Edward Avery-Natale
“Estamos Aqui! Somos Queer! Somos Anarquistas”
A Natureza da Identificação e Subjetividade dentre Black Blocs
Resumo
Nos protestos contra o G20 em Pittsburgh, em 2009, um cântico popular incluía a frase: “We’re here! We’re queer! We’re anarchists, we’ll fuck you up!” [Estamos aqui! Somos queer! Somos anarquistas, vamos acabar com vocês!”] [1]. No entanto, é quase impossível que todos os membros do black bloc que usaram esse cântico se identificassem como queer em sua vida cotidiana. Neste artigo, defendo que a auto-apresentação entre os membros do black bloc, especialmente quanto ao mascaramento do rosto com uma bandana preta e o uso da própria cor preta, permite a destruição de uma identificação previamente mantida e a recriação temporária de uma nova identificação. Enfatizo as teorias desenvolvidas por Deleuze & Guattari e Giorgio Agamben. Também analiso um zine produzido pelos organizadores da resistência ao G20 em Pittsburgh para mostrar que minha interpretação da subjetividade do black bloc se espelha nas reivindicações dos participantes do black bloc.
Introdução
Durante os protestos contra o G20 em Pittsburgh, Pensilvânia, em 2009, grupos de black blocs saíram às ruas para perturbar as reuniões e o funcionamento da cidade, como costuma acontecer em protestos de cúpulas comerciais. Durante pelo menos um desses protestos, surgiu um cântico: “We’re here! We’re Queer! We’re anarchists, we’ll fuck you up!” O que é fascinante nesse cântico é a frase “We're Queer”, já que havia nitidamente uma quantidade grande demais de anarquistas participando do black bloc para que fosse composta somente por aqueles que se identificavam como queer [2]. Ao contrário, havia vários indivíduos que não se identificavam como queer em sua vida cotidiana e que, no entanto, se engajaram em um canto que envolvia essa identificação, pelo menos momentaneamente.
Essa identificação momentânea como queer durante o black bloc demonstra a fluidez pós-moderna das subjetividades identitárias. O sujeito é capaz de abraçar uma infinidade de posições de sujeito como identificação e, em seguida, é igualmente capaz de descartar qualquer uma dessas mesmas identificações quando elas não servem mais ao indivíduo. Essa é, de fato, a razão pela qual o termo ‘identificação’ é em si superior ao termo ‘identidade’. Brubaker e Cooper (2000) enfatizam que o termo identificação destaca a natureza fluida e sempre mutável do eu. Isto é representado pela substituição do substantivo “identidade”, que implica uma coisa singular que existe no mundo, pelo verbo “identificação”, que enfatiza o ato de assumir um eu [3]. Embora essa multiplicidade e fluidez de identificação se encaixem na natureza de nossa compreensão da subjetividade na era pós-moderna contemporânea, na qual os seres humanos devem “ser entendidos como múltiplos e sem centro” (Call, 2002: 130), continua valendo o fato de que as pessoas tentam regularmente sustentar a ilusão de uma identidade singular. Em outras palavras, embora saibamos que a identificação é parcial, fluida e múltipla, os indivíduos geralmente tentam apresentar ao mundo exterior a imaginação fantasmática de uma única identidade. Geralmente, essa tentativa é realizada por meio da narrativa, um processo no qual contamos histórias sobre nós mesmos, com antagonistas, enredos e personagens (Vila, 2000). Essas histórias estruturam o que, de outra forma, seriam nossas identificações caóticas na ilusão de uma identidade estável.
Portanto, a adoção de uma identificação “queer” pelos black blocs levanta a seguinte questão: por que esses indivíduos, naquela época, eram capazes de apresentar um eu queer quando alguns deles não se identificavam como queer em suas vidas cotidianas? O que houve nesse momento que gerou essa possibilidade? Se os indivíduos normalmente se esforçam para obter consistência por meio da criação de uma identidade estável ilusória, o que mudou no black bloc? Neste artigo, argumento que a natureza da estética black bloc, e especificamente a natureza da máscara, permite que isso ocorra. Argumento que a apresentação black bloc permite a negação da ilusão de identidade e a possibilidade temporária de um ser desterritorializado deleuziano, que relaciono ao conceito de singularidade qualquer, desenvolvido por Giorgio Agamben.
