Warlaam Tcherkesoff
Sejamos Justos
Carta aberta a W. Liebknecht
Senhor,
Os vossos dois artigos (Justice, números de 15 e 29 de agosto de 1896), sobre o Congresso Socialista de Londes, ocupam-se muito dos anarquistas. De tudo o que afirmais, na vossa condição de conhecedor do nosso partido, eu retenho que «os anarquistas não têm mais direito de reunir num congresso socialista do que o csar ou o Rothschild», que não há «nada em comum entre a anarquia e o socialismo», que «os anarquistas são acariciados (petted) pela burguesia do mundo civilizado», que são vossos inimigos, que vos caluniam… e também por isso, fazeis um enérgico apelo aos vossos amigos, dizendo: «Devemos combater o inimigo! Não deixemos o inimigo penetrar no nosso exército!»
Estais indignado!… e tendes razão, se os anarquistas são tais monstros. Apenas não consigo compreender a quem dirigis os vossos epítetos. Nos vossos artigos, falais de Stirner e do seu pupilo, o vosso colega Eugène Richter. Asseguro-vos, senhor, que esses personagens e as suas obras são estranhos ao nosso partido. Vós, que tão bem conheceis os anarquistas «no Velho Mundo e no Novo Novo», podeis indicar ao público que fração da anarquia representa o vosso colega Richter no parlamento? E desde quando os anarquistas adotaram a tática mesquinha do legalismo parlamentar? E depois, poderíeis indicar-me em que jornal anarquista o vosso colega colaborou? Sobretudo, senhor, ficar-vos-ei grato se me indicardes obras de Stirner e do seu pupilo, o vosso colega Richter, nas quais eles desenvolveram o comunismo autónomo e revolucionário, vale dizer, a anarquia.
Nada disso indicareis. Stirner, individualista, e Richter, «destrutor do socialismo», são por vós mencionados apenas para demonstrar aos vossos amigos que os anarquistas não são socialistas. Talvez para os vossos amigos isso pareça claro, mas eu temo, senhor, que gente de boa fé achá os vossos argumentos um tanto ilógicos. De acordo com o vosso método de argumentação, eu terei o direito de dizer: «Liebknecht e os social-democratas combatem sempre os comunistas-anarquistas; por outro lado, estes últimos são perseguidos por Crispi e outros governos; ergo Liebknecht e Crispi, os governos opressores e a social-democracia, fazem o mesmo partido.» — Isso é uma monstruosidade!, direis vós. Sim, monstruosidade, mas não mais do que a vossa própria argumentação; apenas imito o vosso método…
* * *
Pretendeis mostrar que os anarquistas não são socialistas? Existe um método bem simples, a demonstração: basta comparar as fórmulas e as profissões de fé dos verdadeiros socialistas com as dos anarquistas. Assim quereis? Tomemos os comunistas da grande Revolução, os socialistas de 1848, a Associação Internacional, e comparemos com as profissões de fé dos anarquistas; e adicionemos também o vosso programa.
Bem sabeis, senhor, que a Convenção, contra a qual Babeuf, Buonarotti e os «Iguais» conspiraram, proclamou toda a espécie de liberdades políticas, e que os edifícios nacionais carregam a divisa «Liberdade, Igualdade, Fraternidade.» Mas o povo permanecia no mesmo estado de miséria. Onde estava a sua causa? perguntaram as pessoas honestas. «A causa», disse Buonarotti, «encontra-se na desigualdade das fortunas… na propriedade individual.» Foi para obter igualdade económica que os Iguais conspiraram contra a Convenção.
«Não há liberdade — lemos na proclamação de Blanqui, em 1848 — para quem não tem pão!
Não há igualdade, quando a opulência se estende ao lado da miséria!
Não há fraternidade quando a mulher do povo se arrasta faminta com as suas crianças às portas dos ricos!
A tirania do capital é mais implacável que a do sabre e do incensário; é preciso quebrá-la.
Basta de fórmulas estéreis!»
«A emancipação económica da classe operária é o fim principal, ao qual deve estar subordinado todo o movimento político», adota o primeiro Congresso da Internacional em 1866.
* * *
Assim vêdes, senhor, que a igualdade económica, a emancipação económica, «quebrar a tirania do capital», formam a base das reivindicações socialistas; que os direitos políticos sem a igualdade económica são «fórmulas estéreis» para os socialistas revolucionários. E vós, na condição de chefe supremo do socialismo «científico», como formulais as vossas reivindicações?
No vosso artigo: «The Programme of German Socialism» (Forum Library, New-York, April 1895, page 28), dizeis:
«O que exigimos?
Liberdade absoluta de imprensa, liberdade absoluta de religião, sufrágio universal para todos os orgãos representativos, para todos os serviços públicos, quer nacionais, quer comunais; educação nacional, as escolas abertas a todos, a educação e a instrução acessíveis a todos com a mesma facilidade; abolição do exército permanente e organização duma milícia nacional, de modo que cada cidadão seja soldado, e cada soldado cidadão; um tribunal internacional de arbitragem entre diferentes Estados; direitos iguais para homens e mulheres; medidas de proteção da classe operária (limitação das horas de trabalho, regulamentos sanitários, etc.).
Estas são reformas já cumpridas ou em vias de se realizar nos países avançados, e estão plenamente de acordo com a democracia.
Todas essas liberdades ou abolições são maravilhosas, e não seremos nós, os anarquistas, a opor-lhes. É justamente para garantir à humanidade a gozo completo da liberdade que queremos destruir o Estado que vos é tão caro. Mas, nas vossas reivindicações, não se encontra uma palavra sobre a «igualdade económica», a «emancipação económica», proclamadas pelos socialistas. De modo que a vossa fórmula repete a da Convenção, qualificada pelos socialistas como «fórmula estéril».
