Venomous butterfly publications, 2004. Tradução de raividições. Revisado por edições insurrectas, verão 2021
Wolfi Landstreicher
Pensamentos Bárbaros
por uma crítica revolucionária da civilização
O que é a crítica revolucionária?
O que significa uma crítica revolucionária da civilização no campo das ideias?
Estou convencido de que um desafio revolucionário à atual ordem social deve necessariamente ser um desafio aos últimos 10.000 anos de desenvolvimento institucional que a criaram. Resumindo, a crítica revolucionária deve apontar à própria civilização. Mas o que significa isto, concretamente?
Em todos os lados do denominado debate entre anarquistas sobre civilização, os mal-entendidos parecem ser a única constante. Isto não surpreende. Estes conceitos são difíceis, especialmente em termos da sua aplicação prática na luta social. De modo a ganhar alguma clareza, penso que é necessário analisar algumas questões: O que é a crítica revolucionária? O que é a civilização? O que significa uma critica revolucionária da civilização no domínio das ideias? O que significaria uma crítica revolucionária da civilização a um nível prático? De cada uma destas questões surgem milhares de outras, especialmente quando se tenta aplicá-las a uma prática revolucionária. Mas isto devia assustar apenas aqueles que colocaram a sua fé numa ideologia e que se confinaram a uma identidade supostamente “revolucionária”. Para o resto de nós, tal questionamento deve ser um bom desafio, uma oportunidade para nos chegarmos à frente, uma aposta a ser jogada.
O que é a crítica revolucionária?
A crítica revolucionária é uma crítica que pretende desafiar a sociedade atual nas suas raízes, de modo a criar uma ruptura com o que esta é, e proporcionar uma transformação social radical. O que mais pode significar “revolucionária”? Existem aqui muitas implicações.
Primeiro de tudo, a crítica revolucionária é prática. Procura um método para se trabalhar no exterior, para desafiar, na prática, a ordem social atual. Em outras palavras, é parte de uma luta real contra o mundo que existe.
Por esta razão, também começa do presente. Um desafio revolucionário ao presente se serve do passado e do futuro, mas não será definido por estes. Em vez disso, eles são ferramentas para se usar no ataque contra a presente ordem social. A crítica revolucionária é uma prática que se esforça por abarcar imediatamente tudo, aqui e agora. Isso envolve uma contínua e incisiva análise do Estado, das relações sociais capitalistas, da luta de classes e do desenvolvimento tecnológico, tal como os conhecemos.
Visto que a crítica revolucionária tem como objectivo uma ruptura com a ordem atual, ela começa com um ataque contra todas as instituições desta sociedade. Investiga as suas relações fundamentais umas com as outras e o que essas relações significam. Deste modo, não está tão interessada nos seus excessos ou no modo pelo qual eles possam contradizer os valores que proclamam, mas em como, no seu melhor, mesmo que atinjam os seus proclamados valores, falham na satisfação das necessidades básicas e dos desejos dos seres humanos. Esta sociedade é fundamentalmente anti-vida, anti-humana e anti-individual, simplesmente porque a sua própria reprodução requer a subjugação da existência humana às suas necessidades. A crítica revolucionária começa nesta compreensão.
A crítica revolucionária também rejeita em absoluto a crítica moral. Este é capaz de ser o aspecto mais importante no meu argumento. Na prática, a revolução é amoral. Mesmo que por vezes, nas nossas lutas, alguns usem a retórica da “justiça” e dos “direitos”, a nossa batalha revolucionária não tem nada a ver com justiça, direitos ou qualquer outro valor externo a nós. Queremos destruir esta realidade não porque é injusta, má ou até “não livre”, mas porque queremos as nossas vidas de volta! A moralidade pertence a esta ordem social. Tem sido usada uma e outra vez para nos manter no nosso lugar – sempre apoiada pela força das armas. A moralidade serve perfeitamente para manter o estabelecido, porque o seu objetivo final é sempre oprimir. Visto que queremos destruir isto, devemos também destruir a moralidade – especialmente aquela que existe entre nós – para que possamos atacar esta sociedade sem limitações.
Ao mesmo tempo, a crítica revolucionária não rejeita princípios.[1] Em vez disso, nos ajuda a determinar um modo com princípios para agir concretamente no nosso dia a dia contra a ordem dominante. A falta de uma crítica revolucionária pode nos levar a entender experiências específicas de dominação, exploração e opressão como sendo incidentes isolados, e a procurar soluções imediatas através de quaisquer meios necessários. Uma crítica revolucionária pode expor as relações entre estas experiências e mostrar como as “soluções” que as instituições oferecem apenas servem para aumentar o seu poder sobre as nossas vidas. Quando tomamos a decisão de tomar as nossas vidas de volta, em revolta contra a ordem social, estamos a escolher um modo de combater o mundo. Não faz sentido para nós usar outros meios que não aqueles que envolvam o objetivo de tomar as nossas vidas de volta. Isto é verdade tanto a nível pessoal, como a nível da revolução social. De cada vez que nos comprometemos com o poder, essa parte da nossa vida se perde de nós. Existem tantos aspectos das nossas vidas em que somos obrigados a nos comprometer contra a nossa vontade. Nas áreas de luta, onde temos escolha, uma crítica revolucionária anarquista nos levará a recusar o compromisso e a manter a nossa autonomia.
O que é civilização?
“Civilização” é uma palavra confusa. Os primeiros exploradores europeus muitas vezes associavam fortemente civilização com o que era “bom”. Por isso, quando encontravam pessoas não civilizadas que eram honestas e generosas, por vezes descreviam-nas como “mais civilizadas” que os europeus. Atualmente, a ideia de civilização é frequentemente associada a bom vinho, bonitas criações humanas e gostos refinados, mas na realidade as características partilhadas por todas as civilizações são, de longe, menos agradáveis: dominação, genocídio e destruição ambiental, para nomear algumas.
