Título: Sobre Espontaneidade e Organização
Subtítulo: Panfleto Solidarity Numero 49
Data: 1974
Fonte: https://libcom.org/files/Murray%20Bookchin-%20On%20spontaneity%20and%20organisation.pdf
Notas:
Traduzido por Guilherme Henrique C.
Publicado originalmente na revista Liberation (Nova York, Março de 1972) e Anarchos (No 4, 1973). O grupo Solidarity (Londres) o reimprimiu como um panfleto em dezembro de 1975. (Panfleto Solidarity, No 49).

    Introdução (Solidarity)

    Sobre Espontaneidade e Organização

    1.

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    3.

    4.

    5.

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    7.

    8.

    9.

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    11.

    Notas de Rodapé

Introdução (Solidarity)

Existem poucas palavras mais mal utilizadas na política do que a palavra “espontaneidade”. Ela é frequentemente usada para denotar algo que parece acontecer sem causa óbvia, sem ser aparentemente o resultado de uma preparação anterior. No sentido de “um efeito sem causa”, provavelmente não existe algo como “espontaneidade” – seja na política ou na vida. O comportamento humano é sempre influenciado por experiências anteriores. Se uma pessoa não tem consciência de por que está agindo de determinada maneira, isso não significa de forma alguma que não haja causas para o que ela está fazendo. Significa apenas que as causas escapam da sua compreensão.

Murray Bookchin não usa a palavra “espontaneidade” dessa forma crua e irrefletida. É importante salientar esse ponto semântico nesta breve introdução a seu ensaio (publicado pela primeira vez na revista Liberation no início de 1972). Nas palavras do próprio Bookchin, “Espontaneidade não é mero impulso”... Não implica em um “comportamento e sentimento não deliberados”. “Espontaneidade é comportamento, sentimento e pensamento que está livre de constrangimentos externos, de restrições impostas”. Não é “um eflúvio descontrolado de paixão e ação”. “Na medida em que o indivíduo remove os grilhões de dominação que o sufocavam ou sufocavam sua auto-atividade, ele está agindo, sentindo e pensando espontaneamente”.

Bookchin aqui utiliza a palavra “espontaneidade” como usaríamos a palavra “autonomia”. Literalmente falando, autônomo significa “quem faz suas próprias leis” e, portanto, por implicação, o “que age em seus próprios interesses”. Com a defesa da espontaneidade, entendida neste sentido, não temos divergências significativas com Bookchin. Nossos próprios pontos de vista sobre este assunto são descritos em maiores detalhes em nosso Boletim de Discussão “Solidarity and the Neo-Narodniks”.

Autonomia total tem implicações organizacionais e ideológicas. Bookchin lida com ambas com certa profundidade. Ele aponta que “a espontaneidade não exclui organização e estrutura”, desse modo acabando com uma distorção leninista muito difundida do caso libertário [1]. Bookchin enfatiza que espontaneidade, no sentido em que ele usa o termo, “normalmente produz formas não hierárquicas de organização”.

Iríamos talvez mais longe ao salientar que nenhuma autonomia coletiva é significativa sem repercussões organizacionais. A atividade e a vida autônomas – seja no reino da prática ou no reino das idéias – são impossíveis em uma organização hierarquicamente estruturada. Como Bookchin aponta, “a tragédia do movimento socialista é que ele opõe a organização à espontaneidade e tenta assimilar o processo social ao instrumentalismo político e organizacional”.

O impacto principal do ensaio de Bookchin é, contudo, sobre a necessidade de autonomia ideológica, de quebrar todos os grilhões intelectuais do passado, de varrer as teias de aranha que ainda confundem muito do pensamento de esquerda. Seu maior insight é sua afirmação da necessidade de eliminar a dominação em todas as suas formas, não apenas a exploração material.

Ele enfatiza “a erosão generalizada da autoridade como tal – na família, nas escolas, nas áreas vocacionais e profissionais, na Igreja, no Exército, na verdade, em praticamente todas as instituições que apoiam o poder hierárquico e todas as relações que são marcadas pela dominação “. Ele leva toda a discussão em áreas amplamente evitadas pela esquerda e não tem medo de desafiar muitas de suas premissas mais fundamentais. Com isso, sua própria escrita é uma defesa de sua crença em uma espontaneidade criativa, consciente e coerente. “Consciência”, ele nos diz, “tem sua própria história dentro do mundo material e cada vez mais domina o curso da realidade material. A humanidade é capaz de transcender o reino da necessidade cega, é capaz de dar à natureza e à sociedade uma direção e um propósito racionais”

Se a massa da população deve se tornar o sujeito criativo da história – e não apenas um objeto inerte obrigado a fazer certas coisas por causa das condições de sua existência – esse tipo de mensagem deve ser levada a sério e suas implicações bem pensadas. Para todos aqueles que, independente da idade, não sofrem com o endurecimento das categorias, as opiniões de Bookchin são uma contribuição importante para um debate em andamento.

Solidarity (Londres), Dezembro de 1975.

Sobre Espontaneidade e Organização

Este artigo elaborou um trabalho que li na Conferência Telos sobre Organização em Buffalo, Nova York, em 21 de novembro de 1971. As limitações de espaço não me permitem lidar concretamente com minha visão de que já desenvolvemos as bases tecnológicas para uma sociedade pós-escassez ou descreva com grandes detalhes o tipo de organização que considero adequada ao nosso tempo. Para uma discussão mais abrangente dessas questões, eu recomendaria ao leitor meu livro “Post-Scarcity Anarchism” (Berkeley: Ramparts Books, 1971), especialmente o ensaio “Toward a Liberatory Technology” e o “Discussion on Listen, Marxist” .

1.

É extremamente irônico que o movimento socialista, longe de estar na “vanguarda” dos atuais desenvolvimentos sociais e culturais, permaneça atrás deles em quase todos os detalhes. A compreensão superficial desse movimento acerca da contracultura, sua interpretação anêmica da libertação das mulheres, sua indiferença à ecologia e sua ignorância até mesmo das novas correntes que estão vagando pelas fábricas (particularmente entre os jovens trabalhadores) parecem ainda mais grotescas quando justapostas com sua simplista “análise de classe”, sua propensão para a organização hierárquica e sua invocação ritualística de “estratégias” e “táticas” que já eram inadequadas uma geração atrás.

O socialismo contemporâneo mostrou apenas o mais limitado conhecimento de que milhões de pessoas estão redefinindo lentamente o próprio significado da liberdade. Eles estão ampliando constitutivamente sua imagem da libertação humana para dimensões que teriam parecido irremediavelmente visionárias em eras passadas. Em um número cada vez maior, eles percebem que a sociedade desenvolveu uma tecnologia que pode abolir completamente a escassez material e reduzir o trabalho pesado a ponto de quase desaparecer. Diante das possibilidades de uma sociedade pós-escassez sem classes e com a falta de sentido nas relações hierárquicas, eles estão intuitivamente tentando lidar com os problemas do comunismo, não do socialismo [2]. Estão intuitivamente tentando eliminar a dominação em todas as suas formas, não apenas a exploração material. Daí a erosão generalizada da autoridade como tal – na família, nas escolas, nas áreas vocacionais e profissionais, na igreja, no exército, na verdade, em praticamente todas as instituições que apoiam o poder hierárquico e todas as relações nucleares que são marcadas pela dominação.

Daí, também, a natureza intensamente pessoal da rebelião que está se infiltrando na sociedade, suas qualidades altamente subjetivas, existenciais e culturais. A rebelião afeta a vida cotidiana antes mesmo de afetar visivelmente os aspectos mais amplos da vida social e mina as lealdades concretas do indivíduo ao sistema antes de invalidar as verdades políticas e morais abstratas do sistema.

A essas correntes libertadoras profundamente arraigadas, tão ricas em conteúdo existencial, o movimento socialista continua a opor fórmulas constritivas de um interesse particularista da “classe trabalhadora”, a noção arcaica de uma “ditadura do proletariado” e o conceito sinistro de um partido hierarquicamente centralizado. Se o movimento socialista hoje é sem vida, é porque perdeu todo o contato com ela.

2.

