A luta pelo direito à habitação é uma das lutas mais fundamentais do tempo presente, e é tópico de discussão frequente a nível nacional nos últimos tempos. Poderíamos mesmo dizer nos últimos anos, com o crescimento da industria do turismo, em especial nos grandes centros urbanos do litoral, como Porto e Lisboa, mas afetando simultaneamente zonas do interior de Portugal. As ações dos últimos governos, quer do PS quer do PSD e das Câmaras Municipais têm dado prioridade aos lucros dos especuladores imobiliários e à expansão dos Alojamentos Locais, deixando em segundo e terceiro plano os interesses das populações em terem acesso a habitação de qualidade. A gentrificação social e o esvaziamento das cidades, a substituição dos velhos habitantes, especialmente daqueles pertencentes às classes populares, trabalhadores, estudantes e comunidades pobres, racializadas e marginalizadas, para darem lugar a projetos milionários, são alguns dos resultados das politicas neoliberais.

O Estado, em defesa dos interesses dos proprietários e senhorios, ignora as dificuldades dos moradores. Com os valores das rendas das habitações a disparar, ao mesmo tempo que os salários e o poder de compra dos trabalhadores estagna ou é mesmo reduzido, as condições de vida das populações pioram drasticamente e a pobreza aumenta com o risco de estas pessoas perderem as suas casas. Os senhorios aumentam o valor das rendas, explorando os moradores, enquanto o governo não hesita em usar o braço armado do Estado, a policia, para despejar famílias pobres e racializadas das suas casas, em nome da santidade da propriedade privada e dos interesses económicos dos ricos e poderosos.

Perante um presente cada vez mais desesperante para as comunidades dos bairros das cidades e um futuro progressivamente obscuro para as populações mais jovens, incluindo grande parte daqueles que têm possibilidades de estudar no ensino superior, é urgente organizarmo-nos coletivamente, apoiarmo-nos mutuamente e agirmos o mais rápido possível. A luta pelo direito à habitação e à cidade é uma luta na qual devem convergir moradores, trabalhadores e estudantes. É uma luta intimamente ligada às lutas no local de trabalho por melhores salários e mais tempo livre, às lutas estudantis pelo acesso ao ensino. À luta feminista e antirracista que aborda as comunidades mais afetadas pela falta de acesso à habitação, vítimas de violência doméstica e pessoas racializadas, vítimas de uma sociedade patriarcal e estruturalmente racista num Estado Nação que continua a perpetuar o seu legado colonialista.

Mas de nada vale falar no direito à habitação e fazer apelos à lei e à constituição da República. As leis do Estado e das classes dominantes não representam os nossos interesses. As leis e a constituição burguesas são letra morta quando se trata de defender o bem estar e a liberdade dos de baixo, dos marginalizados, dos despossuídos. Os direitos nunca são dados, são conquistados. Os direitos que o Estado e os patrões nos concedem foram conquistados pela ação direta dos trabalhadores, moradores e estudantes, e só apenas através da luta e ação direta é que poderemos continuar a defender os direitos já adquiridos das investidas do Estado e do Capital, além de conquistar novos direitos. O direito à habitação só será um direito quando os moradores e a classe trabalhadora estiverem organizados de forma autónoma, nas suas próprias organizações de base e combativas. Não podemos falar no direito à habitação nem no direito à cidade sem uma organização popular capaz de lutar por esses mesmos direitos. Nas palavras de Piotr Kropotkin, “As liberdades não se dão, tomam-se.”