Um outro foco de confusão é o de que muitas pessoas concebem a “civilização” como uma entidade única que se desenvolveu ao longo do tempo. Esta concepção tem a sua origem no mito do Progresso, através do qual a civilização moderna ocidental, que agora domina o mundo, é justificada e idealizada. Este mito assume que a humanidade desenvolveu um caminho único e razoavelmente direito, que conduz a onde estamos agora. Na verdade, civilizações emergiram em vários locais diferentes, sem ligações e sem seguirem o mesmo caminho. A civilização ocidental remonta ao “Crescente Fértil”, que é referido como o “berço da civilização”. Mas as civilizações Chinesas, Japonesas, Incas, Maias e Aztecas, para nomear algumas, não têm nenhuma ligação a este “berço”. A ascensão da própria civilização ocidental não tem sido um percurso harmonioso. Pelo contrário, ela é o cruzamento, a convergência e a separação[2] de diversos caminhos, algumas vezes através da negociação e muito mais frequentemente através do conflito. Por isso, existiram várias civilizações ao longo da história. A convergência de uma série de fatores históricos permitiu à civilização europeia levar a cabo uma conquista que agora se expandiu por todo o globo. Mas a ideia de uma única civilização que se desenvolveu através de um único caminho faz parte da ideologia do Progresso, e uma crítica revolucionária à civilização deve ter cuidado e evitar esta armadilha, porque pode facilmente levar a uma perspectiva que é simplesmente o reverso da concepção de Progresso, em vez de a uma rejeição deste mito. Tal reverso só pode conduzir a um apelo de regresso a um começo imaginado, que é ele próprio um mito. Uma crítica revolucionária da civilização precisa rejeitar a mistificação inerente à ideia de Progresso, não de criar um contra-mito baseado num juízo moral do Progresso.
Embora a ideia de uma única civilização seja falsa, existem algumas características básicas que foram partilhadas por todas as civilizações. Estas podem ser consideradas como qualidades que definem a civilização. Podem providenciar um entendimento básico que se torna útil no entendimento do que pode ser uma crítica revolucionária da civilização.
Civilização deriva da palavra latina civis, que significa habitantes de uma cidade. Assim, civilização é um modo de vida baseado no ato de habitar uma cidade – habitando em áreas de grande densidade populacional, separadas das áreas onde esta população obtém o seu sustento. Uma crítica revolucionária da civilização iria, então, no sentido de examinar as relações sociais que criam e são criadas pelas cidades.
Mas a existência do que aparenta ser uma cidade não é suficiente para definir civilização. Vamos então considerar o que aconteceu quando surgiram a primeiras civilizações. É geralmente aceito que a primeira civilização se começou a desenvolver há 8 ou 10 mil anos atrás. Mas o que se começou a desenvolver realmente? As provas que temos indicam que certas especializações se começaram a consolidar num número de instituições sociais interligadas: o Estado, a propriedade, a família, a religião, a lei, o trabalho (enquanto atividade separada da vida) etc. Este processo aconteceu através da alienação da capacidade das pessoas de criarem, individual e colectivamente, as suas próprias vidas, segundo a sua vontade. Esta criatividade alienada cristalizou-se como poder e riqueza concentrados, centralizados nas instituições da sociedade. Fundadas na espoliação da maioria, as instituições são a representação das relações de classe. Com a emergência deste quadro institucional, a sociedade deixa de ser uma rede de relações entre indivíduos de modo a alcançarem as suas necessidades e desejos, e em vez disso torna-se uma rede de relações predeterminadas e institucionalizadas, que estão acima das pessoas e na qual estas se devem inserir. Assim, deixam de desenvolver conscientemente técnicas em conjunto, que vão ao encontro das suas necessidades e desejos. Em vez disso, são desenvolvidos sistemas tecnológicos com o objetivo de reproduzir a ordem social institucional, que é em si mesma uma tecnologia burocrática para mediar as relações sociais. As necessidades e desejos dos indivíduos são subordinados a este quadro, e os próprios indivíduos tornam-se peças na máquina social. A sua sobrevivência torna-se dependente desta máquina social, encerrando-os num processo de servidão que pode apenas ser quebrado através de uma ruptura radical com a ordem social, uma reviravolta destrutiva das relações sociais existentes, abrindo a possibilidade de criar uma nova vida em conjunto.
Quando falo de civilização, refiro-me a esta rede de instituições que domina as nossas vidas.
O que significa uma crítica revolucionária da civilização no campo das ideias?
Se a civilização é a rede de instituições que definem e dominam as nossas vidas, então, em um nível teórico, uma crítica revolucionária à civilização é uma análise da natureza dessas instituições. Examina o estado, a economia e os sistemas tecnológicos que desenvolvem para controlar as nossas vidas. Examina o aumento da precariedade da nossa existência a todos os níveis. É uma análise de classes apontada à destruição desta sociedade e, por isso, o seu fundamento é, em primeiro lugar, as nossas vidas neste mundo, aqui e agora.
Infelizmente, muito do que se apresenta atualmente como uma crítica à civilização falha em ser revolucionária, porque escolhe uma base que não aquela do nosso próprio confronto com a realidade social que nos está a roubar as vidas, e o nosso desejo para recuperar as nossas vidas. Estas outras bases podem parecer que providenciam um modelo para uma futura sociedade não-civilizada ou para atividades atuais; ou pode parecer que providenciam uma base moral sólida sobre a qual ficar. Mas em qualquer dos casos, tais bases não podem servir uma crítica revolucionária. Vamos olhar para algumas destas ideias.
