Vitor Ahagon

Leituras anarquistas da psicanálise

12/11/2024

Por que psicanálise e anarquismo?

A princípio, parece estranho relacionar psicanálise e anarquismo, isso em vários níveis. Primeiro porque a história do anarquismo remete aos espaços dos campos, fábricas e oficinas. Lugares abertos onde o sol “racha a cabeça” e os ventos “cortam a cara”; lugares com pouca ventilação, muito abafados no calor e muito frio no inverno, ou seja, espaços difíceis de ficar, mas que eram ocupados por trabalhadoras e trabalhadores por doze, quatorze ou dezesseis horas por dia. Já a psicanálise foi gestada e desenvolvida no espaço da clínica de Freud, que, apesar de também ser um espaço difícil de ficar – afinal, falar do íntimo não é tarefa fácil -, era um lugar em que os/as pacientes se sentiam em segurança. Ali podiam falar tudo que lhes viesse à cabeça e seriam escutados/as, atentamente, sem julgamentos morais.

Fora as diferenças históricas dos espaços do anarquismo e da psicanálise, existe a diferença entre o trabalho do/a psicanalista e o/a anarquista trabalhador/a. Enquanto a psicanálise se desenvolve sob os contornos de uma profissão liberal e de suas preocupações, o anarquismo surgiu a partir das demandas das classes populares e das necessidades operárias e camponesas. Nesse sentido, podemos perceber a luta de Freud em legitimar a psicanálise frente uma comunidade médica vienense extremamente elitista e racista, onde ele mesmo havia sofrido de antissemitismo em muitas ocasiões. Dessa forma, Freud buscava seu lugar ao sol na sociedade burguesa de sua época, mesmo que por diversas vezes tenha colocado em cheque esta própria sociedade, como por exemplo, a aposta que fez na escuta de mulheres que eram tidas como loucas. Já o anarquismo buscou destruir a sociedade burguesa e fundar uma outra a partir da posse comum dos meios de produção, na autogestão do trabalho e na federação dos sindicatos e das comunas livres.

Mas, então, porque relacionar psicanálise e anarquismo? Acredito que, apesar das diferenças, ambas as posições possuem pontos de contato que valem a pena serem explorados. Como bem afirmou Eduardo Colombo – de quem falaremos mais em breve -, a psicanálise é tanto uma clínica quanto uma teoria, que pensa, de forma radical, as relações de poder nos romances familiares, no ambiente de trabalho, na política, na cultura, mas também na relação transferencial entre analista e analisando/a.

Da mesma forma que a psicanálise se apresenta para o conhecimento científico como crítica dos processos de subjugação, o anarquismo é, em minha opinião, a corrente do socialismo que mais se debruçou sobre os meandros do poder, refletindo a forma como ele opera não só na esfera pública, mas também na privada; a forma como as hierarquias ajudaram a constituir a dominação burguesa capitalista, mas que também poderiam se reproduzir, como aconteceu, no interior do próprio socialismo – mesmo ele pode ser autoritário. Assim sendo, a psicanálise e o anarquismo se encontram no desvelamento do poder que se desdobra em campos, fábricas, oficinas e clínicas. No final, esse encontro me parece estranhamente familiar.

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A primeira referência que encontrei sobre o tema foi do anarquista, médico e psicanalista argentino Eduardo Colombo. A militância de Colombo começou muito cedo, quando ainda era secundarista nas fileiras de uma das mais importantes organizações sindicais de orientação anarquista da Argentina, a FORA (Federación Obrera Regional Argentina). Quando estudante de medicina, entrou para o movimento estudantil e se tornou colaborador e, posteriormente, diretor do jornal La Protesta. Já formado, se tornou professor da Universidad de Buenos Aires da disciplina de psicologia social. Nesse momento, havia um intenso debate em torno das produções de Enrique Pichon-Rivière, psiquiatra e psicanalista franco-suíço radicado na Argentina. Em detrimento do golpe militar em 1976, com sua família, se exilou em Paris. Em relação à militância, passou a integrar o movimento anarquista francês, estando à frente da revista Refraction. No campo psicanalítico, se aproximou do “Quarto Grupo”, organização de psicanalistas dissidentes de Jacques Lacan, tendo Piera Aulanier como grande expoente e que, naquela época, era companheira de Cornelius Castoriadis, filósofo que havia mergulhado nas convulsões sociais dos anos 1960/70 em Paris e que já tinha vasta produção em torno da crítica do capitalismo e do autoritarismo marxista de tendência stalinista, maoísta e trotskista, elaborando uma teoria refinada em torno do conceito de autonomia.

Os textos de Eduardo Colombo foram traduzidos no Brasil por Plínio A. Coelho e publicados pela editora Imaginário/Intermezzo. Eles abriram caminho para uma filosofia anarquista contemporânea de base psicanalítica que, debatendo com Foucault, Rene Lourau, Cornelius Castoriadis e os clássicos do anarquismo como Bakunin, Malatesta e Kropotkin, investigaram a concepção do Estado como forma de paradigma de poder, a internalização desse paradigma na subjetividade do sujeito, as distinções entre a violência estrutural e estruturante das classes dominantes, a reação violenta e legítima das classes oprimidas, o afeto do medo na política, as distinções entre a obrigação social e o dever de obediência da servidão voluntária, dentre outros temas. Toda esta produção, fascinante e mais empolgante ainda no momento em que eu havia descoberto a psicanálise, abriu os horizontes e um desejo mais profundo para a investigação da psicanálise e sua relação com o anarquismo.

