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Meios e Fins: A Crítica Anarquista da Tomada do Poder do Estado

A crítica anarquista da tomada do poder estatal costuma ser caricaturada como sendo baseada numa abstrata oposição moral ao Estado que ignora as duras realidades que presentemente enfrentamos. Contudo, lendo com atenção os autores anarquistas históricos, descobre-se que a verdadeira razão para argumentarem que os revolucionários não devem tomar o poder estatal existente foi que tal não era prático para chegar aos objetivos.

Esses argumentos práticos baseavam-se no seu entendimento da sociedade. Os anarquistas sustentaram que a sociedade é constituída por seres humanos com formas particulares de consciência envolvendo-se em atividade — exercendo capacides para satisfazer motivações — e, assim, transformando-se a si mesmos e ao mundo que os rodeia. Por exemplo, quando trabalhadores fazem greve algumas transformações fundamentais podem ocorrer. Os trabalhadores podem desenvolver as suas capacidades ao aprenderem a envolver-se em ação direta e a auto-gerir as suas vidas; podem adquirir novas motivações tais como o desejo de fazer frente ao patrão ou de se tornarem membros pagantes de um sindicato; e podem transformar as suas formas de consciência, pelas quais me refiro aos modos particulares como experienciam, conceituam e entendem o mundo, e nomeadamente começarem a ver o patrão como inimigo de classe ou a perceber que para melhorarem a sua situação precisam de organizar-se coletivamente com outros trabalhadores. Através do envolvimento em tal atividade os trabalhadores não só se transformam como também desenvolvem novas relações sociais. Formam laços de solidariedade e apoio mútuo com os colegas trabalhadores enquanto transformam as condições sociais nas quais vivem, nomeadamente recebendo melhores salários ou fazendo com que o patrão lhes tenha medo. Costuma-se chamar a isto a teoria da práxis, ou da prática, e é um dos vários compromissos teóricos que os anarquistas e Marx têm em comum.

A Reprodução Social do Comunismo Libertário

Para os anarquistas, uma das principais consequências da teoria da prática foi que havia uma conexão inerente entre meios e fins. O fim do anarquismo — o comunismo livre ou libertário — é uma sociedade sem Estado, sem classes, em que os trabalhadores detêm coletivamente os meios de produção e auto-administram os seus locais de trabalho e as suas comunidades, através de concelhos onde toda a gente tem voto e voz ativa nas decisões que lhes afetam. Estes concelhos coordenariam ações em larga escala associando-se num sistema descentralizado de federações regionais, nacionais e internacionais em que tantas decisões quanto possível seriam feitas pelos próprios concelhos locais. Isto seria alcançado através de congressos regulares a nível regional, nacional e internacional que reuniriam delegados mandatados e instantaneamente revogáveis, que os concelhos elegeriam para os representar. Ponto crucial, aos delegados não seria concedido o poder de tomar decisões de modo independente e de as impor aos outros. O poder de tomada de decisão permaneceria nas mãos do concelho que os elegera.

Tal sociedade seria reproduzida ao longo do tempo por seres humanos envolvendo-se nestas formas de atividade, e assim criando e recriando continuamente relações sociais comunistas, bem como a si mesmos enquanto pessoas com os tipos de capacidades, inclinações e formas de consciência apropriados para uma sociedade comunista. Por exemplo, em comunismo os trabalhadores, nos seus concelhos locais, tomariam decisões através dum sistema de democracia direta em que todos os membros têm voto. Através da participação nestes concelhos locais, não só tomariam decisões mas também se reproduziriam como pessoas que são capazes e querem tomar decisões desta maneira, nomeadamente sendo capazes de elaborar atas com eficiência, formular propostas que as pessoas apoiarão e certificar-se de que numa reunião não é só uma minoria de pessoas que fala.

