, pelo contrário: sua distribuição era muito bem definida: “Medieval society, which was governed by a military and priestly caste, was consistent with itself when in established the chivalric ideal and the quest for Christian sacrifice as the moral norm” (MINOIS, 1999, p. 12).

Em outras palavras, o suicídio cometido pela nobreza, pelo clero e pelas forças militares, que, juntos, compunham o Estado, não podia ser 47 Os heróis realizam o sacrifício supremo quando esta é a única maneira de compensar por uma falha vergonhosa ou de superar um obstáculo intransponível por meios humanos. Por meio do suicídio. Eles ultrapassam sua condição mortal e se elevam acima da humanidade comum. (tradução nossa) criminalizado, muito menos demonizado, pois o sujeito que se suicida é soberano e, portanto, detém o direito de matar, ainda que seja a si próprio. O suicida criminoso não é soberano de si mesmo, pois pertence a outrem, e o caráter demoníaco do suicídio obedece a uma rígida hierarquia. Embora sejamos todos submissos a deus, ele insere hierarquia entre os indivíduos em termos de inspiração: os mais inspirados estão em posição de prestígio e de pronunciamento, os menos inspirados devem escutá-los e obedecê-los. Igreja e Estado, protegidos pelas forças militares, se sustentam na autoridade fundada por esta relação, que legitima, através da palavra divina, a superioridade de elites proprietárias. A Igreja e o Estado se constituem, assim, como as instituições fundamentais da exploração (BAKUNIN, 2001).

Se deus é soberano e o homem é seu servo, aquele que se proclama divino somente o faz por meio de uma revelação divina, experimentada por si mesmo ou por outrem. A revelação demanda sujeitos que a interpretem e que defendam sua veracidade, ou seja, à soberania divina integram-se sujeitos que, a partir de sua posição social, detêm o poder de justiça e da salvação: o poder absoluto. Se deus é o senhor e os homens são seus servos, o homem que se vê como divino, o detentor de uma ligação estreita com deus, tem o poder de determinar os seus servos, assim como de legitimar sua exploração. Os órgãos que fazem justiça são aqueles que se proclamam detentores da palavra divina, ou intérpretes de sua veracidade. Assim o igrejismo se estrutura. Como funcionários do Estado, não há o que impeça sua autoridade sem rejeitar a palavra divina, e “contra a justiça de Deus não há justiça terrestre que se mantenha” (BAKUNIN, 2001, p. 18).

Bakunin encontra facilidade em provar que a Igreja atuou massivamente na exploração econômica das massas, e os Estados, trabalhando em consonância com a Igreja e sendo legitimados por ela, nada mais fizeram do que perpetuar a dominação sobre os povos. Tendo como costume a confiscação de bens de pessoas que se suicidavam, não faria sentido atribuir o “suicídio” a causas de morte de membros internos das Igrejas e do Estado, não podiam roubar de si mesmos. Nesse sentido, com relação ao suicídio eclesiástico, Minois percebe uma perspectiva diferenciada. Os pouquíssimos registros de suicídios de membros do clero fizeram com que o historiador supusesse que ou tais registros fossem escondidos, ou que fossem alterados de forma a constarem como mortes naturais ou acidentais. Além disso, o corpo do clérigo que cometesse suicídio não era submetido às penalidades da justiça.

Escondidos, alterados ou ‘admirados’, os suicídios da elite militar, eclesiástica e da nobreza não eram concebidos como crimes nem como pecados. Tal perspectiva afeta até mesmo a forma como o sujeito soberano se suicida: altruisticamente, disposto de méritos divinos, deixando para o vassalo o suicídio egoísta e penalizado.

Both in romance and in life, the peasant who hanged himself as a way out of his misery was a coward whose corpse deserved to be subjected to torture and whose soul was relegated to hell; the impetuous knight who chose death over surrender on the battlefield was a hero deserving of both civical and religious honors. We cannot find a single instance of judiciary punishment meted out to the corpse of a noble who died by his own hand during the Middle Ages. (MINOIS, 1999, p. 15-16)

Será que a forma como o suicídio ocorria nas tragédias ficcionais, atribuindo status honroso ao herói, foi apropriada pela nobreza, deixando a população subalterna sem possibilidade de honra nem dignidade? Será que o tipo de suicídio (altruísta ou egoísta) era atribuído simbolicamente a diferentes segmentos sociais, de acordo com sua localização soberana ou subalterna? As tragédias inglesas do fim do século XVI e começo do século XVII detêm uma estética bastante específica com relação ao suicídio: “deitar sobre a própria espada” em campo de batalha, por exemplo, é motivo de honra, comum a militares da nobreza; enforcar-se e afogar-se são acontecimentos raros na literatura inglesa da época, pois denotam covardia e se referiam às classes sociais inferiores (MINOIS, 1999).

Os registros de suicídio seguiam fielmente os estereótipos sociais com relação à classe e ao status. O suicídio acometia pessoas de todas as classes e grupos sociais, mas a forma como se registravam e, portanto, categorizavam tais mortes dependia exatamente do lugar social de prestígio ou de submissão de quem se matava (MINOIS, 1999). A punição judicial aplicada ao cadáver de um nobre que morreu por suas próprias mãos durante a Idade Média. (tradução nossa) maioria dos registros de suicídio concentrava-se em pessoas oriundas de classes pobres, e supõe-se que a ausência de pessoas nobres e ricas dos registros de suicídio se devia ao fato de que elas controlavam o sistema jurídico e penal. Famílias ricas, com poder aquisitivo e influência política, tinham como alterar as causas de morte de familiares suicidas para “morte acidental” ou “morte natural”, tal como ocorria com o clero.