E os anarquistas?
Enquanto os vossos mui leais amigos, Will Thorne e D. Aveling, se empenharam em meter os anarquistas porta fora do Congresso com o concurso de agentes da polícia, os anarquistas tiveram a sua conferência e redigiram entre outras esta declaração:
«A Conferência Anti-parlamentar e Anarquista, considerando que a sujeição das classes operárias às classes dominantes se baseia na exploração e na submissão económica dos trabalhadores, e que esta exploração económica é a fonte de todas as iniquidades e da opressão política, moral e intelectual, declara que o fim principal do movimento operário deve ser a emancipação económica e social, à qual toda a ação política deve estar subordinada.
Considerando que a tática legal e parlamentar não é a única forma de ação política, a Conferência declara-se contra todas as tentativas de reduzir o movimento socialista a um movimento meramente eleitoral e legalista, o que só poderá criar divisão entre os trabalhadores
Considerando, por fim, que é pela luta revolucionária que, em todos os tempos, os povos conseguem melhorar as suas condições económicas e sociais, a Conferência declara-se pela ação política revolucionária contra o Estado, que é a encarnação de todas as injustiças económicas, políticas e sociais.»
Como homem honesto, reconhecereis que nesta resolução eles repetem as reivindicações de Babeuf, de Blanqui, da Internacional. Apenas alargaram as reivindicações desses bravos predecessores. Sendo assim, porque é que vós, que tão bem os conheceis, declarais que os anarquistas são inimigos do socialismo? Estou bem desejoso de conhecer as vossas razões.
Não menos desejoso estou de aprender de vós quem, entre os anarquistas conhecidos, é que caluniou o vosso partido, os vossos amigos ou vós próprios? Foi Bakunin, com quem em tempos tivestes um caso de honra? Nos vossos artigos, apenas nomeais E. Richter, que é tão anarquista quanto Crispi é social-democrata. Resta-nos examinar o vosso caso com Bakunin. Talvez seja ele quem vos caluniou.
Na «Mémoire» apresentada pela Federação Jurassiana da Associação Internacional dos Trabalhadores, lemos:
Não podemos deixar passar em silêncio, a propósito do Congresso da Basileia (1869), um incidente pessoal de grande importância. Bakunin soubera que Liebknecht, ao falar de si, o fez passar por agente do governo russo(…) O júri foi composto por dez membros(…) de Paepe, Palix, Sentinon, Fritz Robert, Moritz Hess, Eccarius e outros. O júri declarou em unanimidade que Liebknecht agira mal ao repetir infames calúnias. Liebknecht, estendendo a mão a Bakunin, declarou que o tinha por homem honesto e bom revolucionário. «Eu enganei-me a vosso respeito», disse ele. «Contribui para propagar acusações caluniosas, e devo-vos uma reparação.» (P. 84).
Como reparação, encarregastes-vos de publicar no vosso jornal um artigo de retificação. «Bakunin — continua a Mémoire — entregou-lhe em mãos o artigo. O que fez Liebknecht? Nunca o publicou!» (P. 85)
Dizeis, senhor, que os anarquistas caluniam os social-democratas, «atirando-lhes lama»; então é necessário supor que em 1869 Liebknecht, o anarquista, caluniava Bakunin, o social-democrata!… Vós que sois um homem honesto e imparcial, explicai-me esta flagrante contradição.
Uma última questão, senhor. Que significa a vossa frase «Em todos os países, os anarquistas são acariciados (petted) pela burguesia»? Somos «acariciados» individualmente pelos burgueses isolados, ou somos «acariciados» como partido pela organização capitalista do Estado, esse defensor da burguesia? É evidente que falais de nós como de um partido «acariciado» pela burguesia como classe e pelo seu Estado. E vós pudestes escrever essas linhas? vós, um jornalista, um homem político?
Como, senhor! não sabeis que as prisões e as masmorras de Itália, França, Espanha, Portugal estão cheias de anarquistas? Que mesmo em Inglaterra e nos Estados Unidos há anarquistas nos trabalhos forçados? E na Alemanha, onde a reação estúpida vos persegue e aos vossos amigos, não foram os anarquistas Landauer, D. Gumploviez, Grunan e outros que sofreram 18 meses de reclusão? Tomai, senhor, qualquer um de entre os meus amigos anarquistas e vereis que todos foram «acariciados» com prisões e deportações: Cipriani dezasseis anos, Louise Michel catorze anos, Borda cinco anos, Kropotkin cinco anos, Martin cinco anos, Merlino, Malato, Faure, Grave, Pouget, Reclus, Malatesta, Nicoll, todos, absolutamente todos, sofreram longos anos de aprisionamento, deportação, exílio… e chamais a isso ser «acariciado»!
Talvez não soubésseis nada disto? Admitamos. Mas sabeis perfeitamente que, durante estes últimos vinte anos, a pena de morte para casos políticos, nos países civilizados, foi aplicada somente a anarquistas.
Sabeis da execução de Reinsdorf e de Caserio, pois, se não vós pessoalmente, pelo menos o vosso jornal excitou contra eles o ódio do governo e da burguesia.
Conheceis muito bem as execuções de Parsons, Spies e os outros anarquistas de Chicago, de Vaillant, Pallas, Henry…
Sabeis perfeitamente que é o partido anarquista que é perseguido e martirizado…
E pudestes escrever que os anarquistas são «acariciados» pela burguesia?… que as pessoas honestas, que os bravos operários alemães em cujo nome gostais de falar, julguem os vossos procedimentos literários.
W. Tcherkesoff