Estamos percorrendo o ciclo completo da história. Estamos retomando os problemas de uma nova sociedade orgânica em um novo nível da história e do desenvolvimento tecnológico – uma sociedade orgânica na qual as divisões dentro da sociedade, entre a sociedade e a natureza, e dentro da psique humana que foram criadas por milhares de anos de desenvolvimento hierárquico pode ser curadas e transcendidas. A sociedade hierárquica realizou o “milagre” nefasto de transformar os seres humanos em meros instrumentos de produção, em objetos iguais a ferramentas e máquinas, definindo assim sua própria humanidade por seu usufruto em um sistema universal de escassez, de dominação e, sob o capitalismo, de troca de mercadorias. Mesmo antes da dominação do homem pelo homem, a sociedade hierárquica trouxe a mulher à subjugação universal ao homem, abrindo um reino de dominação por si mesmo, de dominação em sua forma mais reificada. A dominação, levada às profundezas da personalidade, nos tornou portadores de um legado arcaico e milenar que molda a linguagem, os gestos, enfim, a própria postura que empregamos na vida cotidiana. Todas as revoluções passadas foram muito “olímpicas” para afetar esses aspectos íntimos e ostensivamente mundanos da vida, daí a natureza ideológica de seus objetivos professados ​​de liberdade e a estreiteza de sua visão libertadora.

Em contraste, a meta do novo desenvolvimento em direção ao comunismo é a conquista de uma sociedade baseada na autogestão na qual cada indivíduo participe plena, direta e em completa igualdade na gestão imediata da coletividade. Vista desde os aspectos de seu lado humano concreto, tal coletividade não pode ser nada menos do que a realização de sua própria libertação, do sujeito livre despojado de todas as suas “coisificações”, do eu próprio que pode concretizar a gestão da coletividade como um autêntico modo de autogestão. O enorme avanço do movimento contracultural sobre o movimento socialista é atestado precisamente por um personalismo que vê em objetivos impessoais, mesmo nas propriedades da linguagem, do gesto, do comportamento e do vestir, a perpetuação da dominação em suas formas inconscientes mais insidiosas. Por mais prejudicado que possa estar pela falta de liberdade geral que o cerca, o movimento contracultural redefiniu concretamente a palavra agora inócua “revolução” de uma maneira verdadeiramente revolucionária, como uma práxis que subverte abstrações e teorias apócrifas.

Identificar as reivindicações do eu emergente como “individualismo burguês” é uma distorção grotesca dos objetivos existenciais mais fundamentais da libertação. O capitalismo não produz indivíduos; ele produz egoístas atomizados. Distorcer as reivindicações do eu emergente por uma sociedade baseada na autogestão e reduzir as reivindicações do sujeito revolucionário a uma noção economicista de “liberdade” é buscar o “comunismo bruto” que o jovem Marx tão corretamente desprezou nos manuscritos de 1844. A reivindicação dos comunistas libertários a uma sociedade baseada na autogestão afirma o direito de cada indivíduo de adquirir controle sobre sua vida cotidiana, para tornar cada dia o mais alegre e maravilhoso possível.

A revogação dessa reivindicação pelo movimento socialista nos interesses abstratos da “Sociedade”, da “História”, do “Proletariado”, e mais tipicamente do “Partido”, assimila e fomenta a antítese burguesa entre o indivíduo e a coletividade no interesse da manipulação burocrática, da renúncia ao desejo e da subserviência do indivíduo e da coletividade aos interesses do Estado.

3.

Não pode haver sociedade baseada na autogestão sem auto-atividade. Na verdade, a revolução é auto-atividade em sua forma mais avançada: ação direta levada ao ponto em que as ruas, a terra e as fábricas são apropriadas pelas pessoas autônomas. Até que essa ordem de consciência seja atingida, a consciência pelo menos no nível social permanece a consciência de massa, o objeto de manipulação pelas elites. Só por esta razão, os revolucionários autênticos devem afirmar que a forma mais avançada de consciência de classe é a autoconsciência: a individuação das “massas” em seres conscientes que podem assumir o controle direto e não mediado da sociedade e de suas próprias vidas. E apenas por essa razão, também, os revolucionários autênticos devem afirmar que a única “tomada de poder” real pelas “massas” é a dissolução do poder: o poder do humano sobre outro humano, da cidade sobre o campo, do estado sobre a comunidade e da mente sobre o sensível.

4.

É a luz dessas demandas por uma sociedade baseada na autogestão, alcançada por meio da auto-atividade e alimentada pela autoconsciência, que devemos examinar a relação da espontaneidade para com a organização. Implícita em toda afirmação de que as “massas” requerem a “liderança” das “vanguardas” está a convicção de que a revolução é mais um problema de “estratégia” e “tática” do que um processo social [3]; que as “massas” não podem criar suas próprias instituições libertadoras, mas devem contar com o poder do estado – uma “ditadura do proletariado” – para organizar a sociedade e extirpar a contra-revolução. Cada uma dessas noções é desmentida pela história, até mesmo pelas revoluções particularistas que substituíram o domínio de uma classe por outra. Quer se volte para a Grande Revolução Francesa de dois séculos atrás, para os levantes de 1848, para a Comuna de Paris, para as revoluções russas de 1905 e março de 1917, para a Revolução Alemã de 1918, para a Revolução Espanhola de 1934 e 1936, ou a Revolução Húngara de 1956, encontra-se um processo social, às vezes muito prolongado, que culminou na derrubada de instituições estabelecidas sem a orientação de partidos de “vanguarda” (na verdade, onde esses partidos existiram, geralmente ficaram para trás em relação aos eventos). Descobrimos que as “massas” formaram suas próprias instituições libertadoras, sejam estas as seções parisienses de 1793–1794, os clubes e milícias de 1848 e 1871, ou os comitês de fábrica, conselhos de trabalhadores, assembleias populares e comitês de ação de levantes posteriores .

Seria uma simplificação grosseira desses eventos alegar que a contra-revolução ergueu sua cabeça e triunfou onde o fez meramente porque as “massas” eram incapazes de se auto-coordenar e não tinham a “liderança” de um partido centralizado bem disciplinado. Chegamos aqui a um dos problemas mais incômodos do processo revolucionário, um problema que nunca foi adequadamente compreendido pelo movimento socialista. Essa coordenação estava ausente ou falhou – de fato, essa contra-revolução efetiva ser até mesmo possível – levanta uma questão mais fundamental do que um mero problema de “administração técnica”. Onde avançadas e essencialmente prematuras revoluções falharam, isso ocorreu principalmente porque tais revoluções não tinham base material para consolidar o interesse geral da sociedade para o qual os elementos mais radicais demarcaram uma afirmação histórica. Seja o grito deste interesse geral “Liberdade, Igualdade, Fraternidade” ou “Vida, Liberdade e a Busca da Felicidade”, permanece o fato desagradável de que não existiam as premissas tecnológicas para a consolidação deste interesse geral na forma de um sociedade harmoniosa. Que o interesse geral se dividiu novamente durante o processo revolucionário em interesses particulares antagônicos – o que levou da euforia da “reconciliação” (como testemunham as grandes festas nacionais que se seguiram à queda da Bastilha) ao pesadelo da guerra de classes, terror e contra-revolução – o que deve ser explicado principalmente pelos limites materiais do desenvolvimento social, não por problemas técnicos de coordenação política.

As grandes revoluções burguesas foram bem sucedidas socialmente mesmo onde pareciam falhar “tecnicamente” (ou seja, perder o poder para os “terroristas sonhadores” radicais) porque eram totalmente adequadas ao seu tempo. Nem o exército nem as instituições da sociedade absolutista puderam resistir aos seus golpes. Em seus primórdios, pelo menos, essas revoluções apareceram como a expressão da “vontade geral”, unindo virtualmente todas as classes sociais contra as aristocracias e monarquias de sua época, e até mesmo dividindo a aristocracia contra si mesma. Em contraste a isso, todas as “revoluções proletárias” falharam porque as premissas tecnológicas eram inadequadas para a consolidação material de uma “vontade geral”, a única base sobre a qual os dominados podem finalmente eliminar a dominação. Assim, a Revolução de Outubro fracassou socialmente, embora parecesse ter sucesso “tecnicamente” – apesar de todos os mitos leninistas, trotskistas e stalinistas em contrário – e o mesmo é verdade para as “revoluções socialistas” da Ásia e da América Latina. Quando a “revolução proletária” e o seu tempo se adequarem – e precisamente porque se adequam – a revolução deixará de ser “proletária”, obra das criaturas particularizadas da sociedade burguesa, da sua ética de trabalho, sua disciplina fabril, sua hierarquia industrial e seus valores. A revolução será uma revolução popular no sentido autêntico da palavra [4].

5.