Esse esforço das elites em não constarem nos registros de suicídio não se devia somente ao status: as famílias de pessoas que tentavam suicídio ou que o consumavam tinham seus bens confiscados pelo Estado e pela Igreja, os quais não se dissociavam tanto até a Revolução Francesa, ao fim do século XVIII, que influenciou movimentos secularistas. Violando a propriedade privada do rei e de deus, as famílias deveriam indenizar o Estado e a Igreja dando-lhes as suas riquezas. Além disso, cerimônias funerárias cristãs eram proibidas para suicidas, obrigando as famílias a enterrarem-nos em solos profanos. Com os bens confiscados e com um familiar ‘amaldiçoado’, as famílias se encontravam em completa miséria. Mas que famílias? As ricas, alterando as causas de morte, não tinham seus bens confiscados; as pobres, sem condições nem influência para alterá-la, empobreciam ainda mais. Pela teoria da soberania, o poder se exerce pela apreensão do corpo e de suas posses, de forma a “se apoderar da vida para suprimi-la” (FOUCAULT, 1988, p. 127). O status de propriedade se refere tanto ao corpo quanto aos bens. Essa prática de extorsão de bens se perpetuou mediante a criminalização do suicídio: enquanto era crime, era punido.

Mudanças significativas para com o suicídio ocorreram do século XVI ao XVIII na Europa. No período da Renascença, os argumentos que imperavam contra o suicídio concentravam-se na ideia de que este é “an affront to Love of oneself, the state, and society; it offends the God who has given us life” (MINOIS, 1999, p. 71). Embora sinais do que poderíamos chamar de ‘medicalização’ do suicídio já surgissem nesse período, a visão religiosa e pecaminosa predominava, contribuindo para a culpabilização e punição – jurídica e religiosa – do sujeito que tentava suicídio ou que o consumava.

Em relação à forma com a qual os corpos de suicidas eram tratados, o século XVII nos traz algumas inovações, especialmente na França. Primeiramente, o acontecimento seria propriamente julgado, com as circunstâncias da morte detalhadamente descritas. Do momento em que encontravam o corpo até o término do julgamento e da sentença, o corpo deveria ser quimicamente untado para adiar sua decomposição. Feito o veredicto, o cadáver seria arrastado pelas ruas, de cabeça para baixo, depois pendurado pelos pés e exposto em praça pública, para em seguida ser despejado em uma vala comum contendo carcaças podres de cavalos. Assim como ocorria nos suplícios, em que o criminoso era torturado vivo em praça pública, os corpos suicidados não escapavam dessa demonstração do poder soberano. O caráter espetacular e teatral das punições públicas mostrava à população onde o poder se centralizava. Este período foi marcado pelo esforço conjunto das autoridades religiosas e políticas em contrariar qualquer tentativa de fazer do suicídio um fenômeno “legítimo”, como uma possível escolha racional ou moral. Com o igrejismo e a lógica cristã de demonização do suicídio, este ainda era visto pela legislação como crime.

Bakunin não concebe a existência de um Estado sem religião. A existência de Deus demanda a escravidão humana, pois a religião tem como fundamento o sacrifício. Distorcendo a aparência benevolente do Divino, Bakunin (2001, p. 21) afirma que “um senhor, por mais que ele faça e por mais liberal que queira se mostrar, jamais deixa de ser, por isso, um senhor”. Por mais laicas que as instituições jurídicas se enunciem, a cruz, a bíblia ou os versos cristãos são referenciados como legitimadores da justiça, do direito e da humanidade. E mesmo que materialmente não disponha destes símbolos, o cristianismo se enraizou tão intrinsecamente no organismo social que, falsamente desprovido de espiritualidade, tornou-se a moral, afirmando uma laicidade neutra e transformando o pecado em crime.

Para Bakunin, a opressão da Igreja e do Estado data desde sua criação. O “erro historicamente necessário” (BAKUNIN, 2001, p. 16), que Bakunin entende como a crença na ideia divina, serviu como motor da exploração das massas, das escravizações e da desumanização. Por isso, tanto a criminalização como a pecaminação do suicídio conferiam lucro ao Estado e à Igreja, e os alvos deste lucro – famílias pobres e economicamente exploradas, subordinadas – mostram a indissociação entre o regime político – do qual advinha a moralidade que justificava a condenação – e o regime econômico das sociedades (KROPOTKIN, 2005). A organização política modela-se de acordo com as organizações econômicas. O crescimento é econômico, e não social. Autoridade alguma contribui para o desenvolvimento do corpo social em sua coletividade, por igualdade e liberdade recíprocas (MALATESTA, 2009). A política, a centralização de poder e a autoridade são a manutenção e consagração da economia, aproveitandose das ferramentas jurídicas e médicas para fazê-la crescer, em detrimento da miséria de muitos – miséria corroborada pelo controle sobre como se deve direcionar a vida, à produção de riqueza para o dominus e para o Estado, e sobre como deve-se direcionar à morte, à exaustão, ao descarte do corpo não mais útil para o ritmo da produção –, e sob justificação do poder divino igrejista.

Kropotkin ainda denuncia, e com bastante similaridade a Minois, que boa parte dos crimes, principalmente os “atentados contra as pessoas”, atua pelo “desejo de apoderar-se das riquezas pertencentes a alguém” (KROPOTKIN, 2005, p. 181). A Lei, sancionada pelo Estado e cunhada pela Igreja, serve somente para garantir a perpetuação da exploração. Para Kropotkin (2005, p. 171), ela surge para “imobilizar os costumes vantajosos à minoria dominadora, e a autoridade militar encarrega-se de assegurar-lhe poder”. Com a lei, os dominadores soberanos sacralizam o direito ao corpo e à propriedade, universalizando uma teoria bastante seletiva no campo prático. É proibido matar, ao mesmo tempo em que o criminoso assassino é enforcado em praça pública. É proibido se suicidar, ao mesmo tempo em que o sujeito suicida, quando sobrevive à tentativa, é morto, esquartejado e enterrado em valas, e quando não sobrevive seu corpo é conservado, somente para ser exposto e dilacerado em praça pública – pelas mãos das autoridades:

À medida que a Igreja, por um lado, e o senhor, por outro, conseguiam escravizar o povo, o direito de legislar escapa das mãos da nação para passar aos privilegiados. A Igreja estende seus poderes; sustentada pelas riquezas que se acumulam em seus cofres, imiscui-se cada vez mais na vida privada e, sob o pretexto de salvar as almas, apodera-se do trabalho de seus servos; cobra impostos de todas as classes, estende sua jurisdição; multiplica os delitos e as penas e enriquece-se na proporção dos delitos cometidos, visto que é para seus cofres-fortes que vai o produto das multas. (KROPOTKIN, 2005, p. 174)