Outra referência me chegou durante o confinamento da pandemia de COVID-19. Nesse momento, houve uma explosão de lives e vídeos no YouTube e nas redes sociais, lugares em que encontrei o vídeo do camarada Amir El Hakim de Paula, criador de conteúdo do canal Anarquismo e Geografia. No vídeo, Amir fala sobre um psicanalista alemão chamado Otto Gross e como ele articulou a psicanálise com as ideias de revolução, comunismo e anarquismo. Um dos pesquisadores brasileiros que mais se debruçou na vida e obra de Gross é Marcelo Checchia, que está resgatando essa figura tão importante para a psicanálise e para o pensamento radical da Europa do começo do século XX. Publicado pela editora AnnaBlume, Checchia, junto com Paulo Sérgio de Souza Jr. e Rafael Alves Lima, organizaram textos de Gross em um livro chamado “Por uma psicanálise revolucionária”, onde podemos verificar como o psicanalista austríaco articulou a psicanálise com as ideias de Max Stirner, um precursor do anarco individualismo, e Piotr Kropotkin, uma das maiores referências do anarco comunismo.

No meio dessa pesquisa, me veio a pergunta: mas e os anarquistas aqui no Brasil, quais são as suas relações com a psicanálise, se é que elas existem? Eu sabia que a produção de Roberto Freire e a Somaterapia tinham relações com a psicanálise, mas que haviam sido rompidas na década de 1960, passando a ter um diálogo muito mais próximo com as teorias de Wilhelm Reich, outro dissidente da psicanálise. Nesse momento, minha formação como historiador gritou e foi assim que comecei a pesquisar os jornais anarquistas. Nessa procura, as referências mais antigas que consegui encontrar estavam no jornal Ação Direta, de 1946 a 1959, da cidade do Rio de Janeiro, dirigido pelo anarquista brasileiro José Oiticica e que após sua morte, ficou sob responsabilidade de Sônia Oiticica e Ideal Peres. Bingo! Nesse jornal encontrei muitos textos que faziam referências a Freud e à psicanálise, e este texto é um pouco do resultado dessa investigação.

As leituras da psicanálise

O jornal Ação Direta foi um periódico lançado após a ditadura do Estado Novo. Aquele momento era, ao mesmo tempo, um respiro democrático e um período difícil para o anarquismo, tendo em vista a forte repressão sofrida pelo movimento e a cooptação de grande parte da classe trabalhadora por Getúlio Vargas. Uma vez em que o movimento operário revolucionário tinha sido desmantelado pelo varguismo, os anarquistas começaram a lançar mão de outras estratégias para se manter como força social atuante nos anos 1940. Isso não significou que o anarquismo fosse ausente ou nulo no movimento operário, mas certamente havia perdido a pujança que tinha no começo do século XX. Diferente das visões reducionistas de algumas tendências historiográficas, que colocam o declínio do anarquismo no Brasil por ser uma ideologia pré-política e que, por isso, se adaptava muito mais a uma condição pré-industrial, minha perspectiva é que tal declínio se deu em detrimento da perseguição, repressão e violência que o movimento anarquista sofreu, inclusive, muito mais do que outras correntes socialistas, justamente porque combatia frontalmente, ao mesmo tempo, o capitalismo, o Estado e a Igreja.

Sendo assim, a partir dos anos 1940, podemos perceber que o anarquismo começa a trazer o campo cultural como espaço importante para fazer a disputa. Não que nos anos anteriores não o fizessem, mas neste contexto ganha novos contornos e intensidades. Assim, algumas figuras começam a se aproximar do anarquismo, como foi o caso de estudantes universitários. Dois exemplos mais destacados desse grupo foram Ideal Peres e Esther Redes, figuras que vão ser centrais para o desenvolvimento e manutenção do jornal Ação Direta depois da morte de José Oiticica em 1957.

O Ação Direta era um jornal de combate que seguia uma tradição antiga de jornais libertários. Assim como o historiador Allyson B. Viana, acredito que a imprensa anarquista tinha como público um/a leitor/a que aspirava a transformação da vida pelo fim da sociedade estatal-capitalista. Por isso mesmo, a imprensa anarquista revelava sujeitos em suas páginas que propunham práticas individuais e coletivas que faziam circular e movimentar ideias no sentido da Revolução Social. Dentre tantas ideias e sujeitos que davam vida e movimento ao Ação Direta, encontramos a evocação das figuras da psicanálise, como Sigmund Freud e Erich Fromm. No entanto, nem sempre essa evocação se deu de forma unívoca, ora eram ressaltados de forma positiva, ora eram trazidos de maneira negativa. Houve ainda uma terceira forma dos militantes anarquistas trazerem a psicanálise: a partir de uma abordagem complexa, não reduzindo-a como positiva ou negativa.

Criei, assim, três tipos de leituras que os anarquistas fizeram de Freud e a psicanálise: a primeira foi uma leitura apologética, em que colocavam Freud como grande cientista e pensador; a segunda, a leitura negativa, julgavam a psicanálise como um conhecimento inválido para o anarquismo ou mesmo a ciência; por último, como uma leitura crítica em que consideravam a teoria psicanalítica importante para desvendar os meandros da dominação, sem abrir mão da crítica do próprio Freud.

Leitura apologética

O conjunto de textos que tratavam Freud como um grande cientista e pensador foram escritos por diferentes pessoas em momentos distintos do jornal. No entanto, havia um elemento em comum que ligava dois dos três textos reunidos neste conjunto, a religião. No texto de Ideal Perez, publicado em dezembro de 1946 e cujo título era “Ciência e Religião”, o anarquista fala sobre o desenvolvimento científico e como, através da história, entrou em choque com a religião e a Igreja Católica. A ciência, pondo em cheque os valores do cristianismo e o poder da Igreja, reagiu contra vários livre-pensadores, dentre eles Freud.