As fórmulas do passado não podem nem devem ser aplicadas de forma igual no presente, mas a forma como os moradores das cidades de aldeias de Portugal lutaram ao longo da sua historia funciona como uma fonte de ensinamentos e inspiração para as lutas do presente e do futuro. As lutas do pós-25 de Abril de 1974, que em diversas ocasiões fizemos questão de recordar nos últimos anos, a memória daqueles que lutaram pelo acesso a habitação gratuita e de qualidade, muitos dos quais ainda cá estão connosco, representam muito daquilo que podemos e devemos fazer. Em 1974, comissões de moradores autónomas ocuparam e remodelaram habitações, violando a santíssima propriedade privada. As comissões de moradores, lideradas maioritariamente por mulheres e baseadas em princípios e métodos libertários, ilustram uma das formas de organização e ação criadas por parte da classe trabalhadora no período revolucionário. Dezenas de comissões no Porto formaram uma federação, dando origem ao Concelho Revolucionário de Moradores do Porto. Federações semelhantes de comissões de moradores autónomas foram formadas em Lisboa, Setúbal e outros pontos do país. Em conjunto, ocuparam e remodelaram mais de 30 mil casas, forneceram melhores condições de habitação a centenas de milhares de pessoas pobres, dos bairros populares. Compreenderam a importância de conciliar a luta pela habitação com outras lutas. As comissões de moradores lutaram pelo direito à saúde, organizando centro de saúde em edifícios ocupados. Lutaram pelo direito à educação, ocupando e remodelando escolas e creches, criando grupos de alfabetização, teatro e grupos desportivos. Os moradores começaram a construção de uma sociedade radicalmente diferente, socialista e autogestionária, organizados em comissões baseadas no federalismo, na ação direta, na horizontalidade, na autogestão, na eleição de delegados revogáveis e na democracia direta e participativa. No fundo, baseados em princípios anarquistas e socialistas libertários. Temos também como caso mais recente num país perto de nós, a Federação Anarquista da Gran Canaria e o Sindicato de Inquilinas de Gran Canaria, responsável pela maior expropriação de habitações do Estado Espanhol, com 71 expropriações, envolvendo 71 famílias e mais de 250 pessoas organizadas, desde 2013.

São essas práticas que temos de recuperar e colocar em prática para lutar pelas reformas de que necessitamos no imediato e para preparar a luta mais radical pela revolução social que queremos no futuro. Construir as organizações populares de base, o poder popular, que nos permitirá reorganizar gradualmente a sociedade e preparar os indivíduos e as coletividades para uma verdadeira vida em liberdade. Trabalhar hoje, amanhã e sempre na construção de uma sociedade comunista e libertária, sem Estado nem patrões. Um mundo novo baseado na livre associação de indivíduos e coletivos, no apoio mútuo e na posse coletiva dos nossos meios de produção, das nossas escolas, hospitais e dos nossos bairros, terras e habitações. De tudo aquilo que é necessário para garantir o nosso bem estar, liberdade e a satisfação das nossas necessidades. Queremos casas de qualidade e a possibilidade de tomarmos controlo das nossas vidas, sem estarmos sujeitos à dominação de relações sociais de poder de uma classe sobre a outra. Uma sociedade sem classes nem trabalho assalariado, na qual o livre desenvolvimento de cada um é a condição para o livre desenvolvimento de todos.

O papel dos militantes e organizações anarquistas deve ser o de lutar e organizar junto das classes populares, dos trabalhadores, estudantes, moradores e comunidades racializadas e marginalizadas. Não nos podemos confinar na nossa zona de conforto, nos nossos pequenos espaços de afinidade, nem em movimentos que excluem pessoas negras, migrantes, ciganas, mulheres ou pessoas da comunidade LGBTQI+. É fundamental estar presente nas organizações sociais de base já existentes e ajudar a construir novas organizações, levando o nosso programa e as nossas pautas libertárias. É fundamental estar presente no trabalho de organização nos bairros, nos locais de trabalho, nas escolas e universidades, nas ruas, junto dos excluídos, não como vanguarda que pretende governar de cima, mas como aliados que pretendem andar lado a lado em igualdade com os membros das nossas comunidades e da nossa classe. Construir um anarquismo com inserção em movimentos sociais combativos.

É com enorme prazer e esperança que vemos, portanto, os moradores nos bairros pobres e periféricos do Porto e Lisboa a organizarem-se desde baixo para lutar pela ação direta pelos seus interesses. Saudamos a luta de movimentos como o "Vida Justa" em Lisboa e o "Habitação Hoje" no Porto e prometemos estar sempre ao lado de todo e qualquer movimento que se comprometer em estar junto dos excluídos e despossuídos da classe trabalhadora, contra o Estado, o capitalismo, e todas as formas de dominação. Apelamos a que os moradores não se rendam e continuem a lutar pelos seus direitos e interesses, pelo seu bem estar e por uma vida que vale a pena ser vivida, com amor, amizade, solidariedade, liberdade e diversidade.

Recordando, mais uma vez, o velho camarada Kropotkin, “Mas já é tempo de compreender que não é às leis constitucionais que há que reclamar esses direitos. Não é numa lei — num pedaço de papel, que pode ser rasgado ao menor capricho dos governantes — que iremos buscar a salvaguarda desses direitos naturais. É somente constituindo-nos como força, capaz de impor a nossa vontade, que conseguiremos fazer respeitar os nossos direitos.”