Por fim, uma observação metodológica: vários dos autores usados neste artigo possuem diferenças teóricas entre si que não são abordadas como parte deste artigo, pois suas semelhanças são mais importantes para meus objetivos aqui. Para os fins deste artigo, eu me interesso mais pelos efeitos das ideias desenvolvidas por esses autores e suas semelhanças (que acredito serem muitas) do que pelas contradições entre eles que podem abranger suas muitas obras importantes. Não se trata de minimizar a importância dessas diferenças, mas apenas de afirmar que, para os fins da análise aqui desenvolvida, suas semelhanças são mais salientes.
O que são Black Blocs?
Black blocs se tornaram comuns em atos de protesto, especialmente no Ocidente. Embora tenham sido inicialmente formados por ativistas na Alemanha no início da década de 1980, os black blocs não ganharam notoriedade mais ampla até as revoltas contra a Organização Mundial do Comércio (OMC) em Seattle, em 1999 (Highleyman, 2002). Hoje, eles são mais comumente vistos em mobilizações antiglobalização, como o G20 em Pittsburgh, e em outras ações contra o neoliberalismo e o capitalismo, como os protestos olímpicos em Vancouver e as atividades insurrecionais em andamento na Grécia, onde os anarquistas saem às ruas para protestar, agitar, lutar contra os policiais e apresentar ostensivamente seu descontentamento com o capitalismo e o estado. A estética de um black bloc inclui principalmente o uso de calças pretas, botas ou tênis pretos, um moletom preto com capuz e uma bandana preta para cobrir o rosto. Essas bandanas funcionam como máscaras, amarradas ao redor da metade inferior do rosto, de modo que os olhos e a testa do usuário ainda estejam visíveis, mas o nariz, a boca, as bochechas e o queixo estejam cobertos. Isso produz uma imagem não muito diferente da do bandido nas apresentações da antiga “fronteira” americana. Muitos participantes do black bloc às vezes também usam máscaras de gás e óculos de proteção para se protegerem do gás lacrimogêneo.
As táticas dos black blocs geralmente envolvem uma combinação de destruição de propriedade, tais como quebrar as janelas de lojas corporativas como Starbucks e McDonald's, e performances carnavalescas. Essas estratégias costumam ser usadas para causar o máximo de danos possível e atrapalhar o funcionamento normal das empresas e do governo da cidade em questão, sem prejudicar as pessoas, com a possível exceção da polícia, que pode ser vista como inimiga em uma guerra de classes - ou social - em andamento. David Graeber (2002) descreve as táticas dos black blocs da seguinte forma:
Black Blocs [...] todos, de suas próprias maneiras, tentam mapear um território completamente novo [...] Eles estão tentando inventar o que muitos chamam de "nova linguagem" da desobediência civil, combinando elementos de teatro de rua, festival e aquilo que só pode ser chamado de guerra não violenta — não violenta no sentido adotado, digamos, pelos anarquistas dos Black Blocs, que rechaçam qualquer ameaça física direta a seres humanos. (Graeber, 2002: 66)
O propósito mais óbvio da destruição de propriedades é drenar o dinheiro das cidades e das empresas, ou pelo menos incomodá-las. Essa destruição de propriedades não ocorre sem foco, mas prioriza alvos específicos que são vistos como representantes da ordem hegemônica neoliberal. Por exemplo, “os bancos e as empresas petrolíferas geralmente se tornam alvos, assim como os pontos de venda que vendem mercadorias de fábricas de exploração e as cadeias de restaurantes de fast food que contribuem para a monocultura global” (Highleyman, 2002).
O objetivo desses ativistas não é fazer exigências ao capital ou ao estado, mas sim “exigir nada” (por exemplo, ver Anonymous, 2010 e Schwarz, Sagris e Void Network, 2010: 192-4). Alberto Melucci, antes das manifestações de Seattle, mas reconhecendo as tendências crescentes entre os ativistas, apontou as tendências anárquicas entre os movimentos sociais, inclusive a falta de reivindicações, em seu livro de 1996, afirmando que os ativistas “ignoram o sistema político e geralmente demonstram desinteresse pela ideia de tomar o poder” (1996: 102). Richard J.F. Day (2005) também observou essa tendência no que ele chama de movimentos sociais mais recentes, dos quais os black blocs seriam uma parte.