Não foi por falta de organização que as revoluções passadas de elementos radicais falharam, mas sim porque todas as sociedades anteriores eram sistemas organizados sobre a necessidade. Em nosso próprio tempo, na era da revolução final generalizada, o interesse geral da sociedade pode ser tangível e imediatamente consolidado por uma tecnologia pós-escassez em direção a abundância material para todos, até mesmo pelo desaparecimento do trabalho pesado como uma característica subjacente da condição humana. Com o alavancar de uma abundância material sem precedentes, a revolução pode remover as premissas mais fundamentais da contra-revolução – a escassez que nutre o privilégio e a razão para a dominação. Nenhum setor da sociedade precisa mais “tremer”com a perspectiva de uma revolução comunista, e isso deve ser tornado evidente para todos os que estão no mínimo preparados para ouvir [5].

Em tempo, a estrutura aberta por essas possibilidades qualitativamente novas levará a uma notável simplificação da histórica “questão social”. Como Joseph Weber observou em The Great Utopia, essa revolução – a mais universal e totalística a ocorrer – aparecerá como o “próximo passo prático”, como a práxis imediata envolvida na reconstrução social. E, de fato, passo a passo a contracultura foi assumindo, não apenas subjetivamente, mas também em suas formas mais concretas e práticas, uma imensa gama de questões que afetam diretamente o futuro utópico da humanidade, questões que apenas uma geração atrás poderiam ser apresentados (se é que o foram) apenas como os problemas mais esotéricos da teoria. Analisar essas questões e refletir sobre a rapidez estonteante com que surgiram em menos de uma década é simplesmente impressionante, sem precedentes na história. Apenas os principais precisam ser citados: a autonomia de si e o direito à autorrealização; a evolução do amor, sensualidade e a expressão livre do corpo; a expressão espontânea de sentimento; a desalienação das relações entre as pessoas; a formação de comunidades e comunas; o livre acesso de todos aos meios de vida; a rejeição do mundo das commodities de plástico e suas profissões; a prática da ajuda mútua; a aquisição de habilidades e contra-tecnologias; uma nova reverência pela vida e pelo equilíbrio com a natureza; a substituição da ética do trabalho pelo trabalho significativo e pelas reivindicações de prazer; na verdade, uma redefinição prática da liberdade que um Fourier, um Marx ou um Bakunin raramente se aproximavam no reino do pensamento. O ponto a ser enfatizado é que estamos testemunhando um novo Iluminismo (mais abrangente até do que meio século de iluminismo que precedeu a Grande Revolução Francesa) que está desafiando lentamente não apenas a autoridade das instituições e valores estabelecidos, mas a autoridade como tal. Percorrendo da intelectualidade, das classes médias e da juventude em geral para todos os estratos da sociedade, esse esclarecimento está lentamente minando a família patriarcal, a escola como um sistema organizado de socialização repressiva, as instituições do Estado e a hierarquia da fábrica. Está corroendo a ética do trabalho, a santidade da propriedade e o tecido da culpa e renúncia que internamente nega a cada indivíduo o direito à plena realização de suas potencialidades e prazeres. Na verdade, não é mais apenas o capitalismo que está no banco dos réus da história, mas o legado cumulativo de dominação que policiou o indivíduo de dentro por milhares de anos, os “arquétipos” de dominação, por assim dizer, que comprometem o Estado com nossas vidas inconscientes.

A enorme dificuldade que surge para compreender esse Iluminismo é sua invisibilidade às análises convencionais. O novo Iluminismo não é simplesmente mudar a consciência, uma mudança que muitas vezes é bastante superficial na ausência de outras mudanças. As mudanças usuais de consciência que marcaram períodos anteriores de radicalização poderiam ser levadas a cabo com bastante leveza, como meras teorias, opiniões ou um pundit cerebral que muitas vezes era confortavelmente descarregado fora do fluxo da vida diária. O significado do novo Iluminismo, entretanto, é que ele está alterando o aparato inconsciente do indivíduo antes mesmo de poder ser articulado conscientemente como uma teoria social ou um compromisso com convicções políticas.

Visto do ponto de vista de uma análise tipicamente socialista – uma análise que se concentra quase exclusivamente na “consciência” e é quase totalmente carente de percepções psicológicas – o novo Iluminismo parece produzir apenas os resultados “políticos” mais fracos. Evidentemente, a contracultura não produziu nenhum partido radical de “massa” e nenhuma mudança “política” visível. Visto do ponto de vista de uma análise comunista, entretanto – uma análise que lida com o legado inconsciente de dominação – o novo Iluminismo está lentamente dissolvendo a obediência do indivíduo às instituições, autoridades e valores que viciaram todas as lutas pela liberdade. Essas mudanças profundas tendem a ocorrer quase sem saber, como por exemplo entre os trabalhadores que, no domínio concreto da vida cotidiana, se envolvem em sabotagem, trabalham com indiferença, praticam o absenteísmo quase sistemático, resistem à autoridade em quase todas as formas, usam drogas, adquirem vários traços estranhos – e ainda, no domínio abstrato da política e da filosofia social, aclamam as homilias mais convencionais do sistema. O caráter explosivo da revolução, sua rapidez e total imprevisibilidade, podem ser explicados apenas como a erupção dessas mudanças inconscientes em consciência, como uma liberação da tensão entre desejos inconscientes e visões sustentadas conscientemente na forma de um confronto direto com a ordem existente . A erosão das restrições inconscientes a esses desejos e a plena expressão dos desejos que residem no inconsciente individual é uma pré-condição para o estabelecimento de uma sociedade libertadora. Em certo sentido, podemos dizer que a tentativa de mudar a consciência é uma luta pelo inconsciente, tanto em termos das algemas que restringem o desejo quanto dos desejos que estão acorrentados.

6.

Hoje, não se trata de saber se a espontaneidade é “boa” ou “má”, “desejável” ou “indesejável”. A espontaneidade é parte integrante da própria dialética da autoconsciência e da auto-desalienação que remove os grilhões subjetivos estabelecidos pela ordem atual. Negar a validade da espontaneidade é negar a dialética mais libertadora que está ocorrendo hoje; como tal, para nós deve ser um dado que existe por si só. O termo deve ser definido para que seu conteúdo não desapareça em sofismas semânticos. A espontaneidade não é um mero impulso, certamente não em sua forma mais avançada e verdadeiramente humana, e esta é a única forma que vale a pena discutir. Nem a espontaneidade implica em comportamento e sentimento não deliberados. A espontaneidade é um comportamento, sentimento e pensamento que está livre de constrangimentos externos, de restrições impostas. É um comportamento, sentimento e pensamento auto-controlado, controlado internamente, não um eflúvio descontrolado de paixão e ação. Do ponto de vista comunista libertário, a espontaneidade implica na capacidade do indivíduo de impor autodisciplina e formular diretrizes sólidas para a ação social. Na medida em que o indivíduo remove os grilhões de dominação que sufocaram sua atividade pessoal, ele está agindo, sentindo e pensando espontaneamente. Podemos muito bem eliminar a palavra “auto” de “autoconsciência”, “auto-atividade” e “autogestão”, assim como remover o conceito de espontaneidade de nossa compreensão do novo iluminismo, revolução e comunismo. Se há uma necessidade imperiosa de uma consciência comunista no movimento revolucionário de hoje, nunca podemos esperar alcançá-la sem espontaneidade.

A espontaneidade não exclui organização e estrutura. Pelo contrário, a espontaneidade normalmente produz formas não hierárquicas de organização, formas que são verdadeiramente orgânicas, auto-criativas e baseadas no voluntarismo. A única questão séria que surge em relação à espontaneidade é onde ela é instruída ou não. Como argumentei em outro lugar, a espontaneidade de uma criança em uma sociedade libertadora não será da mesma ordem que a espontaneidade de um jovem, ou a de um jovem da mesma ordem que a de um adulto; cada um estará simplesmente mais informado, mais sábio e mais experiente do que seu mais novo [6]. Os revolucionários podem providenciar hoje para promover esse processo informativo, mas se tentarem contê-lo ou destruí-lo formando movimentos hierárquicos, eles corromperão o próprio processo de auto-realização que produzirá a auto-atividade e a sociedade baseada na autogestão.