Sendo assim, por um viés crítico a toda autoridade, identificamos uma função exploratória de uma Lei sacralizada, espraiada no senso comum até hoje. Ainda há noções do suicídio como egoísta ou louvável, ou como desperdício de força produtiva. Procuramos apontar que as jurisdições de condenação do suicídio não derivavam do desejo de preservação da vida, mas sim de preservação da produtividade. Porém, não é somente à Lei que se confere esta função exploratória. Como vimos, pessoas com status social elevado que se suicidavam/tentavam se suicidar dispunham de duas alternativas: ou alteravam a causa de morte, ou eram juridicamente consideradas loucas, sendo encarceradas em hospitais em vez de presídios, e isentas da extorsão do Estado. Com o tempo, e apesar de ainda ser legalmente considerado crime, o veredicto non compos mentis – que isentava o sujeito de responsabilidade sobre seus atos em virtude de insanidade – ganhou fama, e o suicídio passou a ser cada vez mais explorado pelo campo científico.


A DESCRIMINALIZAÇÃO DO SUICÍDIO E SUA HOSPITALIZAÇÃO POR INTERMÉDIO DA LOUCURA

Em contrapartida a qualquer aspecto demoníaco, a concepção do suicídio como um desequilíbrio mental começou a surgir gradualmente no século XVII. Minois percebe um movimento de cientificização do suicídio: enquanto o desespero (despair) se originaria de pecados morais, a melancolia seria fruto de desequilíbrio psíquico. Ao fim e ao cabo, por alguma instância o suicídio se apresenta como um paradoxo, com demanda constante de justificação, seja pela Igreja, pelo Estado ou pelo Hospital.

A transformação do suicídio em resultado de loucura foi um processo duradouro, pois as próprias concepções de loucura sofreram mutações. Na Idade Média, por exemplo, a loucura abarcava os vícios, os excessos e faltas contrários à virtude. Era tida primariamente como um problema de ordem moral e religiosa; na literatura do século XV, o fenômeno da loucura ocupa o lugar de “uma sátira moral” (FOUCAULT, 1978, p. 31), complementando a noção de suicídio como uma ofensa a Deus e a seus representantes terrestres. A palavra do louco ou era anulada, desacreditada, ignorada e rechaçada, ou era vista como reveladora, profética e mais verdadeira que as demais. Até o século XVIII, a medicina não se preocupava em escutar a palavra do louco. Não importava o que ele dissesse, seu discurso não lhe cabia, pois sua palavra era significada antes de ser pronunciada (FOUCAULT, 2014). Como a palavra do louco não era concebida, a designação da loucura em alguém poderia servir a quaisquer fins que retirassem do sujeito sua capacidade de se defender, retratar ou justificar. Ao mesmo tempo em que privava o sujeito de si mesmo, por assim dizer, também o isentava de total responsabilidade e lucidez sobre seus atos ao visualizá-los como resultado de insanidade, como no veredicto non compos mentis.

Retornando ao século XVII, este veredicto privaria a família do sujeito de ter suas posses confiscadas e, curiosamente, ele era aplicado majoritariamente a sujeitos ricos, de famílias da nobreza. Nem mesmo a Igreja considerava ricos suicidas como pecadores, pois suas almas seriam privadas da loucura, embora suas mentes estivessem contaminadas por ela (MINOIS, 1999). Já pessoas de classes sociais subordinadas, ou consideradas criminosas e sentenciadas à pena de morte, eram duplamente criminalizadas ao cometerem suicídio: primeiro, por pecarem contra deus – pois, apesar da disseminação da medicalização, a Igreja não deixou de exercer influência sobre decisões políticas e jurídicas – e, segundo, por contrariarem seu soberano, representante do Estado.

A compreensão do suicídio como resultante de insanidade fez com que a loucura passasse a ser vista como um fenômeno social, enfraquecendo a contundência dos suicídios “egoístas”, exclusivamente individuais, pecaminosos e criminosos. Essa concepção atuou como combustível para a proliferação de ‘casas de internamento’ (maisons d’internement), como Foucault nos mostra. A quantidade de instituições asilares mais que duplicou na Europa ao fim do século XVII: “To prevent suicide attempts, people who had tried to kill themselves had their hands bound and were locked up in wicker cages” (MINOIS, 1999, p. 139). Temos, no ano de 1656, em Paris, a criação do Hospital Geral, instituição que propõe o internamento de tudo o que se encontra no vasto espectro do que se entendia como loucura. Pelo Hospital Geral, ao qual muitas pessoas que haviam tentado se matar eram encaminhadas, compreendemos com mais nitidez os mecanismos de encarceramento e soberania sobre o suicídio. Com o desenvolvimento das instituições de internamento,

freqüentemente se encontra a menção: "Quis desfazer-se", sem que seja mencionado o estado de doença ou de furor que a legislação sempre considerou como desculpa. Em si mesma, a tentativa de suicídio indica uma desordem da alma, que é preciso reduzir através da coação. Não mais se condena aqueles que procuraram o suicídio: internam-nos, impõe-se-lhes um regime que é simultaneamente uma punição e um meio de impedir qualquer outra tentativa. (FOUCAULT, 1978, p. 108)

Contudo, seu dever de coação não se aproxima de um dever médico, de saúde, mas sim de um caráter jurídico, agente da autoridade governamental: “o Hospital não se assemelha a nenhuma ideia médica. É uma instância da ordem, da ordem monárquica e burguesa que se organiza na França nessa mesma época” (FOUCAULT, 1978, p. 57). Interessante a menção de Foucault à ordem, e uma ordem bem específica. A ordem, para Kropotkin (2005, p. 88), é sempre a “servidão, o acorrentamento do pensamento, o aviltamento da raça humana”, enquanto a desordem se configura como a abolição da autoridade, retratada pelas épocas em que “o gênio popular toma seu livre impulso e dá, em alguns anos, passos gigantescos [...]” (KROPOTKIN, 2005, p. 89). Seja pelas leis, pela ciência, pela Igreja, a autoridade se manifesta em benefício de uma classe, em detrimento da exploração de outras. No caso do Hospital Geral, o que encontramos é a atuação de ordens policiais e jurídicas, sob comando do rei. Por não pertencer diretamente ao campo jurídico, nem diretamente religioso – embora não esteja isento de determinações igrejistas –, Foucault (1978, p. 57) o destaca como uma “terceira ordem da repressão”.