O rosário é imenso: Janer, Galileu, Franklin, Darwin, Freud etc., viram esses pigmeus da teologia espumarem raivosos contra as verdades científicas, que seus cérebros embotados pelo cego fanatismo não conseguiam nem de longe vislumbrar.[1]

Apesar da colocação racista e capacitista em chamar os padres de pigmeus, Perez coloca Freud no hall de cientistas que afrontaram o pensamento dogmático religioso com suas descobertas em oposição à pequenez do clero católico.

Neste mesmo sentido, Osvaldo Salgueiro trouxe a figura de Freud em seu artigo “Anarquismo, espiritismo e bom senso”, publicado em março, abril e maio de 1953. Ele é uma resposta a outro texto publicado no jornal escrito por Neiva Sobrinho, intitulado “Anarquismo e Espiritismo”, que causou uma celeuma nos leitores do Ação Direta, suscitando um acalorado debate na folha. O diretor do jornal, José Oiticica, havia se posicionado no debate de forma a contemporizar a discórdia, sendo prontamente rechaçado por Osvaldo Salgueiro

Salgueiro via no espiritismo “um dos piores ópios para o trabalhador”. O articulista segue sua crítica atacando, sarcasticamente, os defensores do espiritismo que, supostamente, seriam cientistas, como Lombroso – sim, o mesmo que “provou” que os anarquistas são naturalmente criminosos -, Richet, dentre outros. Salgueiro segue ironizando as posições defendidas por Oiticica, ressaltando a falta de criteriosidade científica e resume sua posição da seguinte forma:

(...) o espiritismo pertence à categoria das chamadas ciências ocultas, e tais ciências não são ciências pelo simples fato de serem ocultas. É fácil verificar-se que, em última análise, elas giram em torno da crença no sobrenatural. Ora, os anarquistas, salvo raríssimas exceções, não creem no sobrenatural. Por conseguinte, não há razão para que se tomem de simpatia pelo espiritismo.[2]

Neste sentido, quando Osvaldo Salgueiro define a posição do anarquista no campo científico como um descrente do sobrenatural, o localiza na mesma posição de Sigmund Freud, uma vez que reproduz a afirmação do pai da psicanálise de que não haveria possibilidade “de se encontrar fora da ciência [...] aquilo que só a ciência pode nos dar. Isto é tudo”. Logo, a posição cética do cientista, e portanto de Freud, se encontraria na mesma posição anti-dogmática do anarquista, na medida em que a crença não deveria se basear em abstrações como Deus ou espíritos.

Por fim, o último texto que coloca Fred como grande cientista e pensador foi o texto de Antônio de Sá, intitulado “Salve, Maquis da Palestina”. Nele, o autor escreve sobre o império britânico na Palestina e como o povo judeu, combatendo a opressão imperialista, estava lutando contra o colonialismo. Mas no afã da defesa de uma luta anti-colonial e anti-imperialista, o autor exalta as ações de uma organização sionista chamada Igrum, grupo este que se utilizava da propaganda pelo fato e realizava atentados com dinamite contra as autoridades britânicas para lhes causar terror. No entanto, esta era uma organização de caráter muito duvidosa, em que seus fundadores tinham suas histórias vinculadas à direita sionista. Nessa toada de exaltar as qualidades do povo judeu e sua colaboração “para a humanidade”, acaba citando Freud dentre outros filósofos e cientístas.

A história hebraica registra nomes luminosos no campo da ciência, da literatura, da arte e em todos os setores do saber humano. Spinoza, Heine, Einstein e Freud, entre outros, são nomes que fazem orgulho do próprio gênero humano.[3]

Leitura negativa

Do ponto de vista negativo tanto da psicanálise quanto do próprio Freud, encontrei apenas dois textos. No entanto, tanto um quanto outro não foram escritos pelos próprios personagens que faziam circular as ideias e debates no jornal, mas eram artigos que haviam sido publicados de outros periódicos. Isso não significa que as ideias ali expostas não eram aceitas pelos editores do Ação Direta, mas também não podemos afirmar que eles concordavam inteiramente com os artigos, tendo em vista que a psicanálise havia sido abordada de maneira indireta em ambos os escritos.

O primeiro texto foi escrito por Augustin Souchy, anarquista de origem polonesa e um fervoroso defensor do anarco sindicalismo, que fez duras críticas à guerra, ganhando, muitas vezes, o rótulo de pacifista. O fragmento do texto de Souchy foi intitulado de “Existencialismo e liberdade” e foi publicado em dezembro de 1949. No artigo em questão, Souchy buscava traçar as características que marcaram o existencialismo histórico. Através do resgate genealógico da filosofia francesa, nosso anarco sindicalista coloca Freud entre os precursores do existencialismo, pontuando como ela combatia tanto o naturalismo quanto o materialismo do século XIX. Souchy reconstrói o existencialismo em três momentos, o primeiro elenca Tomás de Aquino e Sören Kierkegaard como representantes, em seguida o filósofo alemão e colaboracionista dos nazistas Martin Heidegger e, por fim, Jean Paul-Sartre, único filósofo dos representantes existencialistas que Souchy reconhece como de esquerda. Do ponto de vista do articulista, o existencialismo, desde o primeiro, atravessando o segundo e chegando ao terceiro momento, por se apegar a conceitos e categorias metafísicas como o Nada e a Angústia, não pode ser considerada como uma filosofia da liberdade. Souchy pontua que

A filosofia libertária é um pensamento completo e anti-dogmático. Situa o homem dentro de uma sociedade livre e estipula que a evolução da personalidade se manifesta no mesmo ritmo que as condições sociais. Liberto de prejuízos religiosos e superstições arcaicas, o ideário da filosofia da liberdade servirá como guia ao pensamento e precederá aos novos horizontes ideológicos, da mesma maneira que a teoria precede à prática.[4]

Sendo assim, o anarquista, por considerar Freud e a psicanálise como precursores da filosofia existencialista, não a considera como ferramenta ou conhecimento relevante para a emancipação do sujeito e da sociedade, por ainda estar, segundo ele, atravessada por perspectivas religiosas e/ou metafísicas.