De um ponto de vista revolucionário, o biocentrismo é completamente inútil. É uma perspectiva moral logo na sua raiz. Começa a partir da Vida como uma abstração que está acima de nós e a qual devemos servir. Embora por vezes seja apresentado com uma base científica (na biologia ecológica), é essencialmente uma perspectiva física/moral. O biocentrismo é sempre o oposto do antropocentrismo, supostamente o “pensamento centrado no humano”. O antropocentrismo é, na realidade, apenas um outro nome para humanismo. Humanismo é a ideologia que se inicia numa concepção abstrata da Humanidade e a coloca acima de nós, como o ideal que nos devemos esforçar para alcançar. A sua prática no domínio social é baseada no conceito de direitos que a sociedade deve proteger. Na realidade, o biocentrismo não desafia o humanismo pela raiz. Simplesmente procura expandir os valores morais do humanismo, de modo a incluir toda a Vida e não apenas a humana. A Vida, não apenas a Humana, é o ideal que devemos defender. No domínio social, o biocentrismo apenas procura a extensão dos direitos e da proteção ao não-humano, sem desafiar as raízes da ordem social. Esta é a razão pela qual tantos ecologistas radicais perdem tanto tempo a trabalhar em litigações e legislações para proteger esta ou aquela espécie ou para preservar uma determinada área de floresta. Esta prática expõe a natureza não revolucionária da sua perspectiva. De fato, visto que assenta numa prática de representação (os ecologistas radicais representam a Terra e a Vida nos tribunais e nas legislaturas), está na sua raiz um ponto de vista político e reformista. Uma crítica revolucionária da civilização recusará por completo esta ideologia.
Uma perspectiva ambiental poderá ser útil na exposição da nocividade das instituições que controlam as nossas vidas. O desenvolvimento tecnológico necessário para manter o controle social e a expansão do capital causa danos extensivos. Um aspecto importante da nossa atual existência precária é o aumento dos danos que têm sido feitos aos nossos corpos e aos ambientes onde vivemos, levantando a questão de quanto mais nós podemos aguentar. Mas o mal desta sociedade não existe apenas nas várias toxinas físicas que somos forçados a ingerir. Se esse fosse o limite do problema, podia simplesmente ser uma questão para os “especialistas”, ou que pudesse ser resolvida com legislação. O mal fundamental desta sociedade reside nas relações sociais que impõe. Estas relações sociais nos tornam dependentes de um sistema tecnológico massivo sobre o qual não temos nenhum controle. E o mal físico deste sistema – o envenenamento dos rios, a irradiação da comida, a dispersão de químicos tóxicos e de material geneticamente modificado por todo o lado – é inerente à sua existência. Por isso, uma crítica ambiental pode apenas tornar-se revolucionária ao fazer parte de uma crítica total das relações sociais que nos tornam dependentes desta mega-máquina tóxica. Ela pode fornecer uma ferramenta no desenvolvimento dessa critica, mas não é suficiente por si só.
Nunca me autoproclamei primitivista, porque não baseio a minha crítica da civilização em traços reais ou presumidos das sociedades “ditas” primitivistas. A ideologia de uma passada Idade do Ouro é, na melhor das hipóteses, pura especulação. Sabemos muito pouco sobre os seres humanos pré-históricos e sobre como viviam, e a literatura mais recente neste campo afastou-se de algumas das mais idílicas imagens populares entre os pré-históricos há algumas décadas. Podemos ler mais sobre a chamada “primitiva” gente moderna, nos escritos de antropólogos, etnólogos e várias outras pessoas letradas que viajaram no seu meio. Certamente, isto pode fornecer algumas ferramentas úteis para examinar a civilização e as possibilidades humanas. Mas é necessário reconhecer que este conhecimento é sempre especulativo, parcial e enviesado, e não fornece uma base para uma crítica revolucionária da civilização. O primitivismo como ideologia idealiza o chamado “primitivo”. Alguns primitivistas contemporâneos tentam contornar esta limitação ao referirem-se a uma alegada “natureza primordial” inerente a todos os seres humanos, em vez de as pessoas primitivas passadas ou atuais. Embora possam, deste modo, evitar a acusação de um uso hipócrita da ciência para sua própria conveniência, não escapam ao problema de basearem a sua perspectiva num ideal externo. De fato, estes primitivistas simplesmente voltaram a dar vida à ideologia humanista com uma pequena mudança: a natureza humana “primordial” torna-se no “verdadeiro” eu, aquilo que devemos descobrir e lutar para alcançar. Sendo uma forma de humanismo, esta perspectiva é moral na sua essência. Tenta fornecer uma base para revolução sem luta de classes, substituindo-a pela “luta primitiva”, mas visto que esta tem a sua base na alegada “natureza primordial”, e não no nosso confronto atual com as circunstâncias que o mundo atual nos impôs, é simplesmente um ideal moral de como a revolução “deve” ser alcançada. Para Montaigne e Rousseau tais idealizações permaneceram um meio poético para lamentar os males da civilização, mas para alguns primitivistas modernos elas se tornaram um ideal moral, um modelo para um modo de vida pós-civilização e, por vezes, até um conceito de como uma prática anticivilização deveria ser, aqui e agora. Como tal, não é útil para uma crítica revolucionária da civilização. Mantém-se uma mera crítica moral baseada em conceitos abstratos de bom (primitivo) e mau (civilizado). As relações sociais desaparecem nesta idealização e é fácil ficar preso a ideias e práticas completamente díspares das realidades que enfrentamos.