Não menos sério para qualquer movimento revolucionário é o fato de que somente se uma revolução for espontânea podemos estar razoavelmente certos de que a “condição necessária” para a revolução amadureceu, por assim dizer, dentro da “condição suficiente”. É quase certo que uma revolta planejada por uma elite hoje levará ao desastre. O poder estatal que enfrentamos é formidável, seu armamentário é tão destrutivo e, se sua estrutura ainda está intacta, sua eficiência é muito atraente para ser removida por uma disputa em que o armamento é o fator determinante. O sistema deve cair, não lutar; e só cairá quando suas instituições forem tão esvaziadas pelo novo Iluminismo, e seu poder tão minado física e moralmente, que um confronto insurrecional seja mais simbólico do que real. Exatamente quando ou como esse “momento mágico”, tão característico da revolução, ocorrerá é imprevisível. mas, por exemplo, quando uma greve local, normalmente ignorada em circunstâncias “normais”, pode desencadear uma greve geral revolucionária, então saberemos que as condições amadureceram – e isso pode ocorrer apenas quando o processo revolucionário foi permitido encontrar seu próprio nível de confrontação revolucionária [7].

7.

Se é verdade que a revolução hoje é um ato de consciência no sentido mais amplo e acarreta uma desmistificação da realidade que remove todas as suas armadilhas ideológicas, não é o suficiente dizer que “a consciência segue o ser”. Lidar com o desenvolvimento da consciência meramente como o reflexo da subjetividade do desenvolvimento da produção material, para dizer como o Marx mais velho diz que a moralidade, a religião e a filosofia são os “reflexos e ecos ideológicos” da realidade e “não têm história nem desenvolvimento próprio”, é colocar a formação da ideologia e, assim, negar a essa consciência qualquer base autêntica para transcender o mundo como ele é dado [8]. Aqui, a própria consciência comunista se torna um “eco” da realidade. O “porquê” na explicação dessa consciência é reduzido ao “como”, no típico estilo instrumentalista; os elementos subjetivos envolvidos na transformação da consciência tornam-se completamente objetificados. A subjetividade deixa de ser um domínio por si mesma, daí o fracasso do marxismo em formular uma psicologia revolucionária própria e a incapacidade dos marxistas de compreender o novo iluminismo que está transformando a subjetividade em todas as suas dimensões.

A filosofia ocidental clássica em sua noção ampla, embora muitas vezes mistificada, de “espírito”, reconheceu que a razão cada vez mais “subsume” o mundo material – ou, afirmado em um sentido mais “materialista”, que a substância se torna racional e a razão forma seu próprio “córtex”, por assim dizer, sobre a história natural e social. A razão é, em última análise, a natureza e a sociedade tornadas conscientes. Nesse sentido, é insuficiente dizer que “a consciência segue o ser”, mas sim que o ser se desenvolve em direção à consciência; que a consciência tem sua própria história dentro do mundo material e ganha cada vez mais domínio sobre o curso da realidade material. A humanidade é capaz de transcender o reino da necessidade cega; é capaz de dar à natureza e à sociedade uma direção e um propósito racionais.

Essa interpretação mais ampla da relação entre consciência e ser não é uma abstração filosófica remota. Pelo contrário, é eminentemente prático. Seguida até sua conclusão lógica, esta interpretação requer uma revisão fundamental da noção tradicional de consciência revolucionária como consciência de classe.Se o proletariado, por exemplo, é concebido apenas como o produto de seu ser concreto – como objeto de exploração pela burguesia e uma criatura do sistema de fábrica – ele é reduzido em sua própria essência a uma categoria de economia política. Marx não nos deixa dúvidas acerca dessa concepção. Como a classe mais completamente desumanizada, o proletariado transcende sua condição desumanizada e passa a encarnar a totalidade humana “por uma necessidade urgente, não mais disfarçável, absolutamente imperativa ...”

Consequentemente: “A questão não é o que este ou aquele proletário, ou mesmo todo o proletariado no momento considera como seus objetivos. A questão é o que o proletariado é, e o que, como consequência desse ser, ele será obrigado a fazer.” (A ênfase é de Marx e fornece um comentário revelador sobre a dessubjetivação do proletariado.) Deixarei de lado o fundamento lógico que essa fórmula fornece para uma organização elitista. Por ora, é importante notar que Marx, seguindo a tradição da economia política burguesa clássica, objetifica totalmente o proletariado e o remove como um verdadeiro sujeito. A revolta do proletariado, mesmo sua humanização, deixa de ser um fenômeno humano; em vez disso, torna-se uma função de leis econômicas inexoráveis ​​e da “necessidade imperativa”. A essência do proletariado como proletariado é sua não-humanidade, sua natureza de criatura como produto de uma “necessidade absolutamente imperativa”. Sua subjetividade cai na categoria de necessidade severa, explicável em termos de direito econômico. A psicologia do proletariado, com efeito, é economia política.

O verdadeiro proletariado resiste a essa redução de sua subjetividade ao produto da necessidade e vive cada vez mais no reino do desejo, da possibilidade. Como tal, torna-se cada vez mais racional no sentido clássico, não instrumentalista, do termo. Concretamente, o trabalhador resiste à ética do trabalho porque ela se tornou irracional diante das possibilidades de uma sociedade não hierárquica. O trabalhador, nesse sentido, transcende sua natureza de criatura e se torna cada vez mais um sujeito, não um objeto; um não-proletário, não um proletário. Desejo, não meramente carência, possibilidade, não meramente necessidade, entra em sua auto-formação e auto-atividade. O trabalhador começa a se desfazer de seu status de laboriosidade, sua existência como mero ser de classe, como objeto de forças econômicas, como mero “ente”, e torna-se cada vez mais acessível ao novo Iluminismo.

À medida que a essência humana do proletariado começa a substituir sua essência fabril, o trabalhador pode agora ser alcançado tão facilmente fora da fábrica quanto nela. Concretamente, o aspecto do trabalhador como mulher ou homem, como pai, como morador urbano, como jovem, como vítima da degradação ambiental, como sonhador (a lista é quase infinita), ganha cada vez mais o primeiro plano. As paredes da fábrica tornam-se permeáveis ​​à contracultura a um ponto em que ela começa a competir com as preocupações e valores “proletários” do trabalhador.

Nenhum “grupo de trabalhadores” pode se tornar verdadeiramente revolucionário a menos que lide com as aspirações humanas do trabalhador individual, a menos que ajude a desalienar o meio social pessoal do trabalhador e comece a transcender o meio social do trabalhador fabril. A classe trabalhadora se torna revolucionária não apesar de si mesma, mas por causa de si mesma, literalmente como resultado de sua individualidade desperta [9].

8.

Os revolucionários têm a responsabilidade de ajudar outros a se tornarem revolucionários, não de “fazer” revoluções. E essa atividade só começa quando o revolucionário individual se compromete a se refazer. Obviamente, tal tarefa não pode ser realizada em um vácuo pessoal; pressupõe relações existenciais com outros semelhantes, que são afetuosos e se apoiam mutuamente. Esta concepção de organização revolucionária forma a base do grupo de afinidade anarquista. Os membros de um grupo de afinidade se consideram irmãs e irmãos cujas atividades e estruturas são, nas palavras de Josef Weber, “transparentes para todos”. Esses grupos funcionam como catalisadores em situações sociais, não como elites; procuram promover a consciência e as lutas das comunidades mais amplas em que atuam, e não assumir posições de comando.

Tradicionalmente, a atividade revolucionária foi permeada por temas de “sofrimento”, “negação” e “sacrifício”, temas que refletiam amplamente a culpa dos quadros intelectuais do movimento revolucionário. Ironicamente, na medida em que esses temas ainda existem, eles refletem os próprios aspectos anti-humanos da ordem estabelecida que as “massas” procuram abolir. O movimento revolucionário (se é que pode ser chamado assim hoje), portanto, tende, ainda mais do que a ideologia, a “ecoar” a realidade prevalecente – pior, a condicionar as “massas” ao sofrimento, ao sacrifício e à negação em suas próprias mãos e às consequências da revolução. Em oposição a essa versão moderna da “virtude republicana”, os grupos de afinidade anarquista afirmam não apenas o lado racional, mas o alegre, o sensual e o estético da revolução. Eles afirmam que a revolução não é apenas um assalto à ordem estabelecida, mas também um festival nas ruas. A revolução é o desejo transportado para o terreno social e universalizado. Não é sem riscos graves, tragédias e dor, mas esses são os riscos, tragédias e dor do nascimento e uma nova vida, não de contrição e morte. Os grupos de afinidade afirmam que somente um movimento revolucionário que mantém essa visão pode criar a chamada “propaganda revolucionária” à qual a nova sensibilidade popular pode responder – uma “propaganda” que é arte no sentido de um Daumier, um John Milton e um John Lennon. Na verdade, a verdade hoje pode existir apenas como arte e a arte apenas como verdade [10].