De início, o Hospital Geral tinha como primeira função o combate à mendicância, à ociosidade e a demais desordens sociais, tendo em vista um suposto combate ao desemprego. Estabelece-se, assim, um contrato: o sujeito desempregado tem o direito de ser alimentado, contanto que se submeta às ordens do internamento. Durante muito tempo, o Hospital Geral e demais “casas de correção” abrigaram desempregados e pessoas consideradas indigentes, em quantidade considerável. Os internamentos em períodos de crise tenderiam a crescer drasticamente, sendo tanto recompensas como punições: comida e asilo em troca de obediência. Dividiam-se pessoas internadas entre boas e más de acordo com sua submissão aos ‘tratamentos’, proposições eclesiásticas – o que aponta para a prevalência do igrejismo nas dinâmicas disciplinares dos hospitais, visto que uma perspectiva de cura se conectava obrigatoriamente com a obediência à Igreja – e jurídicas.

Antes de ser tratado como “objeto de conhecimento ou piedade, ele [o sujeito internado] é tratado como sujeito moral” (FOUCAULT, 1978, p. 70). Ou seja, se a conduta hospitalar se guiasse somente pela saúde do organismo humano, o sujeito seria visto somente como doente, não como imoral; as práticas confessionais e de oração não seriam fatores determinantes do percurso dos tratamentos, nem do padrão diagnóstico. Fora da crise econômica, a função dos internamentos era primariamente econômica: “Não se trata mais de prender os sem trabalho, mas de dar trabalho aos que foram presos, fazendo-os servir com isso a prosperidade de todos” (FOUCAULT, 1978, p. 77). O internamento ocupa um lugar importante na economia, tal como a confiscação estatal dos bens de familiares de suicidas. A vida e a morte precisam ser economicamente rentáveis. Os argumentos contrários à criminalização do suicídio centralizavam-se na utilidade socioeconômica do sujeito. Para justificar a descriminalização, intelectuais influentes e ativistas afirmavam que o suicídio deveria ser ‘permitido’, pois só se suicidaria quem já não se consideraria útil socialmente. Se cometer suicídio equivaleria a uma violação da propriedade estatal – isto é, do corpo produtivo, rentável –, então o suicídio de um corpo inútil, pouco produtivo, ainda que fosse uma violação, não teria tanta importância e impacto econômico. Quando não havia crise econômica, era como se o suicídio fosse um favor do sujeito ao Estado: sem forças e saúde para contribuir socialmente, sair de cena e não ser um ‘fardo’ era o caminho mais nobre, em vez de ser um desempregado. De uma forma ou de outra, as instâncias soberanas ganhavam: ou o sujeito de fato morria e deixava de ser este ‘fardo’, ou, em combate à mendicância e à ociosidade, o sujeito desempregado era internado e tornava-se mão de obra. Ou, em última instância, com o suicídio consumado, seus bens eram confiscados. O Estado enriquecia.

Institucionalizando as internações, fosse por cunho religioso ou econômico, ou provavelmente por ambos, o Estado e a Igreja exerciam sua soberania ao privar o sujeito do domínio sobre seu corpo. Na Inglaterra, por exemplo, em vez de se atentar para as casas de internamento, constroem-se workhouses (casas de trabalho) ou houses of correction (casas de correção) em cada condado, as primeiras atingindo maior número e sucesso. Ambos os modelos de ‘casas’ buscavam corrigir o comportamento desviante, porém, como diferencial, as workhouses, como o próprio nome anuncia, propunham a correção exclusivamente pelo trabalho, contribuindo imensamente para a economia.

As workhouses, predominantes na Inglaterra a partir dos séculos XVII-XVIII, e se disseminando por alguns países europeus, se destinavam a pobres desempregados em busca de trabalho e moradia. Uma vez admitido em uma workhouse, não se poderia sair sem permissão, salvo em exceções. Nelas, as condições de vida eram propositalmente duras para que somente quem realmente estivesse em situação de miséria procurasse por asilo. Contudo, o que se encontrava estava longe de uma situação asilar, visto que os trabalhos eram pouco remunerados ou sem remuneração, as condições de vida eram miseráveis e a mão de obra era desprezada. Não era incomum que autoridades parlamentares lucrassem com o trabalho pesado e não remunerado dos moradores. Foucault nos mostra a amplitude desse movimento – ao fim do século XVIII, a quantidade de workhouses pela Inglaterra chegou a 126. Ao passar dos anos, esses espaços se direcionaram, também, ao tratamento violento de indivíduos considerados loucos.

Poderíamos afirmar, talvez e com bastante estreiteza, que o domínio da loucura sobre o suicídio tirou muitas pessoas do corredor da morte; que a tutela médica, comumente confundida com cuidado, conferia um mínimo de conforto ao oferecer asilos para pessoas desabrigadas, ao garantir mínima subsistência a pessoas que atentaram contra a própria vida. Tal pensamento não nos engana. Conquanto as instâncias governamentais e autoridades jurídicas sejam defendidas, em larga ou menor escala, é ingênuo afirmar que as grandes “conquistas” sociais foram integralmente movidas por puro espírito revolucionário ou por apelo governamental e religioso às mazelas sociais. Liberdade e igualdade facilmente se tornam slogans, “inscritas nos muros das igrejas e das prisões” (KROPOTKIN, 2005, p. 133) e, adicionamos, dos hospitais, quando as elites dominantes lucram. Como pecado e crime, o suicídio enriquece as elites governantes pela extorsão de patrimônio. Como patologia, o suicídio produz mão de obra. Não à toa, vivemos em plutocracias, em sistemas de governo daqueles que detêm poder econômico e em favor dos ricos (DE MORAES, 2019). As elites dominantes são as elites governantes, explicitamente ou por debaixo dos panos.