Esses movimentos têm relação com a política do tédio articulada pelos situacionistas durante maio de 1968, na qual os ativistas mantinham o desejo de um momento de “festival” perpétuo. Esse festival é um momento de “jogo” político, de constante mudança e performance, que pode ser descrito como uma política do “gesto”. Lewis Call descreve a importância desse desenvolvimento político em seu livro Postmodern Anarchism:
De fato, o conceito de gesto fazia parte da definição do próprio Situacionismo [. . .] Esses gestos podiam ser artísticos ou abertamente políticos, satíricos ou subversivos. Acima de tudo, eles deveriam ser lúdicos [. . .] A “ética lúdica” situacionista foi concebida como um antídoto para a ética de trabalho quase puritana endêmica tanto no capitalismo quanto no comunismo institucional. E a práxis gestual dos situacionistas tinha o objetivo de levar a revolução para o terreno estranho e inexplorado do símbolo (Call, 2002: 102).
Essa falta de exigências em relação ao sistema, combinada com os ataques à propriedade privada e a diversão de algumas das táticas, resulta em uma série de movimentos de protesto que visam à impossibilidade de absorção pelos sistemas de controle. Esse último ponto é particularmente importante. Como “a melhor maneira de garantir a exclusão de uma força social radical é garantir sua inclusão” (Day, 2005: 29), a única maneira de evitar a impotência é recusar a inclusão, e uma maneira de fazer isso é não fazer nenhuma exigência ao sistema e sair dos limites tradicionais do discurso ativista por meio da festividade e do carnaval.
Os black blocs também enfatizam a ação e a representação, ou a criação temporária, do mundo no qual desejam existir, sem fechar a possibilidade de ações diferentes no futuro. Em outras palavras, enquanto vivemos, da melhor forma possível, em uma representação do que ainda está por vir, isso é feito sem presumir que isso seja estático ou permanente, pois o que ainda está por vir deve permanecer sempre em aberto. Alberto Melucci enfatizou a importância dessa forma de agir, afirmando que os participantes de movimentos contemporâneos acreditam que “se eu não puder me tornar o que quero ser a partir de hoje, não estarei interessado nessa mudança” (1996: 184). Isso está relacionado à falta de reivindicações, já que esses ativistas articulam um desejo de criar o novo mundo no qual desejam existir, em vez de simplesmente pedir ao estado ou ao capital que se transformem em algo menos vil. Além disso, a forma como Melucci expressa essa afirmação indica que esses ativistas não se veem como tendo alcançado ou almejando alcançar algum tipo de permanência em suas ações, mas que é uma questão de tornar-se e dar início, o que pode ser permanente e contínuo.
Os black blocs, portanto, representam um contraponto à hegemonia capitalista. São algo que impossibilita a integração aos sistemas do capitalismo e do estado, recusando-se a fazer exigências a esse sistema. Os black blocs visam representar as possibilidades futuras de um mundo melhor pelo qual os anarquistas estão lutando, e que também estão edificando juntamente com a contínua existência desse mundo. Como mostrarei mais adiante, essa representação de algo que não seja o sistema sob o qual vivemos é particularmente importante.
No entanto, também acredito que as máscaras usadas pelos ativistas black blocs oferecem uma possibilidade extra ainda não totalmente desenvolvida na literatura. Embora a vestimenta dos black blocs permita a camuflagem da identidade, acredito que esse aspecto pode ir além de simplesmente esconder o rosto da polícia, do FBI e de outras autoridades. Como explorarei a seguir, acredito que as máscaras usadas pelos ativistas black blocs permitem a adoção e a rejeição de uma variedade de identificações (no sentido de subjetividade, não no sentido de nome oficial, endereço e assim por diante) que a pessoa pode querer assumir. Além disso, mostrarei que a literatura que surgiu a partir dos protestos contra o G20 em Pittsburgh indica que pelo menos alguns dos participantes dessas ações também pensam no black bloc dessa forma.
A Máscara Preta
Prepare-se para se misturar, para colocá-la e desaparecer [. . .] Eu poderia ser qualquer pessoa, em qualquer lugar [. . .] Ter uma identidade totalmente nova [. . .] ou não ser ninguém desta vez [. . .] Apenas me dê uma máscara preta.