Pessoas que queiram e sejam capazes de reproduzir uma sociedade comunista não passarão a existir magicamente. Uma sociedade comunista só poderá emergir através duma revolução social em que o capitalismo seja abolido e, portanto, terá de ser criada pelas pessoas que atualmente vivem em capitalismo. Perante isto, para chegar a uma sociedade comunista a maioria da população precisa de se envolver em atividades, durante a luta contra o próprio capitalismo, que as transformem em pessoas que querem e são capazes de auto-gerir as suas vidas e a sua comunidade através de concelhos locais e federações de concelhos. Se isto não acontecer, então não se criará o comunismo. Isto porque, para que o comunismo exista, pessoas reais têm que o estabelecer e reproduzir dia após dia através da sua própria atividade.

Os revolucionários, portanto, devem usar meios constituídos por formas de prática que realmente transformem os indivíduos em tipos de pessoas que serão capazes e quererão criar o objetivo final do comunismo. Se os revolucionários cometerem o erro de usar os meios errados ou inapropriados, então produzirão pessoas que criarão uma sociedade diferente daquela inicialmente tencionada. Para citar Malatesta:

não basta desejar uma coisa: se se quer realmente obtê-la, é preciso empregar os meios aptos à sua realização. E estes meios não são arbitrários, mas derivam necessariamente do fim que se tem em vista e das circunstâncias nas quais se luta; pois enganando-se na escolha dos meios, não se atingiria o fim proposto, mas outro, talvez oposto, que seria a consequência natural e necessária dos meios aplicados. Quem se mete a caminho e se engana na estrada, não vai aonde quer, mas aonde o leva a estrada percorrida.[1]

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O Estado como Estrutura Social

Os anarquistas viam na tomada do poder do Estado uma via que conduziria a classe trabalhadora a uma nova forma de sociedade de classes autoritária, ao invés do visado objectivo do comunismo. Para perceber porquê, precisamos primeiro de perceber o que os anarquistas entendiam pelo Estado. Através duma análise aprofundada do Estado enquanto estrutura social realmente existente, tanto historicamente como no tempo em que escreviam, os anarquistas vieram a definir o Estado como uma instituição hierárquica e centralizada que utiliza violência profissionalmente organizada para desempenhar a função de reproduzir o domínio de classe. O Estado, assim entendido, era manejado por uma classe política dominante (generais, políticos, altos funcionários públicos, monarcas, etc.) no seu próprio interesse e no interesse da classe económica dominante (capitalistas, latifundiários, etc.), contra as massas. Kropotkin, por exemplo, escreve que o Estado «não só inclui a existência de um poder situado acima da sociedade, mas também de uma concentração territorial e uma concentração de várias funções da vida das sociedades nas mãos de poucos[…] Todo um mecanismo de legislação e de policiamento é desenvolvido para sujeitar umas classes à dominação de outras.» O Estado, portanto, é «o exemplo perfeito de uma instituição hierárquica, desenvolvida ao longo dos séculos para sujeitar todos os indivíduos e os seus possíveis agrupamentos à vontade central. O Estado é necessariamente hierárquico, autoritário — ou deixa de ser o Estado.»[2]

Os anarquistas argumentaram que o Estado, como todas as estruturas sociais, é constituído por formas de atividade humana e, assim, a participação no Estado produz e reproduz tipos particulares de pessoas e tipos particulares de relações sociais. Isto ocorre independentemente das intenções ou objetivos das pessoas, porque o que importa é a natureza da estrutura social em que participam e as formas de ativididade que constituem e reproduzem essa estrutura social. Para Reclus, os socialistas que entram no Estado «colocaram-se em condições determinadas que por sua vez os determinam.»[3] Aqueles que manejam o poder estatal envolvem-se, por conseguinte, em formas de atividade humana que com o tempo os transformão em opressores da classe trabalhadora, preocupados em reproduzir e expandir o seu poder sobre outras pessoas. Os anarquistas sustentaram que este processo de socialistas transformado-se em opressores ocorreria tanto para socialistas eleitos no Estado capitalista atualmente existente, quanto para socialistas que tentassem tomar o Estado existente por via de um golpe e transformá-lo num Estado operário.