Apesar dos esforços de punição e correção de pessoas com comportamento suicida, de propaganda e criminalização do suicídio, os índices de suicídio não variaram tanto. Com a crescente preocupação dos governos europeus com epidemias, principalmente da peste bubônica do século XIV, da varíola e da cólera, começaram a ser semanalmente publicadas listas de causas de morte para contabilizar as mortes e “casualidades”. O modo de classificação dessas listas separava as mortes causadas por doenças epidêmicas daquelas provocadas por outras doenças – como endemias, problemas de saúde menos graves, etc. – ou por loucura, o que nos remete ao suicídio.

A partir da noção de população e das estatísticas sobre as mortalidades e suas causas, Minois conclui que as condenações infernais do clero e a repressão jurídica contra o suicídio não exerceram muito efeito: as pessoas, pelo jeito, continuavam se matando de uma forma ou de outra. “What hold could threats of hell have when people thought life worse than hell?” (MINOIS, 1999, p. 154).

O Estado propunha a diminuição das ocorrências de suicídio por punições severas, suplícios póstumos, e posteriormente, ao curso da História, por internações, tratamentos, patologização e julgamentos “mais humanizados”. Essa segunda forma ambicionava a correção, a recuperação da moralidade e a salvação das almas dos suicidas. Contudo, é pelas punições físicas, também presentes nos hospitais, naquilo que vieram a se tornar hospícios e manicômios, que a soberania governamental se expressa. Em relação aos suplícios dos cadáveres, imaginavase que, se ao suicídio fossem acoplados o desmembramento póstumo do corpo, a confiscação de bens e a condenação da alma à eterna danação, talvez as pessoas refletissem um pouco mais antes de tentar o suicídio. Como exemplo, Minois nos traz o caso de Marie Jaguelin:

In Château-Gontier in 1718 Marie Jaguelin, a poor girl six months pregnant, poisoned herself out of shame. The unfortunate girl did not realize that only the nobility could kill themselves with impunity. Her cadaver was disinterred, brought to trial, sentenced, then dragged on a hurdle face down. When the group reached the town square, the executioner slit her womb and extracted what remained of the foetus, which was buried in the section of the cemetery reserved to the unbaptized. Marie’s lacerated body was hanged by the feet and left, ignominiously exposed to the public gaze, until it rotted. It was eventually burned, and the ashes were thrown to the winds. (MINOIS, 1999, p. 202)

É pelo direito de matar que o soberano se torna habilitado a “deixar viver” e a “fazer morrer” (FOUCAULT, 1999), e é pelo desmembramento do cadáver que o Estado reitera sua soberania, expressa seu poder, como uma morte “póstuma”, que pune o corpo, o dilacera e o expõe em praça pública.

Como disposto na seção anterior, até o século XVII o tema do suicídio era universalmente condenado por meio de repressões religiosas e jurídicas. Com a insurgência da medicalização, a Igreja não deixa de exercer seu poder. Embora não mais atribua ao suicídio o caráter de pecado, a Igreja se encontra bastante ativa na organização das instituições hospitalares – se as ameaças de danação pós-morte não impediam que as pessoas se matassem, infiltrar-se nos esquemas de internação poderia ser uma alternativa menos ineficaz. Tanto o Hospital Geral como demais casas de internação submetiam as pessoas internadas a exercícios religiosos:

em cada uma dessas casas, leva-se uma vida quase de convento, escandida por leituras, ofícios, orações meditações: Faz-se oração em comum de manhã e à noite nos dormitórios; e em diferentes momentos do dia, fazem-se exercícios pios, orações e leituras espirituais. (FOUCAULT, 1978, p. 60)

Para a Igreja, o objetivo da internação é a construção do sujeito virtuoso e da cidade ideal. Para isso, requisita-se uma polícia devidamente armada e “transparente aos princípios da religião” (FOUCAULT, 1978, p. 88), que promova a internação de sujeitos incongruentes com a paisagem ordenada da cidade; dentre estes tais incongruentes, estão os desempregados, as pessoas sem moradia, os loucos, as pessoas cuja sexualidade, identidade e expressão de gênero – em termos atuais – têm caráter de pecado ou crime, pessoas que “se deixam ir de si mesmas”. Além de inserir-se nas instituições “médicas” jurídicas, a Igreja constrói, por si mesma, congregações com funções semelhantes às dos hospitais.

Contudo, ao longo do século XVIII, especialmente na França, percebe-se certo afrouxamento das autoridades governamentais com relação às punições e julgamentos ao suicídio. Segundo Minois, os olhares voltados ao suicídio ganharam mais compaixão do que condenação, implicando em dificuldades governamentais para ‘controlar’ os discursos populares e midiáticos sobre o tema. No caso da França, em sua monarquia absolutista, o rei encarnava o verdadeiro soberano, detendo poder sobre a vida de seus súditos. Se o suicídio era uma ofensa ao Estado e à Igreja, pois a vida do sujeito pertencia ao rei e a Deus, como conciliar a necessidade de controlar o corpo e a ‘compaixão’ popular sobre o suicídio? A “jaula de vime” surge como uma solução eficiente para impedir uma segunda tentativa de suicídio, reiterando o poder soberano sobre o corpo ao lado de propostas ‘curativas’: o sujeito que tentou suicídio seria preso à jaula, “com um buraco feito na parte superior para a cabeça, e à qual as mãos estão amarradas, ou o “armário” que fecha o indivíduo em pé, até o pescoço, deixando apenas a cabeça de fora” (FOUCAULT, 1978, p. 108). A compaixão, em realidade, mascarava o desejo de correção; e a correção mascarava o desejo de punição àqueles que se opusessem a compor o corpo produtivo pertencente aos governantes políticos e econômicos.