Esta deve ser a razão pela qual alguns primitivistas foram tão longe ao ponto de rejeitarem o próprio conceito de revolução, preferindo “preparar-se” para um futuro colapso da civilização, estudando “competências primitivas” em escolas bastante caras, criadas para este propósito. Parece que imaginam este colapso de um modo similar ao das visões do movimento Ghost Dance entre os nativos americanos do final do século XIX, onde a realidade civilizada é simplesmente enxotada, para imediatamente ser revelada uma ilesa e imaculada Natureza Selvagem. Tal como os sobrevivencialistas de dez anos atrás, estes primitivistas desistiram da possibilidade de as pessoas tomarem a história nas suas próprias mãos, de modo a destruírem a ordem da dominação e transformarem radicalmente as relações sociais. Então, em vez disso, eles sonham com o apocalipse, depois do qual alguns poderão viver outra vez no Éden do seu imaginado mundo “primitivo”.
De facto, se tal colapso ocorresse, iria certamente envolver um processo de conflito total, envolvendo guerra massiva por parte dos vários líderes deste mundo, para manter o seu poder através de quaisquer meios necessários, e um confronto não mediado, com a devastação do ambiente natural, é doloroso. Não tenho nenhum desejo de me “preparar para” tal colapso, vendo-o, em vez disso, como uma das tristes possibilidades que esta sociedade oferece. Preferia antes esforçar-me por desmantelar conscientemente a ordem social, através de tentativas revolucionárias. Um consciente desmantelamento revolucionário da civilização envolveria um confronto consciente com as realidades que a realidade civilizada criou e uma exploração de maneiras para restaurarmos ambientes onde possamos realmente viver.
Claro que os primitivistas que rejeitam abertamente a revolução são muito poucos. Ainda assim, penso que são eles quem mais consistentemente seguem a lógica do primitivismo. Idealizando aquilo que foi levaria consistentemente ou à admiração passiva (como Montaigne ou Rousseau) ou à imitação, mas não a um confronto radical e destrutivo com o que é.
No entanto, há uma lição muito importante que podemos aprender ao examinar o que se sabe sobre pessoas não-civilizadas. A civilização mostrou ser um processo de homogeneização. Isto torna-se especialmente evidente agora que uma única civilização domina o globo. Poderá até levar alguém a acreditar numa natureza humana fixa. Mas olhando para o que sabemos sobre gente não-civilizada, torna-se claro que há maneiras variadas de os humanos viverem neste mundo, inúmeras possibilidades de se relacionarem uns com os outros, consigo próprios e com o ambiente que os rodeia. Especulações deterministas não têm lugar aqui. Em vez disso, as possibilidades reais de uma transformação revolucionária podem ser vistas à medida que se torna claro que o mundo social onde vivemos não foi sempre assim. Mas as nossas possibilidades se abrirão no decurso do nosso projeto aqui e agora, portanto o “primitivo” não podem ser usado como um modelo, simplesmente como uma ferramenta entre muitas para atingir um entendimento claro da natureza da civilização.
Uma das áreas de exploração teórica que se desenvolveu entre anarquistas anti-civilização é a exploração das origens. Esta exploração levantou questões muito interessantes. Abriu também a possibilidade de um desvio para a ideologia. A primeira coisa que precisamos de ter em mente enquanto exploramos as origens é que não podemos encontrar respostas. Esta é uma área apenas para a especulação e levantamento de questões. De outro modo, tornar-se-ia numa busca do “pecado original”, depois do qual a queda na civilização foi inevitável, e estaremos no caminho de um determinismo que requer redenção, não revolução.
A exploração das origens foi principalmente iniciada por John Zerzan nos anos 80. É uma tentativa de olhar para as possíveis fontes de alienação que tornaram possível a emergência da civilização. Desde o início que uma das fraquezas da exploração de Zerzan foi a falta de uma explicação clara do que queria dizer com alienação. Esta falta de clareza infectou aqueles anarcoprimitivistas que tomaram os escritos de Zerzan como uma grande fonte teórica. Eu entendo a alienação como a separação da nossa existência de nós mesmos, através de um sistema de relações sociais que rouba a nossa capacidade de criarmos as nossas vidas nos nossos próprios termos, de modo a usar a nossa energia para produzir e reproduzir o que é necessário para manter separados e centralizados a riqueza e o poder. O que me é estranho é, assim, aquilo que eu não consigo usufruir como meu. A alienação, neste sentido, não pode ser causada por uma ideia ou modo de pensar. A sua fonte tem de estar nas relações sociais. Por vezes, Zerzan parece usar alienação neste sentido, mas na maioria das vezes ele é bastante mais abstrato, falando de alienação humana da natureza num sentido quase místico. E esta última concepção parece prevalecer em grande parte do meio anarcoprimitivista. É como se eles vissem a natureza como uma entidade metafísica com a qual os humanos tiveram, em tempos, uma relação íntima de união e da qual depois se separaram. Este é um paralelo específico para a teologia cristã, mas deus foi substituído por uma natureza unificada.
A ideia de uma “queda” para a civilização (um termo usado frequentemente por Zerzan) deriva logicamente disto. Explica também as frequentes reclamações de que nós não conseguimos experienciar momentos não alienados neste mundo – afinal de contas é um mundo caído. Em vez de oferecer quaisquer ideias adequadas de como pessoas caídas num mundo caído poderiam fazer uma revolução para desfazer a queda, Zerzan, John Connor e outros primitivistas têm um estranho prazer em mostrar a desintegração social do mundo moderno como se isto fosse, em si mesmo, o caminho para a destruição da civilização. O ponto baixo de tudo isto foi o artigo de Steva Booth “Os Irracionalistas”. Booth, incapaz de ir além neste caminho, desistiu completamente de qualquer crítica à civilização, escolhendo, em vez disso, tornar-se apoiante do British Green Party. O próprio Zerzan vale-se do evangelismo – falando com jornalistas do The New York Times, Spin, e várias outras publicações mainstream, aparecendo no programa de rádio de Art Bell e no 60 Minutos, indo a conferências de “sustentabilidade” e de lei ambiental, para apresentar a sua mensagem. Que Zerzan comprometeu totalmente qualquer crítica revolucionária com esta “prática” é irrelevante, visto que todos temos de nos comprometer neste mundo. Somente no paraíso que emergirá quando a civilização cair é que poderemos escapar ao compromisso. Deste modo, a revolução de Zerzan pode apenas ser entendida como a redenção de um mundo caído. Mas quem ou o quê é o redentor?