Os anarquistas consideravam que isto ocorreria por duas razões principais. Primeiro, o Estado é uma instituição hierárquica em que uma classe política dominante monopoliza o poder de tomada de decisões e determina as vidas da maioria que está sujeita ao seu domínio. A minoria dos socialistas que realmente exercem poder estatal irão, por conseguinte, impor decisões sobre a classe trabalhadora e determinar as suas vidas, ao invés de capacitar a classe trabalhadora a auto-gerir as suas próprias vidas. Nas palavras de Malatesta:

Quem tem o domínio sobre as coisas tem o domínio sobre os homens; quem governa a produção governa o produtor; quem regula o consumo é senhor do consumidor.

A questão é esta: ou as coisas são administradas segundo os livres pactos dos interessados, e então é a anarquia; ou são administradas segundo a lei feita pelos administradores, e então é o governo, é o Estado, e fatalmente resulta tirânico.[4]

Em segundo lugar, ao envolverem-se na atividade de manejar o poder estatal os socialistas serão corrompidos pela sua posição de autoridade no topo de uma hierarquia social, e serão transformados em pessoas que não quererão nem tentarão abolir o seu próprio poder sobre os outros. De acordo com Reclus,

Os anarquistas, apoiando-se na observação, professam que o Estado e tudo o que lhe está vinculado não é uma pura entidade, nem uma abstração filosófica, mas um conjunto de indivíduos colocados num meio específico e sujeitos à sua influência. Estes indivíduos, elevados acima dos seus concidadãos em dignidade, poder e tratamento preferencial, são por isso mesmo forçados, por assim dizer, a crerem-se superiores às gentes comuns. E no entanto, a multiplicidade de tentações que os assediam fá-los cair quase fatalmente abaixo do nível geral.[5]

O Hábito de Comandar

Os socialistas que entram no Estado podem inicialmente «desejar ardentemente» a abolição do capitalismo e do Estado, mas «novas relações e novas condições pouco a pouco os modificam», até que traem a causa enquanto dizem a si próprios que estão a fazê-la avançar.[6] Em suma, para citar Bakunin, o «hábito de comandar» e «o exercício do poder» instila nas pessoas «desprezo pelas massas, e, para o homem no poder, um sentido exagerado da seu próprio valor.»[7]

Um socialista de Estado poderia objetar a este argumento afirmando que os estados não têm de ser manejados por uma minoria que constitua uma classe política dominante. Para os anarquistas tal objeção ignora que os estados são instituições necessariamente centralizadas e hierárquicas, e portanto só podem ser instrumento de uma minoria de indivíduos no topo, que fazem o trabalho real quotidiano de exercer poder. Para Bakunin,

Será evidentemente impossível a uns milhares de homens, para já não falar de dezenas ou centenas milhares, exercer efetivamente esse poder. Terão necessariamente de o exercer por procuração, vale dizer, confiá-lo a um grupo de homens eleitos para os representar e governar, o que os fará voltar a cair infalivelmente em todas as mentiras e servidões do regime representativo ou burguês. Após um curto momento de liberdade ou de orgia revolucionária, os cidadãos do novo Estado acordarão escravos, joguetes e vítimas de novos ambiciosos.[8]

Em resposta poder-se-ia argumentar que, embora estes representantes formassem uma minoria, eles seriam trabalhadores e assim não constituiriam uma distinta classe política dominante. Bakunin respondeu a este argumento insistindo que tais indivíduos serão «ex-trabalhadores, os quais, logo que se tornem governantes ou representantes do povo, cessarão de ser trabalhadores e começarão a olhar para todo o mundo operário desde as alturas do Estado. Não representarão mais o povo, mas a si próprios e às suas pretensões de governar o povo.»[9]