O cenário, ao fim do século XVIII, após a Revolução Francesa, é da separação entre Igreja e Estado e dos movimentos de secularização da política e do ensino. As instâncias religiosas igrejistas, não podendo mais condenar juridicamente o suicídio enquanto pecado ou reiterar seu caráter criminoso em âmbito legal, passaram a fazê-los por meios adversos, fosse pelos tratamentos dos hospitais ou pelas ‘casas de Caridade’, surgidas no século XVIII por iniciativa das igrejas em alguns países europeus (FOUCAULT, 1978). Sendo assim, no meio jurídico, nas instâncias administrativas governamentais, a condenação pelo pecado não era mais viável, tal como não seria a condenação pelo crime, a partir de meados do século XIX, como logo demonstraremos pelo processo de descriminalização. Como mostra Foucault:

o sacrilégio do suicídio vê-se anexado ao domínio neutro da insanidade. O sistema de repressão com o qual se sanciona esse ato libera-o de qualquer significação profanadora e, definindo-o como conduta moral, o conduzirá progressivamente para os limites de uma psicologia. Pois sem dúvida pertence à cultura ocidental, em sua evolução nos três últimos séculos, o fato de haver fundado uma ciência do homem baseada na moralização daquilo que para ela, outrora, tinha sido sagrado. (FOUCAULT, 1978, p. 108)

A postura das autoridades governamentais diante do suicida deveria se apoiar na ciência, tida como única possibilidade de se fazer julgamentos neutros e factuais. Mas, como disse Foucault, a ciência parte de uma moral há tempos sedimentada e sacralizada, desbancando a possibilidade de neutralidade científica. Obedecendo aos ditames da modernidade, da moral religiosa, a ciência se diz fiel à razão, e é esta mesma razão adotada pelos “amantes do Estado” – que, segundo De Moraes (2020, p. 71), seriam todos aqueles que defendem o Estado a todo custo, independentemente das dinâmicas opressivas e organizações políticas que o compõem – para perpetuar o exercício da autoridade. A idolatria ao Estado é o que De Moraes chama de “estadolatria”, segundo a qual a organização social centralizada em um Estado é tida como a única possibilidade de existência de uma sociedade, o que desconsidera que as populações são capazes de se autogovernar e de se autodeterminar coletivamente.

Para De Moraes (2020, p. 71), o Estado se justifica pela ideia de que “as pessoas precisam ser governadas pela sua incapacidade intelectual”, remetendo-nos à dicotomização cartesiana da razão e das paixões. Quem governa sustenta sua soberania não só pela tirania da força, mas pela tirania do saber. No que diz respeito ao suicídio, deve haver uma justificativa viável que destitua, do corpo suicida, não só seus bens, como também seu pertencimento à ordem da razão, pois a única ordem possibilitada é a da obediência. A loucura, como concebida pelas instituições médicas e jurídicas, não pertence a essa ordem. A concepção do suicídio como fruto de patologia não o isenta de penalidades, e seu processo de descriminalização somente desloca seu local de encarceramento e seus métodos punitivos.

Com a sensibilidade popular perante o suicídio, suas ocorrências passaram a denunciar o fracasso do governo em propiciar o bem-estar social, evidenciando suas falhas e gerando revoltas e exigências populares. A solução encontrada foi o silenciamento de todo e qualquer discurso sobre o suicídio. A imprensa francesa, na segunda metade do século XVIII, tornou-se um túmulo: sem divulgação de suicídios nacionais e locais, sem publicação de opiniões filosóficas sobre o tema. Livros que aparentavam defender a escolha sobre o ato do suicídio, ou melhor, que propunham sua descriminalização e “despecaminação” foram queimados, tal como demais materiais com postura semelhante (MINOIS, 1999). Havia uma espécie de acordo entre a Igreja, as autoridades jurídicas e as famílias: corpos de pessoas que haviam se suicidado não seriam mais arrastados pelas ruas, enforcados e expostos em praça pública; em troca, suas famílias promoveriam enterros dentro dos cemitérios, porém discretos e sem cerimônias. Para Minois, os esforços governamentais franceses em silenciar notícias e pensamentos sobre o suicídio contribuíram para a perpetuação e o crescimento de seu caráter de tabu.

Assim como se constituiu a postura francesa perante o fenômeno do suicídio, outros países europeus aderiram à mesma linha de silenciamento, com exceção da Inglaterra, que agiu de forma bem diferente. Nela, ocorreu um aumento das divulgações de suicídios, acarretando em sua naturalização ao olhar do público. Os jornais da época não só noticiavam os suicídios ocorridos no país, como expunham as circunstâncias da morte, as possíveis causas e, se fosse o caso, as cartas de despedida. Publicando as sofridas cartas, a opinião popular sobre o suicídio reforçou seus sentimentos de compaixão e misericórdia. Na Inglaterra, as penalidades religiosas foram extintas em 1823, e as penais, em 1870. Contudo, apesar de “normalizar” o suicídio em sua imprensa, a Inglaterra foi o último país europeu a oficialmente descriminalizá-lo, em 1931. Até a Primeira Guerra Mundial, há registros da utilização do veredicto felo de se na Inglaterra. Ou seja, ainda que, aos olhos do público, o suicídio não fosse mais considerado um crime, o Estado não abdicou de sua autoridade sobre os corpos de quem se suicidava. A nação que, na perspectiva popular, menos julgava moralmente o suicídio foi a que, por mais tempo, o condenou juridicamente.

Esses fatos remetem a certo “balanceamento” entre o poder jurídico e os debates populares. A relação entre opinião pública e o campo jurídico foi inversa. Silenciando o suicídio e promovendo seu tabu, como ocorrido na França, a descriminalização jurídica do suicídio não interferiu em sua criminalização moral pela população; agora, em uma população que considera o suicídio como um acontecimento normal, e até mesmo como um exercício de liberdade, pensando na libertinagem dos séculos XVIII e XIX, a perpetuação da criminalização surge como um contraponto necessário para a manutenção da soberania do Estado e da imperatividade de suas leis.

Na Europa, o suicídio deixou de ser um crime diretamente de forma gradual:

At the end of the eighteenth century, suicide was being decriminalized nearly everywhere in Europe. That process was often accompanied by a conspiracy of silence, in France in particular, where those who held political and religious responsibility slowly but vaguely came to realize that the suicide rate reflected the health of the entire social group. (MINOIS, 1999, p. 301)

Pela concepção do suicídio como um fenômeno social e concernente à saúde do indivíduo, o movimento de descriminalização se fortaleceu. Temos então que, historicamente, o suicídio passou a ser visto juridicamente como uma patologia, ou como o resultado final de transtornos mentais, sendo o indivíduo que tenta suicídio encaminhado a instituições de saúde, o que culminou, enfim, na retirada do suicídio da categoria “crime”.