— The (International) Noise Conspiracy: Black Mask
Como mencionado acima, as máscaras são parte integrante da estética black bloc, permitindo que o anarquista evite a identificação externa por dispositivos de gravação e garanta pelo menos alguma proteção contra o gás lacrimogêneo. No entanto, acredito que há mais na função da máscara. A citação de abertura desta seção traz a letra da música “Black Mask”, da banda anarquista-punk “The (International) Noise Conspiracy”. Os versos que selecionei da música enfatizam o que quero dizer sobre o que uma máscara preta permite que o participante black bloc faça. Como mostrarei aqui, a máscara permite que a identificação seja apagada, que o participante se torne qualquer pessoa ou ninguém, que tenha uma identificação totalmente nova, como a identificação queer nos protestos contra o G20 em Pittsburgh.
Uma máscara, é claro, cobre pelo menos parte do rosto. O rosto em si, de acordo com Deleuze e Guattari, é o que representa a significação do sujeito; que “a forma do significante tem uma substância, ou o significante tem um corpo que é Rosto (princípio dos traços de rostidade, que constitui uma reterritorialização)” (1987: 117). Esse aspecto dos rostos pode ser rastreado até a origem da própria palavra rosto, que vem de facies na medicina antiga [4]. Esse termo referia-se a uma aparência superficial que caracterizava um tipo, que não se conectava diretamente à anatomia, mas ao mundo ao redor da facies, bem como a uma relação entre os sujeitos (Calefato, 2004: 68). Assim, o rosto é a significação do eu em relação aos outros e, de acordo com Deleuze e Guattari, é no rosto que a pessoa se reterritorializará depois de ter se desterritorializado em uma linha de fuga rizomática. Em suma, isso significa que, uma vez que a pessoa tenha rejeitado [sempre temporariamente] a subjetividade, entrando assim em uma linha de fuga, ela sempre se reterritorializará de alguma forma, o que significa que recuperará a subjetividade, e essa reterritorialização se dá sempre sobre um “rosto”.
Entretanto, o rosto-como-subjetividade abrange a possibilidade de o rosto ser uma metáfora para a representação da subjetividade de alguém. Assim, o rosto ou a facialidade não se limita à apresentação frontal da cabeça. Em vez disso, o rosto pode se expandir ou alcançar outras partes do eu, transformando outros aspectos do indivíduo em uma facialidade. Isso também se relaciona com as facies da antiguidade, uma vez que o rosto era um “território móvel, cujos sinais a medicina hipocrática [. . .] examinava, não em termos de anatomia, mas em sua conexão com o mundo circundante e com o outro, naquele estado de alteridade e unicidade intrínseco a todo ser vivo” (Calefato, 2004: 68). Essa expansão do rosto pode ocorrer, por exemplo, por meio da fetichização, quando se permite que outra parte do corpo represente o eu. Em outras palavras, o rosto é a significação da subjetividade de uma pessoa e, como tal, outros aspectos dessa representação podem adquirir “facialidade”. Deleuze e Guattari articulam essa ideia da seguinte forma: “O rosto é uma superfície [. . .] a cabeça e seus elementos não serão rostificados sem que o corpo inteiro não o possa ser” (1987: 170). Mas, é claro, em nossa cultura, o rosto geralmente é rostificado na parte frontal da cabeça, e muitas vezes experimentamos a subjetividade alheia primeiro. É claro que isso não é inerentemente verdadeiro e poderia ser diferente, mas geralmente é o caso. Assim, para nos concentramos por um momento na face-qua-face da cabeça voltada para a frente, se pudermos fazer a afirmação geral de que é onde esperamos que a rostificação e a subjetivação ocorram mais prontamente para muitas pessoas, então o que ocorre quando se mascara essa superfície, como acontece durante um black bloc? De acordo com Deleuze e Guattari, quando se mascara o rosto,
Ou a máscara assegura a pertença da cabeça ao corpo, e seu devir-animal, como nas semióticas primitivas [sic], ou, ao contrário, como agora, a máscara assegura a instituição, o realce do rosto, a rostificação da cabeça e do corpo: a máscara é então o rosto em si mesmo, a abstração ou a operação do rosto. Inumanidade do rosto. O rosto jamais supõe um significante ou um sujeito prévios. [...] O rosto é uma política. (1987: 181).