O segundo texto de leitura negativa da psicanálise e de Freud, foi, na verdade, um fragmento de texto de um outro jornal brasileiro, mas que não era socialista, comunista ou muito menos anarquista. Era um trecho de um artigo publicado no jornal O Globo, o qual os editores julgaram fazer sentido ser republicado no Ação Direta de agosto e setembro de 1957. José Oiticica havia falecido um mês antes desta publicação e, nessa época, o jornal estava sob os cuidados de Sônia Oiticica e Manuel Peres.

O texto fala sobre as pesquisas do sociólogo Piritim Sorokin acerca da criminalidade entre os governantes. Sorokin foi um cientista político russo que atuou no Partido Socialista Revolucionário Russo durante o czarismo e, com a Revolução de fevereiro de 1917, se tornou secretário de Kerensky. Quando os bolcheviques tomaram o poder em outubro, foi perseguido até ser expulso de sua terra natal e enviado aos Estados Unidos em 1923. Lá, se estabeleceu como professor universitário e fundou o departamento de sociologia de Harvard. Para o sociólogo, a classe governante era a que mais cometia crimes na busca pelo poder, dentre eles o parricídio, o matricídio, exoricídio [uxoricídio], o fratricídio etc. Sorokin julgava que aquele momento – a década de 1950, período da chamada “crise dos mísseis” – era particularmente sensível, uma vez que eram esses governantes que detinham o controle das armas nucleares e, portanto, seriam o grupo mais perigoso para o bem estar do gênero humano. Neste sentido, Sorokin acreditava que, em razão dos feitos das ciências físicas e biológicas, algumas ciências sociais deveriam ser abandonadas em detrimento de serem cientificamente insustentáveis

Segundo o professor Sorokin, entre as teorias que estão exigindo revisão de alto a baixo ou o abandono definitivo, acham-se a teoria freudiana de personalidade e do comportamento humano e a teoria darwiniana de luta pela existência.[5]

Podemos notar que o julgamento da psicanálise como falsa ciência ou pseudociência não é uma acusação tão estranha quando olhamos para sua história. Mas, independentemente da crítica à psicanálise e a Freud, notamos que os textos publicados no Ação Direta tinham como questão fundamental outros pontos, o que enfraquece a suposta leitura negativa da psicanálise pelos anarquistas.

Leitura crítica

Certamente essa foi a leitura mais rica que os/as anarquistas fizeram da psicanálise e de Sigmund Freud. Ela se justifica pela complexidade da apropriação que os/as militantes fizeram da teoria psicanalítica a partir de um ponto de vista anarquista. É sabido que o anarquismo, diferente do marxismo, não possui uma metodologia única de análise da sociedade. O marxismo, partindo da crítica da economia política, do materialismo feuerbachiano e da dialética hegeliana, forjou uma metodologia conhecida como materialismo histórico dialético. Foi a partir dela que conseguiu alçar o status de científica e que ganhou espaço, dentre outros fatores, no meio acadêmico, muito diferente do anarquismo.

Antes de tudo, o anarquismo sempre exerceu uma crítica radical a todas instituições, sejam elas formais, como aquelas criadas pelo Estado, sejam as instituições ancoradas na tradição, como a família patriarcal. Essa postura anti-institucional dificultou a entrada e permanência nas universidades, fazendo com que os/as anarquistas preocupados com questões científicas, desenvolvessem suas teorias desde fora dessas instituições, como foi o caso, em certa medida, de Kropotkin e Reclus. Isso não quer dizer que eles estavam de fora da comunidade científica, o que se evidencia em suas trocas de correspondências.

O anarquismo foi – e talvez continuará sendo – marcado pela pluralidade metodológica, o que não significa ecletismo metodológico. Tomemos como exemplo três figuras: Mikhail Bakunin, Piotr Kropotkin e Emma Goldman. Se analisarmos as bases epistemológicas que ancoram o argumento de cada um deles, verificamos diferenças evidentes. Bakunin, assim como o marxismo, estava próximo da crítica da economia política, do materialismo feuerbachiano e da dialética hegeliana, com a diferença de que não separava a cultura, a política e a economia. Para ele, a infraestrutura econômica não determina propriamente a superestrutura jurídico-política ideológica, pois elas eram elementos constituídos pelas suas relações. Portanto, sem a destruição da política burguesa não haveria a destruição da economia política e estas não mudariam sem a transformação radical da cultura.

Kropotkin, que teve formação extremamente erudita, partia de uma leitura profunda da filosofia transcendental kantiana, desenvolvendo suas pesquisas a partir da abordagem empírica indutiva-dedutiva, dialogando tanto com o pragmatismo quanto com o utilitarismo inglês. Já Emma Goldman, apesar de beber das reflexões tanto de Bakunin quanto de Kropotkin, seguiu um caminho próprio através de uma epistemologia genealógica com forte traço nietzschiano. Em suas análises, Goldman dissecou os significados do que era ser mulher em seu tempo, e derrubou, a golpes de martelo, o ídolo e figura idílica da esposa, recatada e do lar, para erigir a mulher emancipada de todas as amarras do patriarcado e do capitalismo estatal-religioso.

Sendo assim, não é tão estranho ver militantes anarquistas fazerem uso da psicanálise como ferramenta analítica da sociedade, como Bakunin fez da dialética, Kropotkin da indução-dedução e Goldman da genealogia, pois o que importa aos anarquistas não é a defesa de um método, mas a emancipação da humanidade do autoritarismo, da dominação e exploração.