Enquanto pecado, o suicídio era condenado violentamente pela Igreja. Enquanto crime, o suicídio, ainda que imerso em legislação, carregava a imoralidade do pecado e o julgamento religioso igrejista. Enquanto patologia, o suicídio era enclausurado em workhouses e casas de correção, e ainda carregava remanescentes de pecado – sob os ditames da Igreja – e de crime – tendo em vista o enclausuramento. Até mesmo após a separação jurídica entre Igreja e Estado, as casas de Caridade continuaram sendo fortes veículos de atuação da Igreja, em relação a pessoas tidas como loucas e imorais, categorias nas quais eram enquadrados os suicidas. E, como tabu, o suicídio retorna aos três âmbitos que lhe formaram no imaginário social ocidental – pecado, crime e loucura. A maneira como compreendemos o suicídio hoje, sua transformação em tabu, decorre desde o pecado, desde a necessidade de esconder o suicídio de um familiar por medo da extorsão de bens para o enriquecimento das elites, e da vergonha, pela ideia de que o suicídio é um ato egoísta; afinal, não pertencemos a nós mesmos, e sim ao dominus. Cometer suicídio ou tentar se suicidar deixou de ser crime. Contudo, podemos identificar as heranças da pecaminação, da criminalização, dos suplícios e do enclausuramento não somente no imaginário, como também nos processos modernos de internação forçada, no desenvolvimento da psiquiatria, das terapias de choque, do tratamento de suicidas como culpados e desmerecedores de viver, por ingratidão à vida – que lhes é “concedida” por deus e que lhes é “garantida” pelo Estado.


CONCLUSÃO

O que nos mostram as respostas dos Estados modernos europeus – que, embora sejam nossos alvos de estudo, se refletem em toda terra ocidentalizada – ao fenômeno do suicídio? Como vimos, o suicídio se divide em pecado, crime e patologia. Embora não neguemos existência de uma condenação moral do suicídio, no sentido religioso e no senso comum, este não mais consta, em maioria, enquanto um crime, algo punível, em virtude de seu caráter patológico. Como pecado, a influência da Igreja sempre se exerce, tanto “extraoficialmente” em instituições de saúde como em casas de Caridade. No entanto, o caráter de crime e de pecado não possui mais validade jurídica. O que nos resta é a patologia.

É ingênuo pensar que, como doença, o suicídio não mais incomoda os grupos para os quais pende o poder. Os avanços científicos que fizeram do suicídio mais doença do que crime não estão isentos de teor político. Kropotkin nos diz: “O cientista, assim como o poeta ou o artista, é sempre o produto da sociedade na qual se movimenta e aprende” (KROPOTKIN, 2005, p. 55); em outras palavras, os progressos da ciência só ocorrem quando o sucesso, a aceitação acadêmica e prática já os prevêem no imaginário social. A lente por meio da qual a ciência é produzida vale-se de valorizar e aprimorar os interesses de determinados grupos, em detrimento do aniquilamento de outros muitos; e quando os avanços científicos se voltam somente a um grupo específico, ou quando o caráter de avanço só serve a esse mesmo grupo, a ciência torna-se um “objeto de luxo” (KROPOTKIN, 2005, p. 54), garantindo o bem-estar de uns e promovendo ou justificando a miséria e o encarceramento de outros.

Se, para Kropotkin (2005), a ciência agia em benefício de uns em detrimento de outros, hoje compreendemos que a ciência se vê mergulhada na produtividade compulsória, na idolatria do Estado, na hierarquização e defesa da autoridade como fundamental para a organização social. Como fazer ciência se as ferramentas para tal já não são alcançáveis àqueles que desejam romper com as concepções acima apresentadas? A academia não admite a integração, em seus currículos, de bibliografias que não condigam com suas tradições ocidentalizadas e modernas. Se a modernidade nasceu pela constituição de um Estado racista, patriarcal branco e cristão (DE MORAES, 2020), saberes que se opõem a tais lógicas se deparam com uma barreira de autores que lhes desacreditam e que deslegitimam suas narrativas. Como crítica aos Estados modernos, a concepção defendida no presente trabalho – de que o modo como as autoridades governamentais e religiosas lidaram e lidam com o suicídio parte de um viés econômico que busca se justificar moralmente – se depara com autores estadolátricos (DE MORAES, 2020), que defendem a existência do Estado a qualquer custo e a manutenção de um regime econômico que, apesar de empurrar seus trabalhadores à beira do abismo, não poderia deixar de existir.

O viés do qual parte a ciência moderna sublinha a defesa da exploração e a condenação, seja moral, jurídica ou patológica, de quem desafia a imperatividade do controle sobre seu corpo. Não queremos dizer, com isso, que a ciência de nada vale. Como Bakunin, “reconhecemos a autoridade absoluta da ciência, mas rejeitamos a infalibilidade e a universalidade do cientista” (BAKUNIN, 2001, p. 27), uma vez este sendo o produto do meio em que vive. Tendo a ciência como produto da vida, e somente existente a partir de viva coletividade, a ciência deve atuar em favor da vida, iluminando-a, e não governando-a. Na medida em que o cientista é o produto de uma sociedade autoritária, como diria Kropotkin, a ciência como a concebemos – a ciência ocidental – nada mais é do que a justificação dessa autoridade. Bakunin propõe, portanto, a revolta da vida contra a autoridade da ciência, colocando-a em seu lugar de iluminar a vida, retirando-lhe a governança. Foi exatamente o oposto disso que ocorreu no século XVII, quando a loucura passou a existir somente dentro dos hospitais e das casas de internamento.