De fato, penso que talvez seja o modo teológico de Zerzan lidar com o tema da alienação que limita a sua própria capacidade de desenvolver as suas explorações das origens de um modo útil. Embora Zerzan tenha aberto importantes áreas teóricas na linguagem do chamamento, do tempo, do pensamento simbólico etc. em questão, falhou no aproveitamento disso. Em vez de explorar a natureza da linguagem, do tempo ou do pensamento simbólico como relações sociais e de trazer isto para o presente, ele acabou por aceitar as suas primeiras declarações como respostas finais, começou a repetir o mesmo refrão de que “tudo isto tem de desaparecer” e julgou outros em termos da sua aderência ao que se tornou a linha dele. E uma vez que encontrou um santo (e potencial redentor)[3] no Unabomber, a sua ideologia tornou-se tão entrincheirada que ele não pode mais desenvolver as suas ideias; poderia apenas pregá-las.
Claro que a tentativa de explorar as origens leva-nos por águas turbulentas. Temos de ser capazes de distinguir entre uma contingência necessária e uma causa. É verdade, por exemplo, que a emergência da civilização é contingente à existência da linguagem. Mas isto não significa que a linguagem inevitavelmente leva à civilização. A existência de lobos frontais no cérebro é também necessária para a emergência da civilização, mas não a causa. É a capacidade de distinguir entre contingências necessárias e causas que permite escapar ao tipo de determinismo descrito anteriormente.
É também fácil, na procura de causas originais, reificar relações sociais. Zerzan fez com toda a certeza isto com o tempo, a linguagem e o pensamento simbólico. Declarar que estes são a fonte do nosso problema implica esquecer que têm origem nas relações sociais, nas necessidades e desejos reais ou percebidos que se desenvolvem entre as pessoas. Mas não podemos saber quais estes eram; podemos apenas especular, e para alguns isto não é suficiente. O que podemos fazer é examinar as relações sociais que rodeiam atualmente a linguagem, o tempo e o pensamento simbólico. Tal exame é particularmente interessante, indicando que o capital e o seu sistema tecnológico estão, de certo modo, no processo de destruição da linguagem e do tempo. A destruição de linguagens em todo o mundo, a degradação de linguagens individuais e o escárnio da imaginação, e com ela da capacidade de falar e viver poeticamente, são aspectos significativos da realidade que enfrentamos. Tudo isto pode ser traçado segundo as necessidades da ordem dominante, o seu desenvolvimento tecnológico e a dominação dos meios de comunicação de massa e da Internet sobre a comunicação. Isto requer uma análise bem mais complexa do que declarações de que a linguagem causa alienação. É agora bastante óbvio que a perda de linguagem não nos faz menos alienados ou menos civilizados, simplesmente menos capazes de comunicar uns com os outros e de exprimir qualquer desejo fora dos canais permitidos pela ordem dominante.
Do mesmo modo, o mundo do capital, a sua tecnologia e os meios de comunicação de massa estão nos roubando o tempo. No seu lugar nos estão dando um presente eterno, mas não o edílico que Zerzan imagina. Em vez disso, é o eterno presente de rotinas, repetidas dia após dia, que não têm relação direta com as nossas próprias necessidades e desejos, mas que nos são exigidas para ganharmos o dinheiro que precisamos para continuarmos a sobreviver ao nível a que estamos habituados. Isto é associado ao retrato de eventos à volta do mundo que os meios relatam, como momentos desligados, sem passado ou futuro. A ordem social atual rouba o passado como uma realidade viva que podemos usar de qualquer maneira significativa e o futuro como um lugar de possibilidades e sonhos, deixando-nos apenas com um pobre presente de escravidão diária. Também aqui uma análise mais profunda das atuais relações sociais é necessária, que nos permita reaver a nossa história e os nossos sonhos como ferramentas a serem usadas contra esta sociedade aqui e agora.
Claro que o primitivismo em si mesmo refere-se a um passado, mas é um passado místico que está como um ideal sobre nós, não um passado concreto de luta revolucionária contra a ordem dominante. Alguns primitivistas dispensam este último porque quem estava na luta não tinha uma crítica consciente da civilização. Mas a dispensa torna impossível um encontro crítico com estas lutas passadas. E um encontro crítico com o passado revolucionário é uma ferramenta demasiado útil para desistirmos dele na batalha contra este mundo civilizado. Cada uma destas lutas pode ser vista como parte de uma guerra social inacabada na qual o conhecimento do objectivo e do inimigo se torna gradualmente mais claro, mas apenas se conhecermos e combatermos criticamente com este passado, em vez de procurarmos um passado mítico para usar como ideal. É particularmente importante, nesta altura em que a civilização está, ela própria, a criar uma amnésia histórica, que nos recusemos a sucumbir-lhe, e que continuemos a agarrar a história revolucionária como uma arma contra a ordem dominante.
Resumindo, para uma crítica revolucionária da civilização, a exploração das origens apenas tem uso como abertura de áreas de contínuo questionamento. Os conceitos fundamentais que são questionados precisam de ser examinados em termos das relações sociais atuais, para que possamos saber onde estão os pontos de conflito com a ordem dominante e perceber o que está em jogo.