Foi dessa forma que os/as militantes anarquistas que colaboravam com o jornal Ação Direta trouxeram a psicanálise. O artigo “A igreja e a pornografia ou o fiasco da moral teológica” de Rafael Malagueta[6], publicado em junho de 1949, ressaltava como a Igreja condenava a pornografia e a devassidão em várias publicações, dentre elas no jornal de Chateaubriand. A instituição religiosa se punha, então, como a grande guardiã da moralidade. Mas o autor apontava que a verdadeira pornografia não estava nas páginas de Chateaubriand e outros, mas sim no “regime social em que vivemos, nesta sociedade ignóbil de capitalistas, políticos, militares e sacerdotes, despudorada e hipócrita em que vegetamos”.[7]

Diante da pornográfica desigualdade econômica, a Igreja não fazia nenhuma crítica, muito pelo contrário, ela pedia o silêncio frente à miséria e a neurose que levaram muitos ao suicídio. O autor aponta que, fora o silêncio, a Igreja colaborou com o endurecimento mental mediante uma educação “refreadora dos mais nobres instintos e geradora, por isso mesmo, de devassos, homossexuais, de hipócritas e histéricas”.[8] Colocações muito problemáticas, pois entendia a homossexualidade como um desvio psicopatológico da sexualidade “normal”. Mas é a partir desse ponto que Malagueta chega a Freud trazendo os conceitos de repressão e sublimação. Segundo o autor, a “campanha moralizadora” empreendida pelo clero havia fracassado e este fracasso revelou também a falência da própria moral teológica. “A moral não consiste em cegar os instintos, mananciais de energia, mas canalizá-los para fins socialmente úteis, em sublimá-los, como se exprime Freud”.[9] O autor também traz a dimensão da pornografia associada ao chiste “duvidoso e picante” como formas substitutivas do ato sexual

criados pela imaginação dos que tem fome de sexo, para a satisfação de sua libido. Sem esse substituto, a rebelião dos instintos algemados teria muito mais graves consequências no terreno das neuroses.[10]

Para dar vazão aos instintos sem cair no risco de sérias consequências neuróticas, o autor propõe, como forma de relação sublimatória, o Amor Livre, defendido no artigo como um dos postulados fundamentais do anarquismo. Assim como em muitas das leituras apologéticas, Rafael Malagueta trouxe a psicanálise como um conhecimento que fazia oposição à religião. Mas, diferente daquelas leituras, esta leitura crítica de Freud e a psicanálise serviu para criticar a moral religiosa e para inverter a noção de pornografia dos texto “devassos” de Chatobriand para os padres teólogos, abrindo brechas para a defesa do Amor Livre como forma de relação legítima.

Mas, talvez, a articulação mais bem elaborada entre psicanálise e anarquismo tenha sido feita pela filósofa e militante anarquista Esther Redes nos textos “A Psicanálise moderna e o Anarquismo”, de junho de 1958, “Ética humanitária e ética autoritária” de julho de 1958 e “Psicanálise e Religião”, de janeiro de 1959 do jornal Ação Direta.

No primeiro texto, Esther Redes pontua que por mais que psicanálise e anarquismo possam parecer distantes – o que lembra o início desse próprio texto – as pesquisas feitas pela psicanálise dos anos 1950 comprovaram as teses libertárias que os anarquistas defendiam há muito tempo. Todavia, segundo Redes, nem toda psicanálise confirmava as ideias anarquistas, como por exemplo aquela de seu criador, Sigmund Freud, e seus seguidores mais ortodoxos. Para ela, as produções que mais confluíram com as reflexões libertárias foram desenvolvidas pelo psicanalista Erich Fromm.

Para a filósofa, os pontos de discordância entre Fromm e Freud eram os de aproximação entre a psicanálise e o anarquismo, principalmente as questões acerca do complexo de Édipo, a castração, a virilidade na mulher, as orientações biológica ou cultural e a origem das neuroses. Se para Freud e seus discípulos o problema era o da repressão e do recalque das pulsões libidinais, a posição que Fromm defendia era de que “os fatores conflitivos nas relações humanas [seria a] causa dos desequilíbrios”.[11] Redes ressaltou que Fromm deslocava a questão da libido para a relação entre “o homem”, ou a cultura, ou a natureza, da mesma forma como muitos anarquistas fizeram, como Kropotkin e Reclus.

Uma outra crítica à psicanálise mais ortodoxa dizia respeito à exacerbada valorização à adaptação do sujeito ao capitalismo, colocando que o desequilíbrio se daria pela própria existência desse sistema, que só funciona porque o sujeito é um autômato sem vontade própria. A partir da posição de que a produção de Fromm estaria em consonância com o anarquismo, Redes elabora uma série de perguntas que vão ser respondidas através das citações do psicanalista. Dentre todas as perguntas, ressalto uma: “Em que tipo de sociedade o homem estará livre para edificar sua própria vida e ao mesmo tempo não se sentir inseguro a ponto de entregá-la a uma autoridade, qualquer que seja?”. Para respondê-la, a filósofa recorre ao livro “Psicanálise da sociedade contemporânea”, pontuando de que maneira psicanalista entendia que a mudança deveria ser simultaneamente política, econômica e cultural tanto quanto social e individual. A partir da citação de Fromm, Redes estabelece um corte e uma distinção entre o marxismo e a proposta anarquista de análise e mudança da sociedade.