O desenvolvimento de um movimento revolucionário envolve semear os Estados Unidos com tais grupos de afinidade, com comunas e coletivos – nas cidades, no campo, nas escolas e nas fábricas. Esses grupos seriam órgãos íntimos e descentralizados que lidariam com todas as facetas da vida e experiências. Cada grupo seria altamente experimental, inovador e orientado para mudanças no estilo de vida e também na consciência; cada grupo seria constituído de modo que pudesse se dissolver prontamente nas instituições revolucionárias criadas pelo povo e desaparecer como um interesse social separado. Finalmente, cada um deles tentaria refletir da melhor maneira possível as formas libertadas do futuro, não o mundo dado que é refletido pela tradicional “esquerda”. Cada um, com efeito, se constituiria em um centro de energia para transformar a sociedade e colonizar o presente pelo futuro.

Esses grupos poderiam se interligar, se federar e estabelecer comunicação em nível regional e nacional conforme a necessidade, sem abrir mão de sua autonomia e singularidade. Eles seriam grupos orgânicos surgidos de problemas e desejos da vida, não grupos artificiais impingidos às situações sociais pelas elites. Tampouco tolerariam uma organização de quadros cujo único nexo seja o “acordo programático” e a obediência a funcionários e órgãos superiores.

Podemos muito bem perguntar se uma “organização de massas” pode ser uma organização revolucionária em um período que ainda não está maduro para uma revolução comunista? A contradição torna-se evidente quando associamos a palavra “massa” à “revolução comunista” [11]. Para ser exato, os movimentos de massa foram construídos em nome do socialismo e do comunismo durante os períodos não revolucionários, mas eles alcançaram proporções de massa apenas desnaturando os conceitos de socialismo, comunismo e revolução. Pior, eles não apenas traem seus ideais professados ​​ao desnaturá-los, mas também se tornam obstáculos no caminho da revolução. Longe de moldar o destino da sociedade, eles se tornam criaturas da própria sociedade a que professam se opor.

A tentação de preencher a lacuna entre a sociedade dada e o futuro é inerentemente traiçoeira. A revolução é uma ruptura não apenas com a ordem social estabelecida, mas com a psique e a mentalidade que ela engendra. Trabalhadores, estudantes, agricultores, intelectuais, na verdade todos os estratos potencialmente revolucionários, literalmente rompem consigo mesmos quando entram em movimento revolucionário, não apenas com a ideologia abstrata da sociedade. E até que façam essa ruptura, eles não são revolucionários. Um movimento autodenominado “revolucionário” que tenta assimilar esses estratos com “programas de transição” e semelhantes obterá seu apoio e participação pelas razões erradas. O movimento, por sua vez, será moldado pelas pessoas que em vão tentou assimilar, não pelas pessoas pelo movimento. Admitindo-se que o número de revolucionários hoje seja minúsculo, admitimos, além disso, que a grande maioria das pessoas hoje se ocupa com os problemas da sobrevivência, não da vida.

Mas é precisamente esta preocupação com os problemas da sobrevivência, e os valores, bem como as necessidades que a promovem, que os impede de se voltar para os problemas da vida – e então para a ação revolucionária. A ruptura com a ordem existente só se fará quando os problemas da vida se infiltrarem e assimilarem os problemas da sobrevivência – quando a vida é entendida como a pré-condição para a sobrevivência hoje – não por rejeitar o problema da vida para assumir os problemas da sobrevivência, isto é, para alcançar uma organização de “massa” composta apenas por “massas”.

A revolução é um momento mágico não apenas porque é imprevisível; é um momento mágico porque também pode precipitar na consciência em semanas, até dias, uma deslealdade que está profundamente escondida no inconsciente. Mas a revolução deve ser vista como mais do que apenas um “momento”; é uma dialética complexa mesmo dentro de sua própria estrutura. Uma revolução majoritária não significa que a grande maioria da população deva necessariamente entrar em movimento revolucionário ao mesmo tempo. Inicialmente, as pessoas em movimento podem ser uma minoria da população – uma minoria substancial, popular e espontânea, com certeza, não uma pequena elite “bem disciplinada”, centralizada e mobilizada. O consentimento da maioria pode revelar-se simplesmente no fato de que não mais defenderá a ordem estabelecida. Pode “agir” recusando-se a agir em apoio às instituições dominantes – uma atitude de “esperar para ver” para determinar se, ao negar à classe dominante sua lealdade, a classe dominante se tornará impotente. Só depois de testar a situação por sua passividade ela pode passar à atividade aberta – e então com uma rapidez e em uma escala que remove, em um período incrivelmente breve, instituições, relações, atitudes e valores que vêm sendo construídos há séculos.

9.

Nos Estados Unidos, qualquer movimento “revolucionário” organizado que funcione com objetivos distorcidos seria infinitamente pior do que nenhum movimento. A “esquerda” já infligiu uma quantidade terrível de danos à contracultura, o movimento de libertação das mulheres e o movimento estudantil. Com suas pretensões exageradas, seu comportamento desumanizador e suas práticas manipuladoras, a “esquerda” tem contribuído enormemente para a desmoralização que existe hoje. Na verdade, pode muito bem ser que em qualquer situação revolucionária futura a “esquerda” (particularmente suas formas autoritárias) levantará problemas que são mais formidáveis ​​que os da burguesia, isto é, se o processo revolucionário falhar em transformar os “revolucionários”.

E há muito que precisa ser transformado – não apenas nas visões sociais e atitudes pessoais, mas na própria maneira como os “revolucionários” (especialmente os “revolucionários” do sexo masculino) interpretam a experiência. O “revolucionário”, não menos do que as “massas”, incorpora atitudes que refletem uma visão inerentemente dominadora em relação ao mundo externo. O modo ocidental de percepção tradicionalmente define a individualidade em termos antagônicos, em uma matriz de oposição entre os objetos e sujeitos que estão fora do “eu”. O eu não é meramente um ego que se distingue dos “outros” externos, é um ego que busca controlar esses outros e trazê-los à subjugação. A relação sujeito / objeto define subjetivamente como função da dominação, da dominação dos objetos e da redução de outros sujeitos a objetos. A identidade ocidental, certamente em suas formas masculinas, é uma identidade de apropriação e manipulação em sua própria auto-definição e definição de relacionamentos. Essa auto- e relacional definição pode ser ativa em alguns indivíduos, passiva em outros, ou revelar-se precisamente na atribuição mútua de papéis com base em um eu dominador e dominado, mas a dominação permeia quase universalmente o modo predominante de vivenciar a realidade.

Praticamente todas as tendências da cultura ocidental reforçam esse modo de vivência – não apenas as tendências burguesas e judaico-cristãs, mas também as marxianas. A definição de Marx do processo de trabalho como modo de autodefinição, uma noção que ele toma emprestado de Hegel, é explicitamente apropriadora e latentemente exploradora. O homem se forma mudando o mundo; ele se apropria dele, remodela-o de acordo com suas “necessidades” e, assim, projeta, materializa-se e verifica-se nos objetos de seu próprio trabalho. Essa concepção da autodefinição do homem constitui o ponto de partida de toda a teoria do materialismo histórico de Marx. “Os homens podem ser distinguidos dos animais pela consciência, pela religião ou qualquer outra coisa que você quiser”, observa Marx em sua famosa passagem de A ideologia Alemã. “Eles começam a se distinguir dos animais assim que começam a produzir seus meios de subsistência ... À medida que os indivíduos expressam sua vida, assim eles são. O que são, portanto, coincide com a sua produção, tanto com o que produzem e de como eles produzem. A natureza dos indivíduos, portanto, depende das condições materiais que determinam sua produção.”

Na Fenomenologia do Espírito de Hegel, o tema do trabalho é retomado no contexto da relação senhor / escravo. Aqui, o sujeito torna-se um objeto no sentido dual em que outro eu (o escravo) é objetificado e concomitantemente reduzido a um instrumento de produção. O trabalho escravo, no entanto, torna-se a base para uma consciência autônoma e individualidade. Por meio do trabalho e do labor a “consciência do escravo vem a si ...”, observa Hegel. “Trabalho é desejo restringido e controlado, evanescência retardada e adiada; em outras palavras, o trabalho molda e modela a coisa. “A atividade de “dar o contorno e a forma” é a “auto-existência pura da consciência [do escravo], que agora no trabalho que faz é exteriorizada e passa para a condição de permanência. A consciência que labuta e serve de acordo alcança por este meio a apreensão direta daquele ser independente como ele mesmo.”