Para os anarquistas, o Estado não tinha apenas um efeito negativo sobre os que exerciam o seu poder. Ele também era nocivo para o vasto número de pessoas a ele sujeitas, fazando-as envolverem-se em formas de prática que não as desenvolvem como tipos de pessoas necessárias a uma sociedade comunista. Isto porque, ao invés de aprenderem como auto-organizar eficazmente as suas vidas, os trabalhadores estariam sujeitos ao poder de uma minoria dominante e, assim, seriam forçados a operar segundo o que lhes é instruído. Aprenderiam a obedecer e a curvar-se aos seus superiores ao invés de pensar e agir por si próprios. Em vez de aprenderem como se associar com os outros como iguais, aprenderiam a colocar os poderosos num pedestal e a venerá-los, exatamente do mesmo modo que no capitalismo as pessoas aprendem a adorar como heróis os chamados «capitães da indústria», ou figuras de proa da política como a família real britânica. Como escreveu Bakunin, «o poder corrompe tanto os que o exercem quanto os que a ele são obrigados a submeter-se.»[10]

Os Meios e Fins do Poder Estatal

Diante do exposto, os anarquistas concluiram que tomar e instrumentalizar o poder estatal baseava-se necessariamente num meio — domínio minoritário por uma classe política dominante — incompatível com a realização do fim de criar uma sociedade comunista assente na auto-determinação da classe trabalhadora como um todo. Em teoria, a liderança do Estado operário organizaria a extinção gradual, e eventual abolição, do Estado logo que este não fosse mais necessário para defender a revolução. Na realidade, contudo, os anarquista previram décadas antes da revolução russa que as formas de prática envolvidas no exercício do poder estatal transformariam socialistas genuínos e comprometidos em tiranos preocupados com a reprodução e expansão da sua posição de poder, em vez da sua abolição em favor do comunismo. Em Estatismo e Anarquia Bakunin declarou que, embora os socialistas de Estado afirmem que «este jugo estatal, esta ditadura, é um instrumento transitório necessário para alcançar a total libertação do povo; a anarquia, ou liberdade, é o objetivo, e o Estado, ou a ditadura, o meio», eles ignoram que «nenhuma ditadura pode ter outro objetivo senão o de se auto-perpetuar, e só poderá engendrar e nutrir escravidão no povo que a suportar.»[11] O estado operário proclamaria ser uma ditadura do proletariado, mas na realidade, de acordo com Malatesta, «viria a ser a ditadura do ‘Partido’ sobre o povo, e de um punhado de homens sobre o ‘Partido.’»[12]

Referências:

[1] Errico Malatesta, The Method of Freedom: An Errico Malatesta Reader, ed. Davide Turcato(Oakland, CA: AK Press, 2014), 281-2.

[2] Peter Kropotkin, Modern Science and Anarchy, ed. Iain McKay(Oakland, CA: AK Press, 2018), 234, 227. Kropotkin afirma múltiplas vezes nesta obra que o Estado é necessariamente centralizado e hierárquico. Ver: ibid, 199, 275, 310.

[3] Elisée Reclus, Anarchy, Geography, Modernity: Selected Writings of Elisée Reclus, ed. John Clark and Camille Martin (Oakland, CA: PM Press, 2013), 147.

[4] Malatesta, Life and Ideas: The Anarchist Writings of Ericco Malatesta, ed. Vernon Richards (Oakland, CA: PM Press, 2015), 138.

[5] Reclus, Anarchy, Geography, Modernity, 122.

[6] Ibid, 122.

[7] Mikhail Bakunin, Bakunin on Anarchy: Selected Works by the Activist Founder of World Anarchism, ed. Sam Dolgoff(New York: Vintage Books, 1972), 145.

[8] Bakunin, Selected Writings, ed. Arthur Lehning(London: Jonathan Cape, 1973), 254-5.

[9] Bakunin, Statism and Anarchy, ed. Marshall Shatz(Cambridge: Cambridge University Press, 2005), 178.

[10] Ibid, 136.

[11] Ibid, 179.

[12] Malatesta, A Long and Patient Work: The Anarchist Socialism of L’Agitazione 1897-1898, ed. Davide Turcato (Oakland, CA: AK Press, 2016), 27.