Os marxistas insistiram na necessidade de mudanças sociais e econômicas e olvidaram a necessidade de uma transformação interior dos seres humanos (...) o homem é uma unidade; seu pensamento, seu sentimento e seu modo de viver estão relacionados. Não pode ter liberdade de pensamento se não tem liberdade emocional e não pode ter liberdade emocional se em seu modo de viver é um ser dependente e sem liberdade em suas relações econômicas e sociais.[12]

O tema da liberdade sempre foi central para a análise anarquista, o que não necessariamente o é para o marxismo, principalmente para a tradição bolchevique leninista. Para o anarquismo, a liberdade não é somente uma condição sócio-histórica, como foi colocado por Bakunin em sua frase que dizia mais ou menos assim: “a minha liberdade pessoal, assim confirmada pela liberdade de todos, estende-se ao infinito”. Para o anarquismo a liberdade é também um conceito analítico, uma ferramenta heurística para se descobrir os meandros da dominação de uma pessoa pela outra, da pessoa com ela mesma e da humanidade com a natureza. Portanto, as descobertas dos processos de dominação ajudariam a compreender como construir relações a partir da autonomia e do apoio mútuo.

À medida em que os homens vão se integrando em grupos cada vez mais amplos, maiores se vão tornando as áreas de liberdade. E somente quando a humanidade se libertar de todos os laços incestuosos com a família, classe social, Estado, raça, nação, igreja, será atingido o ideal da irmandade entre os homens.[13]

Para Esther Redes, a única filosofia social que aborda essas questões em sua totalidade seria o anarquismo. Da mesma forma que Fromm faz uso da liberdade para analisar o autoritarismo e suas consequências adoecedoras, o anarquismo reconhece “a necessidade de quebrar o laço incestuoso com qualquer tipo de autoridade, sentindo que a felicidade humana baseia-se no amor e na fraternidade entre os homens”. Redes finaliza o texto em um tom sério e preocupado.

</strong>Como bem diz Fromm, a humanidade se encontra numa encruzilhada. Seguirá no caminho do robotismo (com suas variedades capitalista ou comunista) que a levará fatalmente à autodestruição ou produzir-se-á uma transformação radical da sociedade no sentido do socialismo humanista. Porém, saberão os povos eleger o caminha certo, se não forem esclarecidos e orientados pela filosofia ácrata?[14]</strong>

Tal orientação não dizia respeito, apenas, a uma teoria que esclarecesse os processos autoritários e exploradores, mas seria também, e inclusive, uma orientação ética. O que nos remete ao segundo texto de Redes. Nele, a autora pontua que grande parte da história da humanidade foi norteada pela ética autoritária, excetuando apenas alguns momentos, como no período do Renascimento e no século XIX. Foi justamente por esse motivo que as sociedades se dirigiram ao totalitarismo no século XX. Neste sentido, visões equivocadas sobre o ser humano foram criadas a partir das teorias de Darwin, acerca da sobrevivência do mais forte, e, mais recentemente, de Freud, sobre a preponderância da pulsão de morte em detrimento da pulsão de vida.

Diante desse cenário, perspectivas calvinistas da maldade natural dos seres humanos se fortalecem ao afirmar que somente uma ética autoritária seria capaz de conter a natureza pecaminosa do ser humano.

O resultado é o que estamos presenciando: uma humanidade automatizada, que vive movida por preceitos inconscientes, cuja vida não tem outra expressão a não ser matar o tempo que se torna cargas insuportáveis.[15]

Em oposição a essa tendência, Redes defende a ética humanista, que parte do princípio que o ser humano não é nem bom nem mau, mas que pela sua procura pelo bem-estar mental, busca trilhar o caminho do bem. Pontua que a maldade é construída a partir de uma educação em que a liberdade foi suprimida. Portanto, o cerne do problema da submissão estaria na educação.

Enquanto os indivíduos continuarem crendo que o seu objetivo está fora deles, no céu, no dever, no êxito, na opinião pública, no senso comum, não poderão encontrar o caminho da humanização.[16]

Mais uma vez, Redes traz o conceito de liberdade como ferramenta heurística e pontua que a saúde mental estará correndo perigo enquanto a humanidade estiver dividida em dois grupos: um que acredita em Deus e no Estado como reguladores morais e outro que parte da premissa da morte de Deus e que tudo pode. Diferente da posição relativista cultural, a autora coloca que os seres humanos só poderão se realizar plenamente num ambiente de respeito mútuo, onde as pessoas poderão desenvolver todas as suas potencialidades, alcançando, segundo ela, a condição de felicidade, dialogando diretamente com as propostas anarquistas de educação. Para tanto, cada um deve ter fé em si mesmo e na humanidade e não em Deus, no Estado ou no Capital.

Trazendo, de novo, a questão da religião, Esther Redes escreveu “Psicanálise e Religião”. Este foi um artigo em que a anarquista discute o livro de Fromm de mesmo título do texto. De acordo com ela, neste livro, a psicanálise humanista desenvolvida por Erich Fromm está em acordo de forma estrita ao anarquismo. Justamente por isso ela viu a necessidade de esclarecer tais coincidências, fazendo uma resenha do livro. Assim, ela apresenta a tese central de Fromm.

[O] livro consiste em demonstrar que a psicanálise e religião não são coisas contraditórias mas sim campos diferentes do conhecimento humano. Ambas deveriam trabalhar no sentido de dar ao homem uma situação emocional básica que lhe permitisse desenvolver o tema de todas as religiões: ama teu semelhante como a ti próprio.[17]

A anarquisra aborda as afinidades e discordâncias entre Freud e Fromm no que diz respeito à teoria do incesto e da pulsão sexual, respectivamente. Diferente de Freud, que entendia a religião como uma forma de reação infantil do sujeito de se subjugar a uma autoridade sobrenatural frente à impotência e insegurança perante o mundo, Fromm entendia a religião como “qualquer sistema de pensamento e ação seguido por um grupo e capaz de dar ao indivíduo uma linha de orientação e um objeto de devoção”. O desligamento do sujeito da Natureza, provocou um descontentamento que o sujeito busca religar, para que possa, assim, viver em harmonia com a Natureza e desenvolver plenamente suas potencialidades.