Hegel transforma o aprisionamento do trabalho na relação senhor / escravo – ou seja, no quadro da dominação – com a dialética que se segue a esse “momento”. Eventualmente, a cisão entre o sujeito e o objeto como antagonismo é curada, embora como razão cumprida na totalidade da verdade, na Ideia Absoluta. Marx não vai além do momento da relação senhor / escravo. O momento é transfixado e aprofundado na teoria marxista da luta de classes – a meu ver, uma falha grave que nega consciência a história de uma dialética emergente [12] – e a divisão entre sujeito e objeto nunca é totalmente reconciliada. Apesar de todas as interpretações do “naturalismo feuerbachiano” do jovem Marx, a humanidade, na visão de Marx, transcende a dominação de forma ambivalente, ao dominar a natureza. A natureza é reduzida ao “escravo”, por assim dizer, de uma sociedade harmonizada, e o eu não anula seu conteúdo prometeico [13]. Assim, o tema da dominação ainda está latente na interpretação de Marx do comunismo; a natureza ainda é objeto de dominação. Assim concebido, o conceito marxista de natureza – à parte as noções mais ambivalentes do jovem Marx – vicia a reconciliação de sujeito e objeto que deve ser alcançada por uma sociedade harmônica.

Que “objetos” existem e devem ser “manipulados” é uma pré-condição óbvia para a sobrevivência humana que nenhuma sociedade, por mais harmoniosa que seja, pode transcender. Mas se “objetos” existem meramente como objetos ou se sua “manipulação” permanece meramente manipulação – ou, de fato, se o trabalho, como distinto da arte e do jogo, constitui o modo primário de autodefinição – é um assunto bem diferente. A questão-chave em torno da qual essas distinções giram é a dominação – uma relação apropriativa que é definida por uma concepção egoísta de necessidade [14]. Na medida em que a necessidade do eu existe exclusivamente para si mesmo, sem levar em conta a integridade (ou o que Hegel bem poderia chamar de “subjetividade”) do outro, o outro permanece mero objeto para o eu e o manuseio desse objeto torna-se mera apropriação. Mas, na medida em que o outro é visto como um fim em si mesmo e a necessidade é definida em termos de apoio mútuo, o eu e o outro entram em uma relação de complementaridade. Essa relação complementar atinge sua forma mais harmonizada no jogo autêntico [15]. Complementaridade como distinta de dominação – mesmo das formas mais benignas de relações contratuais e ajuda mútua designadas como “reciprocidade” – pressupõe um novo animismo que respeita o outro por si mesmo e responde ativamente na forma de uma simbiose criativa, afetuosa e de apoio.

A dependência sempre existe. Como ela existe e por que existe, no entanto, permanece crítico para a compreensão de qualquer distinção entre dominação e complementaridade. Os infantes sempre dependerão dos adultos para satisfazer suas necessidades fisiológicas mais elementares, e os mais jovens sempre precisarão da ajuda dos mais velhos para o conhecimento e a garantia da experiência. Da mesma forma, as gerações mais velhas dependerão das mais jovens para a reprodução da sociedade e para o estímulo que vem da investigação e de novas visões em relação à experiência.

Na sociedade hierárquica, a dependência normalmente produz a subjugação e a negação da individualidade do outro. Diferenças de idade, sexo, modos de trabalho, níveis de conhecimento, tendências intelectuais, artísticas e emocionais, aparência física – uma vasta gama de diversidade que poderia resultar em uma constelação nutritiva de inter-relações e interdependências – são todas reagrupadas objetivamente em termos de comando e obediência, superioridade e inferioridade, direitos e deveres, privilégios e negações. Essa organização hierárquica das aparências ocorre não apenas no mundo social; encontra a sua contrapartida na forma como os fenômenos, sejam eles sociais, naturais ou pessoais, são vivenciados internamente. O eu na sociedade hierárquica não apenas vive, age e se comunica hierarquicamente, ele pensa e sente hierarquicamente organizando a vasta diversidade de dados sensoriais, memória, valores, paixões e pensamentos ao longo de linhas hierárquicas. As diferenças entre coisas, pessoas e relações não existem como fins em si mesmas; eles são organizados hierarquicamente na própria mente e opostos uns aos outros de forma antagônica em vários graus de dominação e obediência, mesmo quando eles poderiam ser complementares um ao outro na realidade dominante.

O Panorama da comunidade humana orgânica primitiva, pelo menos em sua forma mais harmonizada, permaneceu essencialmente livre de modos hierárquicos de percepção; na verdade, é questionável se a humanidade poderia ter emergido da animalidade sem um sistema de reciprocidades sociais que compensasse as limitações físicas de um frágil primata que vivia na savana. Em grande medida, essa visão não hierárquica inicial era mistificada; não apenas plantas e animais, mas vento e pedras eram vistos como dotados de vida. Cada um era visto, entretanto, como o elemento espiritualizado de um todo do qual os humanos participavam como um entre muitos, nem acima nem abaixo dos outros. Idealmente, essa perspectiva era fundamentalmente igualitária e refletia a natureza igualitária da comunidade.

Se aceitarmos a análise de Dorothy Lee da sintaxe do índio Wintu, a dominação em qualquer forma estava ausente até mesmo da linguagem; assim, uma mãe Wintu não “levou” seu filho para a sombra, ela “foi” com seu filho para a sombra. Nenhuma hierarquia foi imputada ao mundo natural, pelo menos não até que a comunidade humana começou a se tornar hierárquica. Depois disso, a própria experiência tornou-se cada vez mais hierárquica, refletindo as cisões que solaparam a unidade da comunidade humana orgânica primitiva.

O surgimento do patriarcalismo, das classes sociais, das cidades e o antagonismo resultante entre a cidade e o campo, do Estado e, finalmente, das distinções entre trabalho mental e físico que dividia o indivíduo internamente minou completamente essa perspectiva.

A sociedade burguesa, ao degradar todos os laços sociais a um nexo de mercadoria e ao reduzir toda a atividade produtiva à “produção por si mesma”, levou a perspectiva hierárquica a um antagonismo absoluto com o mundo natural. Embora seja certamente correto dizer que essa perspectiva e os vários modos de trabalho que a produziram também produziram avanços incríveis na tecnologia, o fato é que esses avanços foram alcançados trazendo o conflito entre a humanidade e a natureza a um ponto em que o fundamento natural para a vida está precariamente em jogo. As instituições que surgiram com a sociedade hierárquica, aliás, já atingiram seus limites históricos. Embora tenham sido as agências sociais que promoveram o avanço tecnológico, agora elas se tornaram as forças mais atraentes para o desequilíbrio ecológico. A família patriarcal, o sistema de classes, a cidade e o estado estão se desintegrando em seus próprios termos; pior, eles estão se tornando fontes de desintegração social e conflito maciço. Como indiquei em outro lugar, os meios de produção tornaram-se formidáveis demais ​​para serem usados ​​como meios de dominação. É a própria dominação que deve desaparecer, e com a dominação o legado histórico que perpetua a perspectiva hierárquica em relação à experiência.

10.

A emergência da ecologia como questão social nos lembra até que ponto estamos voltando novamente aos problemas de uma sociedade orgânica, uma sociedade em que as cisões dentro da sociedade e entre a sociedade e a natureza são sanadas. Não é de forma alguma acidental que a contracultura se inspire nas perspectivas indianas e asiáticas em relação à experiência. Os mitos, filosofias e religiões arcaicas de um mundo mais unificado e orgânico tornam-se vivos novamente apenas porque os problemas que enfrentaram estão vivos novamente. As duas pontas do desenvolvimento histórico são unidas pela palavra “comunismo”: a primeira, uma utopia tecnologicamente sofisticada que poderia viver em referência à natureza e trazer sua consciência a serviço da vida. Além disso, o primeiro vivia em uma rede social de reciprocidades rigidamente definidas, baseadas em costumes e necessidades imperiosas; o segundo poderia viver em uma constelação livre de relações complementares baseadas na razão e no desejo. Ambos estão separados pelo enorme desenvolvimento da tecnologia, um desenvolvimento que abre a possibilidade de uma transcendência do domínio e da necessidade.