Pelo crescimento rápido e exponencial das internações, observamos a vastidão da loucura em comportamentos e características destoantes do modelo universalizado de normalidade. Esse “homem normal”, Foucault aponta, é alimentado pela forte psicopatologia do século XIX, que o considera como “anterior a toda experiência da doença” (FOUCAULT, 1978, p. 148), como produto da natureza. Anterior não só à experiência de doença, mas a qualquer experiência humana, a concepção moderna de natureza é bastante utilizada para a propagação de determinismos, tais como a dicotomização do normal e do patológico. Essa concepção de natureza, anterior a qualquer construção humana, não nos apetece. Em contrapartida, Bakunin compreende a natureza, as leis naturais, de forma um tanto diferente. Para ele, a liberdade consiste unicamente na obediência às leis naturais, mas não qualquer lei. Não leis externas, impostas por um soberano terreno ou por um ser divinizado, mas leis reconhecidas enquanto naturais pelo próprio sujeito que as segue. O cenário em que o dominus submetia o colonus a condições de vida miseráveis e indignas; o cenário em que as workhouses e as casas de correção se mostravam como a única possibilidade de asilo, mas, em realidade, enclausuravam corpos moralmente condenados; o cenário em que, juridicamente, uma pessoa não poderia tirar sua própria vida – nem realmente vivê-la –, pois esta pertenceria ao Estado e à Igreja, e não porque toda vida é digna de ser preservada; em que a medicina age para tutelar, regular o corpo que foge dos modelos de produção e comportamento; estes cenários desobedecem a defesa da igualdade e da liberdade que rege o pensamento anarquista.

É o ser humano que produz a natureza, e a liberdade, também produzida, depende do poder que o sujeito tem de determinar suas próprias leis e sua própria naturalidade. Quando o sujeito se encontra incapaz de determinar suas leis, sua percepção de mundo e sua liberdade são aniquiladas. Se a natureza é produzida pela liberdade de se autodeterminar, o que podemos dizer da imposição da loucura a sujeitos que, por uma razão ou outra, destoam do que seria o natural, o comportamento normalizado? O que nos preocupa não é a loucura, mas a imposição de uma racionalidade construída pelos princípios de autoridade, hierarquia, centralização de poder e igrejismo – o que reflete a perversidade de uma ciência que já justificou, e justifica, o extermínio de nações inteiras, a escravização e o encarceramento de grupos historicamente aniquilados... Independentemente dos ‘lados’ aos quais pertençam, a imposição de um bem é sempre um mal (MALATESTA, 2009). Não é possível fazer um bem aos sujeitos contra a vontade dos mesmos; se o processo a partir do qual o “bem” atua em nossas vidas tem alguma centelha de não consentimento, de poder soberano, tal processo é invariavelmente autoritário. Seja o bem imposto de um grande número a um pequeno número, seja imposto de um pequeno número de detentores do saber a uma legião de sujeitos anormalizados, o anarquismo se apresenta como avesso a qualquer tipo de imposição. O bem imposto é corrompido, “precisamente porque ele [o Estado] o impõe, e toda a ordem provoca e suscita a revolta legítima da liberdade” (BAKUNIN, 1975, p. 16).

Nesse sentido, seria possível defender instituições de tutela e regulação que afirmam prezar pelo cuidado, estando mergulhadas na mesma substância que forma o Estado capitalista moderno e a autoridade de poucos sobre muitos? A autoridade se revela continuamente, seja pelo pecado, pelo crime ou pela patologia, e em nenhum destes contextos é possível encontrar corpos com plena liberdade sobre si mesmos, com a possibilidade de se autogovernar.

De Moraes (2020) concebe a anarquia como a única teoria que afirma a capacidade dos sujeitos de se autogovernarem economicamente, politicamente, socialmente. Estendemos o autogoverno à possibilidade de viver dignamente. Pela Igreja, pela Justiça ou pela Medicina, a autoridade manifesta seu poder, desde a organização política de um parlamento até a organização patriarcal de uma família; desde a denominação de um sistema de governo até a manutenção da sobrevida de corpos marginalizados em vias de se obter lucro. Para sustentar a soberania, é preciso deter o poder sobre a vida e sobre a morte, produzindo a morte ao mesmo tempo em que se pune quem a produz para si, pois somente domina a morte aquele que domina a vida, e a vida de muitos está nas mãos de poucos. Através de suas instituições, o Estado soberano espetaculariza a morte para reiterar sua autoridade sobre a vida, e o fenômeno do suicídio, com todos os simbolismos históricos aqui já apresentados, ocupa um lugar central na compreensão da soberania.

Não queremos dizer, com isso, que rejeitamos os estudos suicidológicos, as tentativas de prevenção, os cuidados que a medicina e a psicologia têm a oferecer. A defesa do autogoverno e da autodeterminação; a rejeição a qualquer imposição tutelar, por mais que afirme promover o cuidado; a revolta contra o exercício das autoridades religiosas, jurídicas e médicas: nada disso anula a necessidade de acolher pessoas em sofrimento psíquico, muito pelo contrário. Nossa crítica se dirige à ciência autoritária, ao estado de iminência da morte ao qual corpos subalternizados são constantemente submetidos, à contradição do Estado quando proíbe a morte ao mesmo tempo em que a produz.

Por uma perspectiva anarquista, refutamos quaisquer tentativas de universalizar ou essencializar pensamentos acerca do suicídio e de toda produção de saber. Portanto, concebemos este estudo como uma análise do fenômeno do suicídio e das dinâmicas que o perpassam por meio das óticas libertárias aqui aplicadas, e propomos a construção de novas óticas através das quais a saúde sirva como uma ferramenta de cuidado e preservação da vida e da dignidade humana. Nesse sentido, finalizamos com uma provocação, já incitada ao longo do texto, em relação ao fenômeno do suicídio na Europa ao longo dos séculos XV-XIX, mas aplicável também à atualidade: o que realmente nos faz condenar a morte auto-infligida seria a preocupação genuína com o outro, ou com o valor econômico da produtividade do corpo, ou com a ideia de que o outro não tem o direito de deixa de viver, pois não pertence a si, mas a uma instância superior?


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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MALATESTA, Errico. Anarquismo e Anarquia. Tradução de Felipe Corrêa. Faísca Publicações Libertárias, 2009.

[1] Referimo-nos a O mito de Sísifo, publicado em 1942.

[2] Processo a partir do qual determinado elemento se torna pecado.