Outra concepção que tem sido usada no desenvolvimento de uma critica à civilização é o de “selvagem”. Eu estou entre aqueles que têm feito uso deste conceito na exploração do conceito de civilização e não como uma revolução contra esta poderá ser. Mas há o perigo de o conceito de selvagem ser domesticado – ou seja, de ser cristalizado numa ideia concreta do que deveríamos ser e fazer. Quando uso o conceito de selvagem nas minhas análises críticas à natureza da civilização e da revolta contra esta, é precisamente porque, ao contrário do “primitivo”, a selvajaria humana é um desconhecido. Não providencia respostas ou modelos, mas levanta questões. A sua cristalização num modelo toma a forma de igualá-lo com o modo de vida de recolectores e/ou de antropomorfizar traços de animais não-humanos (tais como os instintos). A ideia de uma natureza “primitiva” humana inerente, cai precisamente nesta armadilha, definindo um ideal, não levantando questões de como poderemos tomar de volta as nossas vidas. Definir selvajaria como um modelo torna-o num valor moral que está sobre nós e as nossas lutas diárias. Nesta forma, não é útil como uma ferramenta revolucionária. Apenas como uma tensão contra a realidade civilizada que nos é imposta, o mesmo é dizer que apenas como um questionamento perpétuo prático e teórico, pode o selvagem ter uso no desenvolvimento de uma crítica revolucionária à civilização.
Uma critica revolucionária à civilização é uma crítica das relações sociais da civilização. A emergência da civilização é, na verdade, a emergência da centralização e da institucionalização do poder da riqueza. Começando com a espoliação de um grande número de pessoas – com o roubo da sua capacidade para criar as suas vidas nos seus próprios termos –, relações de dominação e exploração, ou seja, relações de classe, são impostas. Com a instituição de relações de classe, a luta de classes começa. No fundo, esta é a luta dos espoliados para recuperar as suas vidas e a luta da ordem dominante para manter o seu domínio.
Se iniciarmos a nossa crítica à civilização a partir desta base, podemos ver que a luta contra a civilização é, na sua raiz, uma luta de classes e uma luta egoísta. A sua base assenta não na renúncia, mas no processo de reapropriação – de roubar de volta o que nos foi tirado. A mega-máquina do estado industrial e capitalista é uma grande instituição para a qual cada um de nós não é nada a não ser palha. As relações sociais do seu quadro institucional são construídas inseridas no seu sistema tecnológico, fazendo qualquer visão de autogestão deste enorme aparato absurda. Por isso, a intenção é destruí-la, não pela “Terra”, pela “Vida” ou pela “Natureza Selvagem”, mas antes por nós mesmos, de modo a podermos experimentar livremente as inúmeras possibilidades de nos relacionarmos e criarmos as nossas vidas sem qualquer tipo de dominação, para explorar o projeto coletivo da autorrealização individual. Por isso, uma crítica revolucionária da civilização terá a sua base numa crítica comunista e egoísta da existência – por outras palavras, será fundamentalmente anarquista.
E como pode isto resultar na prática?
Uma crítica revolucionária da civilização detém-se no desejo de um mundo no qual nós, seres humanos, possamos viver nos nossos próprios termos, criando juntos as nossas vidas como um consciente projeto em desenvolvimento. Nela não há lugar para a misantropia que é central a muita ideologia biocêntrica e que, por vezes, infecta as perspectivas ambientais. E não reconhece nem a prática primitivista, nem o “regresso ao selvagem” como panaceias para o mal da civilização. Embora as competências primitivas possam ser úteis e os métodos para remediar e expandir lugares selvagens sejam necessários, estes não constituem a expressão prática de uma crítica revolucionária à civilização.
O fato é que não podemos voltar atrás. A América do Norte ainda tem regiões razoavelmente grandes de natureza selvagem, algumas das quais parecem ser habitáveis por um reduzido número de pessoas. Mas seria impossível suportarem as centenas de milhões de pessoas deste continente. Em muito do resto do mundo, a natureza selvagem tem desaparecido ou sido devastada. Na Europa e na maior parte da Ásia, por exemplo, uma vida de recolecção não é opção para ninguém. O caminho para trás está fechado, e visto que o caminho para diante nos leva claramente a um aumento da dominação e do desastre, é claro que devemos deixar o caminho e ir por outro lado.
Então, uma crítica revolucionária à civilização requer que abandonemos todos os caminhos conhecidos. Não existem respostas fáceis ou modelos a seguir. De uma perspectiva anarquista isto não deveria ser visto como algo negativo, visto que não deixa lugar a líderes ou a dogmas ideológicos. De fato, traz-nos de volta ao presente, para as nossas vidas e lutas, para o mundo que enfrentamos.
Então vamos olhar para este mundo. Uma única civilização – a do estado e do capital – domina-o. Apesar das tendências totalitárias, esta dominação não é absoluta. Outros modos de ser e de nos relacionarmos existem à sua margem e debaixo da sua visão. A sua expansão pelo globo forçou-a a desenvolver métodos de reprodução e controle social que estão descentralizados numa rede tecnológica e burocrática. Porque o controle e as relações de dominação e exploração estão construídas nesta rede, não se pode dizer que qualquer pessoa, até mesmo a classe dominante, realmente a controla. Ela atua para nos controlar não só através do monitoramento das nossas atividades, mas mais importante, fazendo-nos dependentes dela e determinando como, em parâmetros bastante estreitos, podemos interagir com ela. Resumindo, transforma-nos em rodas dentadas dentro deste quadro tecnológico. Por isso é que falar de tomar os atuais meios de produção para qualquer outro propósito que não destruí-los não faz nenhum sentido. Eles são meios de dominação e controle, não de criação do que precisamos e desejamos. Os nódulos desta rede incluem computadores, câmaras de vigilância, cartões de crédito, bilhetes de identidade e por aí fora. Esta rede parece estar em todo o lado, mas é finamente esticada, deixando imensas fendas e tornando-a muito frágil. Um dos resultados desta fragilidade é que cada vez mais gente tem caído pelas fendas, encontrando-se sem lugar nesta sociedade. Forçados à pobreza, à imigração, ao desalojo e à ilegalidade, estes indesejáveis têm pouco, se é que alguma coisa, a perder ao agirem contra esta sociedade. São uma classe de bárbaros dentro dos portões desta grande máquina de morte civilizada. Até aqueles que não caem pelas fendas têm uma existência cuja precariedade aumenta a todos os níveis. Se eles vissem o que têm em comum com aqueles que caíram pelas fendas, isto poderia ser desastroso para a ordem dominante. E, como é obvio, há aqueles que escolhem viver dentro das fendas pela relativa invisibilidade que isso lhes dá, conferindo-lhes uma maior liberdade para determinar aspectos significantes das suas vidas. Também estas pessoas têm toda a razão para lutar contra a mega-máquina. Os donos deste mundo estão alerta para tudo isto e, nos últimos anos, têm vindo a praticar uma feroz repressão preventiva de um modo aberto.