O fato de o movimento socialista ter falhado totalmente em ver as implicações das questões comunistas que agora emergem é atestado por sua atitude em relação à ecologia: uma atitude que, quando não é marcada pela ironia paternalista, raramente vai além de pequenas difamações. Falo, aqui, de ecologia, não de ambientalismo. O ambientalismo lida com a utilidade do habitat humano, um habitat passivo que as pessoas usam, em resumo, um conjunto de coisas chamado de “recursos naturais” e “recursos urbanos”. Por si mesmas, as questões ambientais não requerem o uso de conhecimento maior do que os modos de pensamento e métodos instrumentalistas usados ​​por planejadores urbanos, engenheiros, médicos, advogados – e socialistas. A ecologia, ao contrário, é uma ciência artística ou arte científica e, na melhor das hipóteses, uma forma de poesia que combina ciência e arte em uma síntese única [16]. Acima de tudo, é uma perspectiva que interpreta todas as interdependências (sociais e psicológicas, bem como naturais) de forma não hierárquica. A ecologia nega que a natureza possa ser interpretada de um ponto de vista hierárquico. Além disso, afirma que a diversidade e o desenvolvimento espontâneo são fins em si mesmos, a serem respeitados por direito próprio. Formulado em termos da “abordagem ecossistêmica” da ecologia, isso significa que cada forma de vida tem um lugar único no equilíbrio da natureza e sua remoção do ecossistema pode colocar em risco a estabilidade do todo. O mundo natural, deixado por sua própria conta, evolui colonizando o planeta com formas de vida cada vez mais diversificadas e inter-relações cada vez mais complexas entre as espécies na forma de cadeias alimentares e teias alimentares. A ecologia não conhece o “rei dos animais”; todas as formas de vida têm seu lugar em uma biosfera que se torna cada vez mais diversificada no curso da evolução biológica. Cada ecossistema deve ser visto como uma totalidade única de formas de vida diversificadas em seu próprio direito. Os humanos também pertencem ao todo, mas apenas como uma parte do todo. Eles podem intervir nessa totalidade, até mesmo tentar administrá-la conscientemente, desde que o façam em seu próprio benefício e também no da sociedade; mas se tentam “dominá-lo”, ou seja, saqueá-lo, correm o risco de miná-lo e minar o fundamento natural da vida social.

A natureza dialética da perspectiva ecológica, uma perspectiva que enfatiza a diferenciação, o desenvolvimento interno e a unidade na diversidade, deve ser óbvia para qualquer pessoa familiarizada com os escritos de Hegel. Até mesmo a linguagem da ecologia e da filosofia dialética se sobrepõem em um grau notável. Ironicamente, a ecologia realiza mais de perto a visão de Marx da ciência como dialética do que qualquer outra ciência hoje, incluindo seu próprio domínio da economia política. Pode-se dizer que a ecologia desfruta dessa eminência única porque fornece a base, tanto social quanto biologicamente, para uma crítica devastadora da sociedade hierárquica como um todo, ao mesmo tempo que fornece as diretrizes para uma utopia futura viável e harmônica. Pois é precisamente a ecologia que valida em bases científicas a necessidade de descentralização social baseada em novas formas de tecnologia e novas formas de comunidade,

ambos artisticamente adaptados ao ecossistema em que estão inseridos. Na verdade, é perfeitamente válido dizer que a forma do grupo de afinidade e mesmo o ideal tradicional do indivíduo equilibrado podem ser considerados conceitos ecológicos. Qualquer que seja a área à qual seja aplicada, a perspectiva ecológica vê a unidade na diversidade como uma totalidade dinâmica holística que tende a integrar harmoniosamente suas diversas partes, não como um agregado de elementos coexistentes de maneira neutra.

Não é a fatuidade por si só que bloqueia a compreensão do movimento socialista da perspectiva ecológica. Para falar francamente, o marxismo não é mais adequado para compreender a visão comunista que não está surgindo. O movimento socialista, por sua vez, adquiriu e exagerou as características mais limitantes das obras de Marx sem compreender os ricos insights que elas contêm. O que constitui o modus operandi desse movimento não é a visão de Marx de uma humanidade integrada internamente e com a natureza, mas as noções particularistas e as ambivalências que mancharam sua visão e o instrumentalismo latente que a viciou.

11.

A história jogou conosco seu próprio jogo ardiloso. Transformou as verdades de ontem na falsidade de hoje, não gerando novas refutações, mas criando um novo nível de possibilidade social. Estamos começando a ver que existe um domínio de dominação que é mais amplo do que o domínio da exploração material. A tragédia do movimento socialista é que, mergulhado no passado, ele usa os métodos de dominação para tentar nos “libertar” da exploração material.

Estamos começando a ver que a forma mais avançada de consciência de classe é a autoconsciência. A tragédia do movimento socialista é que ele opõe a consciência de classe à autoconsciência e nega a emergência do eu próprio como “individualismo” – um eu que poderia produzir a forma mais avançada de coletividade, uma coletividade baseada na autogestão.

Estamos começando a ver que a espontaneidade produz suas próprias formas libertárias de organização social. A tragédia do movimento socialista é que ele opõe a organização à espontaneidade e tenta assimilar o processo social ao instrumentalismo político e organizacional.

Estamos começando a ver que o interesse geral agora pode ser sustentado após uma revolução por uma tecnologia pós-escassez. A tragédia do movimento socialista é que ele sustenta o interesse particular do proletariado contra o interesse geral emergente do dominado como um todo – de todos os estratos, sexos, idades e grupos étnicos dominados.

Devemos começar a romper com o dado, com a constelação social que está imediatamente diante de nossos olhos, e tentar ver que estamos em algum lugar em um processo que tem uma longa história por detrás de si e um longo futuro pela frente. Em pouco mais de meia década, vimos verdades e valores estabelecidos se desintegrarem em uma escala e com uma rapidez que pareceria totalmente

inconcebível para as pessoas de uma década atrás. E ainda, talvez, estejamos apenas no início de um processo de desintegração cujo efeitos ainda estão por vir. Esta é uma época revolucionária, uma imensa maré histórica que se acumula, muitas vezes invisível, nos recessos mais profundos do inconsciente e cujos objetivos se expandem continuamente com o próprio desenvolvimento. Mais do que nunca, agora conhecemos um fato da experiência vivida que nenhum tomo teórico poderia estabelecer: a consciência pode mudar rapidamente, na verdade, com uma rapidez que é deslumbrante para o observador. Em uma época revolucionária, um ano ou mesmo alguns meses pode produzir mudanças na consciência e no humor popular que normalmente levariam décadas para serem alcançadas.

E devemos saber o que queremos para não recorrer a meios que viciem totalmente nossos objetivos. O comunismo está na agenda da sociedade hoje, não uma colcha de retalhos socialista de “estágios” e “transições” que simplesmente nos atolarão em um mundo que estamos tentando superar. Uma sociedade não hierárquica, autogerida e livre de dominação em todas as suas formas, está na agenda da sociedade hoje, não um sistema hierárquico coberto por uma bandeira vermelha. A dialética que buscamos não é uma vontade prometeica que postula o “outro” de forma antagônica, nem uma passividade que atinge os fenômenos em repouso. Nem é a felicidade e a pacificação de um eterno status quo. Vida quando estamos preparados para aceitar todas as experiências proibidas que não impedem a sobrevivência. O desejo é o sentido da possibilidade humana que surge com a vida, e o prazer a realização dessa possibilidade. Assim, a dialética que buscamos é uma transcendência incessante, mas gentil, que encontra sua expressão mais humana na arte e no jogo. Nossa autodefinição virá do “outro” humanizado da arte e da brincadeira, não do “outro” bestializado do trabalho pesado e da dominação.

Devemos estar sempre em busca do novo, das potencialidades que amadurecem com o desenvolvimento do mundo e das novas visões que com elas se desdobram. Um olhar que deixa de buscar o novo e o potencial em nome do “realismo” já perdeu o contato com o presente, pois o presente está sempre condicionado pelo futuro. O verdadeiro desenvolvimento é cumulativo, não sequencial; é crescimento, não sucessão. O novo sempre incorpora o presente e o passado, mas o faz de novas maneiras e mais adequadamente como partes de um todo maior.

Notas de Rodapé

[1] Um excelente exemplo desse tipo de absurdo pode ser encontrado na p.143 de “The Coming British Revolution”, de Tariq Ali (Jonathan Cape, 1972). Aparentemente, “a crença do Solidarity na consciência política gerada espontaneamente” nos leva “a negar a necessidade de qualquer organização”. Tanto a premissa quanto a conclusão são falsas. Além disso, o “argumento” é um non-sequitur.