Para Fromm, segundo Redes, todas as religiões, no início, buscavam integrar o ser humano à Natureza, mas quando algumas delas se secularizaram e se tornaram igrejas, converteram-se em dogmáticas. Assim, as religiões foram divididas em dois grupos: autoritárias e humanistas. Neste contexto, a psicanálise da época de Fromm estava a serviço de dois objetivos, um que era adaptativo, consonante às religiões autoritárias que separavam a humanidade da natureza, e outro que levava o sujeito

a conhecer a verdade progressivamente, a ser independente e livre, a constituir um fim em si mesmo e não um meio para outras pessoas. Como bem diz Fromm a saúde mental não pode ser separada do básico problema humano: independência, integridade e capacidade de amar.[18]

Pelas lentes de Esther Redes, Fromm argumentava que se deveria acabar com as religiões autoritárias, pois nelas Deus seria a potência dos seres humanos. Estes se vêem empobrecidos de potência justamente porque foi ela transferida para Deus, e o Estado ajudaria a explorar esta relação, que foi interpretada como o tabú do incesto. Este empobrecimento do sujeito o conduziria ao mal e ao medo

Mau porque despreza a si mesmo e ao seu semelhante e está cheio de sentimentos de culpa que aparecem na análise com desejos conscientes ou inconscientes de punição. Afirma ainda que as religiões autoritárias predominam porque, nas sociedades governadas por uma minoria política, o homem vive impregnado de medo.[19]

A filósofa termina o texto com uma citação de Fromm sobre o deslocamento do problema de Deus para os seres humanos, localizando a questão da idolatria do Estado, da máquina, do êxito e da Igreja. Aqui vemos, portanto, o papel central da educação frente à desalienação do sujeito da religião autoritária e da construção de sua autonomia. Desse modo, o último texto que trago relacionando psicanálise e anarquismo também se debruça sobre a educação. Intitulado “Pedagogia libertária, o problema do aluno indisciplinado”, publicado em outubro de 1959, não foi assinado por ninguém. Acredito que tenha sido escrito por Redes, em detrimento da forma e conteúdo, mas este é apenas meu palpite.

Especulações à parte, o texto aborda a problemática da indisciplina na educação e começa a problematizar a própria noção de disciplina. Estabelecer o que seria disciplina seria mais fácil se as pessoas fossem padronizadas, semelhantes nas reações e comportamentos, mas, uma vez que cada pessoa é um ser único, fica difícil estabelecer uma única norma de conduta e entender que tudo o que foge da norma seria considerado indisciplina.

No entanto, o/a articulista não abre mão da ideia de disciplina. Considera que ela deve vir de forma “natural” e que não seja imposta desde fora do sujeito. A disciplina, portanto, seria algo que viria de dentro do dele, tendo por finalidade facilitar o trabalho em conjunto. No contexto da sala de aula, esta disciplina interna do estudante emergiria se a relação com o professor fosse satisfatória e estas seriam as condições ideais para o desenvolvimento da disciplina.

Nesse momento, o texto traz uma série de termos da psicanálise para tratar de sujeitos que não conseguiriam desenvolver essa auto-disciplina.

Quanto ao caso dos inadaptados socialmente, desajustados em casa, com características neuróticas e escolhem a Escola para dar expansão às suas energias recalcadas, o caso é mais sério.[20]

Segundo o/a articulista, para lidar com esses estudantes, o/a educador/a deveria ter uma atitude compreensiva e uma grande capacidade de amar, tendo em vista que, geralmente, essas crianças não teriam essas relações afetivas em casa. Portanto, o/a articulista não considera que características neuróticas sejam naturais aos sujeitos, mas sim fruto de um ambiente familiar e social hostil que impoẽm às crianças uma agressividade que se torna recalcada e que é trazida à tona no ambiente escolar.

O texto continua apontando a importância do afeto na relação entre professor e estudantes. Palavras como “aprovação”, “simpatia” e “estímulo” foram empregadas com o intuito de tornar as crianças “confiantes em si mesmas e, portanto, na humanidade”. É justamente aqui que a psicanálise entra como forma de fortalecimento dos sujeitos em si mesmos.

No século atual, com o poder crescente da técnica, tem-se dado valor desmedido à disciplina, à autoridade, à militarização e, consequência disto, os homens estão cada vez mais se transformando em máquinas padronizadas e perdendo completamente a dignidade e o respeito de si próprios.

</strong>Felizmente, a psicologia e a psicanálise estão remontando aos velhos estudos da personalidade humana e tentando demonstrar à humanidade quanto é intrincada a psiquê do homem e como se tem desrespeitado o indivíduo com toda sua carga de aptidões próprias.[21]</strong>

Desenlace no laço

O encontro, estranhamente familiar, entre anarquismo e psicanálise tem uma história, um passado esquecido ou recalcado, um passado que não passou, pois permanece latente nas análises acerca do poder e nas práticas de cada um. Anarquismo e psicanálise perscrutam, escarafuncham e esquadrinham os meandros do poder nas relações sociais e subjetivas. Ora se fundem, alienadamente, a partir de leituras apologéticas e laudatórias – Freud, o grande cientista, ora se separam de forma igualmente alienada – Freud e a psicanálise nada têm a ver com o anarquismo e a liberdade. Mas há uma terceira relação, mais frutífera e complexa, que não se integra totalmente e que não se separa completamente. Nessa perspectiva, a psicanálise é conhecimento nada dispensável para construir um projeto de emancipação radical, de desenvolvimento pleno das potencialidades de cada sujeito singular, enlaçado aos/às camaradas de trabalho, território e militância.