Levantamentos e revoluções não são o produto de ideias radicais[4], embora tais ideias possam certamente ter um papel significativo no modo como um levantamento se desenvolve – pelo menos, se forem criadas e expressas de um modo relevante e revolucionário. Mas é a nossa raiva acerca das condições de existência que nos são impostas, combinada com a completa falta de fé na capacidade e vontade das instituições dominantes ou de oposição de fazerem algo para as mudarem para nosso proveito, que podem fazer explodir revoltas auto-organizadas como greves selvagens, bloqueios de estradas e portos, ocupações de espaços, sabotagem, vandalismo, motins e insurreições. Nestes incidentes e atividades, podemos ver o desejo de tomar de volta as nossas vidas confrontando diretamente esta civilização, que nos rouba as vidas, como ela existe aqui e agora. Estas lutas são ataques diretos (mesmo que normalmente inconscientes) contra o roubo das nossas vidas. Esta é a razão pela qual elas expressam tanto a luta de classes, como a luta contra a civilização tal como a conhecemos.
Mas então, que é feito da crítica revolucionária à civilização, conscientemente desenvolvida? Como se exprime ela na prática? Cada um de nós encontra pedaços da rede de controle na nossa vida todos os dias. Oportunidades para atacar não faltam. Então o problema é como encontrar cúmplices, como descobrir os pequenos fios de revolta aqui e ali e descobrir como os juntar. Durante a greve selvagem dos trabalhadores do trânsito em Itália em Dezembro e Janeiro passados (2003-2004) havia companheiros que afirmavam que aquela era uma oportunidade para escapar às atividades impostas desta sociedade e, em vez disso, usar o tempo para explorar as possibilidades de comunicação cara a cara e partilhar atividades. E outros sabotaram máquinas de venda de bilhetes para os transportes. Um entrelaçar de lutas estava, finalmente, começando a se expressar. Recentemente nos Estados Unidos, os caminhoneiros supostamente “independentes” que trabalhavam nas docas em Oakland e Los Angeles fizeram greves selvagens. Os revolucionários em ambas as cidades foram falar com os caminhoneiros. Alguns dos caminhoneiros expressaram fortes sentimentos anti-guerra. Era óbvio que existiam pontos de conexão.
E, é claro, não é preciso esperar pelos outros para começar uma luta. As nossas vidas nos foram roubadas; fomos espoliados da nossa capacidade de determinar as condições da nossa existência, e o inimigo e as suas ferramentas estão por todo o lado à nossa volta. Por isso podemos começar as nossas próprias lutas. Pensa nas câmaras de vigilância sobre as nossas cabeças. Pensa nos apoios institucionais e econômicos para a guerra no Iraque – e para outras guerras noutros lados – que nos rodeiam. Pensa na pesquisa em nanotecnologia, com as horríveis possibilidades que ela abre para a penetração do controle social diretamente nos nossos corpos, que está a acontecer mesmo debaixo dos nossos narizes... os alvos não são difíceis de encontrar.
Disse que uma crítica revolucionária à civilização é baseada na luta de classes. Mas não me refiro simplesmente à luta de uma classe contra a outra. Mais precisamente, refiro-me à luta dos explorados, dos espoliados, dos proletarizados contra a sua condição como tal. É obviamente do interesse da classe dominante manter a sociedade de classes, e portanto todo o aparato burocrático e tecnológico através do qual ela opera. Mas não é do nosso interesse manter a nossa posição de classe. Enquanto formos explorados, espoliados, proletários, não teremos as nossas vidas. A reapropriação das nossas vidas conduz a nossa existência enquanto classe a um fim; esta luta é o movimento colectivo pela libertação individual. Por isso, na luta de classes a crítica da civilização procura os métodos e as formas que levem consigo a destruição das classes.
Entender a luta de classes neste sentido nos dá algumas pistas acerca da sua expressão prática. Os incidentes específicos que provocam a luta variarão consideravelmente e poderão ter objetivos menos imediatos. Mas aqueles de nós cuja atividade é informada pela crítica revolucionária à civilização, e portanto pelo desejo de destruir as relações de classe como tal, iremos apenas utilizar métodos que expressem claramente a luta pela recuperação das nossas vidas. Assim, recusaremos representações por qualquer organização da oposição, tal como sindicatos e partidos, mantendo a autonomia da nossa luta. Recusaremos petições, negociações ou compromissos com os líderes deste mundo. Iremos escolher por nós mesmos os métodos, os tempos e os lugares das nossas ações. E atacaremos as instituições e mecanismos do poder que estiverem no nosso caminho. Os nossos cúmplices serão aqueles que escolherem partilhar tais métodos, e as nossas lutas se entrelaçarão com outras durante o tempo que escolherem seguir este caminho, e se separarão quando os nossos métodos e objetivos se tornarem incompatíveis.