[2] “Comunismo” passou a significar uma sociedade sem Estado, baseada na máxima, “De cada um de acordo com sua capacidade e a cada um de acordo com suas necessidades”. Os assuntos da sociedade são administrados diretamente “de baixo” e os meios de produção são “propriedade” comunitária. Tanto os marxistas quanto os anarquistas (ou, pelo menos, os anarco-comunistas) veem essa forma de sociedade como um objetivo comum. Onde eles discordam é principalmente sobre o caráter e o papel do movimento revolucionário organizado no processo revolucionário e nos “estágios” intermediários (a maioria dos marxistas vê a necessidade de uma “ditadura do proletariado” centralizada, seguida por um estado “socialista” – uma visão que os anarquistas negam enfaticamente) necessários para alcançar uma sociedade comunista. No que diz respeito a essas diferenças, será óbvio que defendo um ponto de vista anarquista.

[3] O uso de linguagem militar ou quase militar – “vanguarda”, “estratégia”, “tática” – trai totalmente essa concepção. Enquanto denunciava os estudantes como “pequenos burgueses” e “merdinhas”, o “revolucionário profissional” sempre teve uma admiração e respeito relutantes pela mais desumana de todas as instituições hierárquicas, os militares. Compare isso com a antipatia inerente da contracultura pelas “virtudes de soldado” e comportamento.

[4] A palavra “povo” (le peuple da Grande Revolução Francesa) não será mais a ficção jacobina (ou, mais recentemente, stalinista e maoísta) que esconde interesses de classe antagônicos dentro do movimento popular. A palavra refletirá os interesses gerais de um movimento verdadeiramente humano, um interesse geral que expressa as possibilidades materiais de alcançar uma sociedade sem classes.

[5] A estupidez absoluta da “esquerda” americana durante o final dos anos 60 em projetar uma “política de polarização” negligente, e assim, humilhar desenfreadamente tantos da classe média – e, sim, diga-se: burgueses – elementos que estavam preparados para ouvir e aprender dificilmente pode ser criticado com demasiada veemência. Insensível sob a constelação única de possibilidades que a encarava de frente, a “esquerda” simplesmente alimentou sua culpa e inseguranças sobre si mesma e seguiu uma política de alienação sistemática de todas as forças autênticas e radicalizantes da sociedade estado-unidense. Essa política insana, junto com uma imitação estúpida do “terceiro mundo”, uma verborragia desumanizante (a polícia como “porcos’, os oponentes como “fascistas”) e um corpo de valores totalmente desumanizador, viciou todas as suas reivindicações como um “movimento de libertação”. A greve estudantil que se seguiu aos assassinatos de Kent revelou à “esquerda” e aos estudantes que eles tiveram muito sucesso em polarizar a sociedade americana, mas que eles, e não os governantes do país, estavam em minoria. É um testemunho notável dos recursos internos da contracultura que o desastre do SDS não levou a um partido marxista-leninista de tamanho considerável, mas à merecida desintegração do “Movimento” e a um solene recuo para as premissas culturais mais humanistas que apareceu no início dos anos 60 – premissas humanísticas que a “esquerda” devastou tão cruelmente nos anos finais daquela década.

[6] Obviamente, não acredito que os adultos de hoje sejam “mais esclarecidos, mais bem informados e mais experientes” do que os jovens em qualquer sentido que dê a sua maior experiência qualquer significado revolucionário. Ao contrário, a maioria dos adultos na sociedade existente são mentalmente desordenados com falsidades absurdas e, se quiserem alcançar qualquer aprendizado real, terão que passar por um processo considerável de desaprendizagem.

[7] Este é um ponto de vital importância e deve ser seguido com um exemplo. Se a famosa greve da Sud-Aviation em Nantes em 13 de maio de 1968, uma greve que desencadeou a greve geral massiva na França de maio-junho, tivesse ocorrido apenas uma semana antes, provavelmente teria tido apenas um significado local e quase certamente teria sido ignorada pelo país em geral. Chegando quando chegou, no entanto, após o levante estudantil, a greve da Sud-Aviation deu início a um amplo movimento social. Obviamente, a isca para esse movimento havia se acumulado lenta e imperceptivelmente. A greve da Sud-Aviation não “criou” esse movimento; ela o revelou, que é precisamente o ponto que não pode ser enfatizado com muita força. O que estou dizendo é que uma ação militante, presumivelmente por uma minoria – uma ação inconscientemente radical até para si mesma – havia revelado o fato de que era a ação de uma maioria na única maneira que poderia se revelar. O material social para a greve geral estava à mão e qualquer greve, por mais trivial que fosse no curso normal dos eventos (e talvez inevitável), poderia ter trazido a greve geral à existência. Devido à natureza inconsciente dos processos envolvidos, não há como prever quando um movimento desse tipo surgirá – e ele surgirá apenas quando for deixado para fazê-lo por conta própria. Tampouco quer dizer que a vontade não desempenhe um papel ativo nos processos sociais, mas apenas que a vontade do revolucionário individual deve se tornar uma vontade social, a vontade da grande maioria da sociedade, se quiser culminar na revolução.

[8] O jovem Marx, Rumo à Crítica da filosofia do direito de Hegel, tinha uma visão bem diferente: “Não é suficiente que o pensamento busque sua atualização; a própria realidade deve se esforçar em direção ao pensamento”.

[9] Um fato que já estava claramente em evidência durante os eventos de maio-junho na França em Champs de Mars, no encontro de estudantes e trabalhadores em 12 de maio. Aqui, trabalhador após trabalhador ficava diante do microfone e falava de sua vida, seus valores e seus sonhos como ser humano, não apenas de seus interesses de classe. De fato, até que ponto questões mais amplas da vida humana surgiram nos eventos de maio-junho ainda não foi adequadamente explorado. Por outro lado, foram precisamente os stalinistas que apelaram para os trabalhadores como “proletários” e maliciosamente enfatizaram suas “diferenças sociais” com os “estudantes burgueses”.

[10] Como atesta o declínio da literatura ficcional. A vida é muito mais interessante do que a ficção, não apenas como vida social, mas como a experiência pessoal e a autobiografia.

[11] Eu diria que não estamos em um “período revolucionário” ou mesmo em um “período pré-revolucionário”, para usar a terminologia dos leninistas, mas sim em uma época revolucionária. Com esse termo, quero dizer um período prolongado de desintegração social, um período marcado precisamente pelo Iluminismo discutido nas seções do período.

[12] Veja minha “Filosofia Dialética” a ser publicada pela Times Change Press no outono de 1972.

[13] Vê-se isso no inquieto conceito de práxis de Marx e, especialmente, de “necessidade” material, que se expande quase indefinidamente. Também é visto claramente nas visões exegéticas dos teóricos marxistas, cujos conceitos de uma prática interminável, obstinada e de afirmação de poder assume proporções quase dionisíacas.

[14] E “necessidade”, aqui, no sentido de manifestações psíquicas e materiais de egoísmo. Na verdade, a dominação não precisa ser exploradora apenas no sentido material, como meramente a apropriação do trabalho excedente. A exploração psíquica, principalmente de crianças e mulheres, pode muito bem ter precedido a exploração material e até mesmo estabelecido sua estrutura cultural e atitudinal. E, a menos que a exploração desse tipo seja totalmente erradicada, o gênero humano não terá feito nenhum progresso em humanidade.

[15] A música é o exemplo mais marcante em que a arte pode existir por si mesma e até mesmo se combinar com a diversão por si mesma. Os esportes competitivos, por outro lado, são formas de diversão virtualmente degradadas às relações de mercado, notadamente no frenesi de marcar pontos sobre os rivais e nos antagonismos egocêntricos que os jogos tantas vezes geram. O leitor deve notar que existe uma dialética dentro da arte e do jogo, daí o meu uso das palavras “arte verdadeira” e “jogo autêntico”, ou seja, arte e jogo como fins em si mesmos.

[16] “Arte” no sentido da ecologia exige improvisação contínua. Essa demanda decorre da variedade de seu objeto, o ecossistema: a comunidade viva e seu ambiente que constitui a unidade básica da pesquisa ecológica. Nenhum ecossistema é inteiramente igual ao outro, e os ecologistas são continuamente obrigados a levar em consideração a singularidade de cada ecossistema em suas pesquisas. Embora haja uma tentativa regressiva de reduzir a ecologia a pouco mais do que análise de sistemas, o assunto continuamente atrapalha, e muitas vezes acontece que a maioria dos escritores mais prosaicos são obrigados a usar as metáforas mais poéticas para lidar com seu material.