No entanto, acredito que não seja só no campo teórico que a psicanálise e o anarquismo se encontram. Segundo as pesquisas de Piotr Kropotkin e David Graeber, as sociedades humanas possuem duas tendências: uma que seria competitiva e que estimula o individualismo e outra cooperativa, que estimula o apoio mútuo entre os indivíduos do mesmo grupo e até mesmo entre grupos diferentes.

O comunismo é a manifestação latente dessa segunda tendência. Portanto, ele não seria uma fase posterior ao Estado Popular, mas está difundido de forma difusa no tecido social. Para Kropotkin, esta seria uma tendência natural dos seres gregários, para Graeber, é uma característica cultural verificável em vários povos, inclusive o nosso. O trabalho do anarquista seria, portanto, apontar e reforçar essa tendência comunista libertária, minando as forças da tendência competitiva, individualista e autoritária.

Dessa maneira, as tantas experiências de psicanálise nas praças que vemos hoje (praça XV em Florianópolis, praça da Alfândega em Porto Alegre, praça Roosevelt em São Paulo…), os tantos grupos e coletivos de psicanalistas e psicólogos/as que emergem nas e das periferias e que buscam trabalhar para e pela margem (Clínica Periférica de Psicanálise, Fios Coletivos, Perifanálise, Margem Psicanálise, Oré Coletivo Solidário…), nos revelam a potência da autogestão, do trabalho colaborativo e das formas de organizações horizontais e de ação direta. Nessas experiências vemos a psicanálise e o anarquismo se reencontrando não no discurso, mas na prática. É tarefa dos/as militantes anarquistas fortalecerem essa tendência do campo psicanalítico, que busca a emancipação e não a adaptação, que se preocupa em cuidar das margens e não fortalecer o centro, que escuta o/a subalterno/a e não dá escuta, mas combate, ao Estado e ao Capital.

Referências Bibliográficas

BAKUNIN, Mikhail. Deus e o Estado. São Paulo: Cortez, 1988.

COLOMBO, Eduardo. Anarquismo, obrigação social e dever de obediência. São Paulo: Imaginário, Instituto de Estudos Libertários, 2003.

_________________. Análise do Estado. O Estado como paradigma de Poder. São Paulo: Imaginário, 2001.

_________________. Democracia e Poder, A escamoteação da vontade. São Paulo: Imaginário, Expressão & Arte, 2011.

COLOMBO, Eduardo e outros. Políticas do medo. São Paulo: Intermezzo, 2016.</strong>

GOLDMAN, Emma. indivíduo, a sociedade e o Estado, e outros ensaios, O. São Paulo: hedra, 2007.

GRAEBER, David. Fragmentos de uma antropologia anarquista. Porto Alegre: Editora Deriva, 2011.

GROSS, Otto. Por uma psicanálise revolucionária: ensaios. São Paulo: Annablume, 2017.

KROPOTKIN, Piotr. Apoio mútuo, um fator evolutivo. São Paulo: Biblioteca Terra Livre, 2021.

Fontes

Ação Direta (1946 – 1959): semanário anarquista, Rio de Janeiro, diretor: José Oiticica, Sônia Oiticica, Manuel Perez, Ideal Perez.

[1] PEREZ, Ideal. Ciência e Religião. Ação Direta, ano I, n. 28, 30 de dezembro de 1946, p. 2.

[2] SALGUEIRO, Osvaldo. Anarquismo, espiritismo e bom senso. Ação Direta, ano VII, n. 86, março, abril e maio de 1953, p. 2 e 3.

[3] SÁ, Antonio de. Salvè “Maquis” da Palestina. Ação Direta, ano II, n. 40, 30 de agosto de 1947, p.1.

[4] SOUCHY, Augustin. Existencialismo e liberdade. Ação Direta, ano IV, n. 62, 27 de dezembro de 1949, p. 3.

[5] SOROKIM, Piritim. Cuidado com os que governam. Ação Direta, ano XXI, n. 120, agosto e setembro de 1957.

[6] Nome bem sugestivo pelo teor do texto e que me parece ser, justamente, um pseudônimo.

[7] MALAGUERRA, Rafael. A igreja e a pornografia ou o fiasco da moral teológica. Ação Direta, ano IV, n. 56, 21 de junho de 1949, p. 1 e 2.

[8] Idem.

[9] Ibidem.

[10] Ibidem.

[11] REDES, Esther. Psicanálise moderna e o anarquismo. Ação Direta, ano XIII, n. 128, julho de 1958, p. 2.

[12] Idem.

[13] Ibidem.

[14] Ibidem.

[15] REDES, Esther. Ética humanitária e ética autoritária. Ação Direta, ano XIII, n. 129, setembro de 1958, p. 2.

[16] Idem.

[17] REDES, Esther. Psicanálise e Religião. Ação Direta, ano XIII, n. 132, janeiro de 1959, p. 2.

[18] Idem.

[19] Ibidem.

[20] ANÔNIMO. Pedagogia libertária, o problema do aluno indisciplinado. Ação Direta, ano XIV, n. 136, outubro de 1959, p. 2.

[21] Idem.


Texto originalmente publicado na Revista de Psicanálise Periférica, Volume 1, Número 1, 2024 Novembro (Psicanálise Periférica: pela inauguração de uma psicanálise brasileira.) A revista é voltada para a publicação de materiais escritos produzidos por pessoas psicanalistas que atuam e/ou residem em territórios periféricos, bem como de pessoas que têm como foco em suas atividades a promoção de saúde mental nesses territórios; seja pela via da arte, do trabalho ou da educação. Sempre orientados pela afirmação de um pensamento relegado à margem e que nos possibilite engendrar a popularização, a democratização e a ressignificação da psicanálise; seguimos. No intento de ocupar o debate entre pesquisadores, entusiastas e críticos da teoria psicanalítica.