Além disso, visto que a luta é para recuperar as nossas vidas e a capacidade de as criar coletivamente nos nossos próprios termos, ela se expressará como uma prática luddita. No começo da era industrial, os ludditas reconheceram que o sistema fabril era um método tecnológico para impor relações sociais específicas de exploração e controle, e o atacaram. Nos 200 anos que se passaram, a metodologia fabril – o desenvolvimento de sistemas tecnológicos mutuamente dependentes e entrelaçados, nos quais o controle social e as relações específicas às necessidades do capital e do Estado são construídas – alargou-se à totalidade da paisagem social, e as nossas vidas roubadas são presas como trabalho morto dentro deste aparato, reproduzindo a sua dominação sobre nós. Recuperar as nossas vidas requer a destruição da máquina, por isso o papel de Ned Ludd é central à expressão prática de uma crítica revolucionária da civilização.
O projeto de tomar de volta as nossas vidas é fundamentalmente egoísta. O fato de este projeto precisar de se tornar coletivo para que tenha sucesso não muda isto. O entrelaçar de lutas e revoltas baseadas na afinidade, cumplicidade e solidariedade revolucionária é uma boa descrição de o que uma união de egoístas pode ser. E o egoísmo nos dá mais uma pista sobre como uma crítica revolucionária da civilização poderá agir no mundo (especialmente em contraste com uma crítica moral). Rejeitando toda a ideologia moralista e determinista, o egoísta não procura fontes do pecado original da civilização para renunciar e evitar. Em vez disso levanta a questão, “O que é que posso usar como arma para destruir esta sociedade? O que posso usar como ferramenta para criar a vida que escolhi com outros, contra esta sociedade?”. As instituições sociais e o sistema industrial levam consigo as relações de dominação e exploração. Elas são inúteis ao projeto de resgate das nossas vidas.
Mas é no decorrer da luta contra esta ordem civilizada que descobriremos que ferramentas e técnicas podemos utilizar como nossas para construirmos as nossas vidas. Qualquer crítica anticivilização que tente definir estas possibilidades à partida é uma crítica moral e de pouco uso na transformação revolucionária. Apesar de tudo, podemos tirar conclusões sobre alguns traços que estas ferramentas poderão ter. Primeiro que tudo, os utilizadores das ferramentas precisarão de ser capazes de perceber claramente, num nível imediato, as consequências do seu uso. Qualquer ferramenta de tal complexidade que as suas consequências permaneçam invisíveis para o utilizador, não tendo nenhuma relação direta com a sua razão para usá-la, constituiria um sistema tecnológico. O roubo da vida está incorporado num sistema assim, porque aqueles que o usam não têm nenhum controle sobre as consequências do seu uso. Em vez disso, tornam-se as vítimas de consequências para além da sua capacidade de previsão. Nós vemos os resultados disso na devastação ambiental, nas várias epidemias e noutras ameaças à saúde em nosso redor, assim como na expansão de tecnologias de controle social em cada canto da terra. Em segundo lugar, cada técnica usada terá de ser reversível. Se se prova que uma técnica pode ser perigosa ou dominadora, temos de ser capazes de a abandonar imediatamente e de continuar as nossas atividades usando outros meios. Isto põe de parte qualquer sistema tecnológico em larga escala, visto que estes consistem numa interligação de técnicas interdependentes que se reforçam umas às outras e, por outro lado, nos transformam também em partes do mecanismo.
Espero que, sem apresentar um modelo, tenha dado uma ideia do que poderá ser uma critica revolucionária da civilização enquanto se a põe em prática no mundo. Claro, não pode haver nenhum modelo para a destruição violenta do mundo da dominação e para a recuperação das nossas vidas que constituem a revolução social. Podem apenas haver indicações. Cabe-nos a nós descobrir o significado dessas indicações nas nossas próprias vidas e onde nos encontramos.
Algumas palavras finais
Escrevi isto devido ao meu desapontamento sobre a direção que muita da discussão acerca da crítica da civilização tomou. Baseando-se em ideais acima de nós, ela torna-se permeável a dogmas e moralismos, com o consequente desentendimento de todos os lados. Mais significativamente, estes ideais são de pouco uso para aqueles que tentam desenvolver uma crítica revolucionária da civilização com uma relevância prática nas lutas diárias dos explorados contra a sua condição. Para ser revolucionária, uma crítica da civilização precisa de ter tal relevância. Isto significa que não oferecerá respostas finais e que poderá, até, parecer gaguejar como o bárbaro que não conhece a linguagem da cidade, ou seja, a da política. Mas na prática, esta recusa de respostas finais vai lado a lado com o balanço do martelo do vândalo, esmagando cada ídolo e dogma, mesmo aqueles nos templos da anarquia e da anticivilização. Espero que estas explorações escritas sejam úteis no nosso contínuo desenvolvimento de tal crítica.
Notas:
[1] Na verdade, Nechaeyev substituiu uma crítica revolucionária por uma idealização moral de “revolução”, levando-o a rejeitar princípios. Em nome deste ideal elevado, tudo poderia ser justificado. Uma lógica similar originou as Cruzadas, a Inquisição e o Reino do Terror.
[2] Estou aqui a pensar especificamente na separação definitiva entre as civilizações da Europa e do Médio Oriente que ocorreu com a queda do Império Romano, embora esteja certo que se podem encontrar outros exemplos.
[3] Considerando a reivindicação feita por Zerzan e outros de que o Unabomber “tentou salvar-nos”.
[4] É por isto que tenho tão pouca paciência para atividades evangelizadoras.