Assim, “o rosto assume em seu retângulo ou em seu círculo todo um conjunto de traços, traços de rostidade, que ele irá subsumir e colocar a serviço da significância e da subjetivação” (ibid., 188). Em outras palavras, o rosto é o que significa a subjetivação e a própria máscara passa a representar essa subjetividade; a máscara apaga o sujeito antigo e representa o novo sujeito. A natureza do mascaramento como o apagamento do sujeito inicial que lhe permite tornar-se outra coisa é também o que mostra que a subjetividade humana é múltipla e fantasmática. Em outras palavras, ao usar a máscara para apagar uma subjetividade, também se está mostrando a natureza imaginária da própria subjetividade estável. Isso é reconhecido por Slavoj Žižek em seu recente e breve artigo, “The Neighbor in Burka”:
From a Freudian perspective, face is the ultimate mask that conceals the horror of the Neighbor-Thing: face is what makes the Neighbor le semblable, a fellow-man with whom we can identify and empathize [. . .] This then, is why a covered face causes such anxiety: because it confronts us directly with the abyss of the Other-Thing, with the Neighbor in its uncanny dimension. The very covering-up of the face obliterates a protective shield, so that the Other-Thing stares at us directly [. . .] What if we go a step further and imagine a woman ‘taking off’ the skin of her face itself, so that what we see beneath her face is precisely an anonymous dark smooth burka-like surface with a narrow slit for the gaze? ‘Love thy neighbor!’ means, at its most radical, precisely the impossible-real love for this de-subjectivized subject, for this monstrous dark blot cut with a slit/gaze (Žižek, 2010).
Em outras palavras, de uma perspectiva psicanalítica, o rosto é, em si mesmo, uma máscara que oculta a natureza da subjetividade como um nada disfarçado de algo; nunca somos um único eu unificado, mas apenas nos imaginamos como tal a fim de preencher o significante vazio lacaniano. A eliminação do rosto como representação da subjetividade por meio da máscara, no caso de Žižek, a Burka, confronta o sujeito com a experiência subconsciente de sua própria falta - torna óbvia a falta da realidade de um único eu unificado ao apresentar ao outro um outro dessubjetivado. No caso da máscara preta usada durante os black blocs, podemos dizer que ocorre o mesmo. No entanto, a diferença é que o participante black bloc quer que essa falta seja abraçada, enquanto o vizinho em Žižek fica horrorizado pelo confronto com o sujeito faltoso.
Assim, quando se bloqueia o rosto por meio do mascaramento, interrompe-se a experiência da subjetividade previamente existente, permitindo que o sujeito assuma uma nova subjetividade em sua escolha, supondo-se que ele esteja abraçando essa falta [5]. É isso que Deleuze e Guattari querem dizer quando afirmam que “a máscara agora é o próprio rosto”. A máscara permite algo semelhante a um tornar-se qualquer, na linguagem de Giorgio Agamben. Para Agamben, esse qualquer coisa é o singularidade qualquer:
Qualquer é a figura da singularidade pura. A singularidade qualquer não tem identidade, não é determinada relativamente a um conceito, mas tão- -pouco é simplesmente indeterminada; ela é determinada apenas através da sua relação com uma ideia, isto é, com a totalidade das suas possibilidades. (Agamben, 1993: 68.7)
Portanto, não é que a singularidade qualquer mascarada não possa se tornar algo (no caso acima, um anarquista queer), é apenas que esse algo deve ser temporário e parcial, mas também em relação a uma ideia que é igualmente temporária e parcial. A própria máscara permite essa temporalidade e parcialidade, pois apaga a subjetividade e permite que o sujeito assuma outras subjetividades. A pessoa adota a identificação que é útil para a ação, mas essa identificação pode ser temporária e pode ser rejeitada quando outra for útil ou quando a pessoa se desmascarar. De qualquer forma, isso está relacionado a uma ideia, o anarquismo, e à totalidade das possibilidades, ou seja, às identificações possíveis: alguém poderia ser muitas possíveis coisas diferentes, mas geralmente somente alcança identificações específicas.
David Graeber destaca essa natureza da máscara ao discutir um black bloc na Cúpula das Américas na cidade de Quebec, onde vários anarquistas usavam máscaras com a seguinte inscrição nas extremidades:
Permaneceremos sem rosto porque recusamos o espetáculo da celebridade, porque somos todo mundo, porque o carnaval nos convoca, porque o mundo está de cabeça para baixo, porque estamos em toda parte. Ao usar máscaras, mostramos que quem somos não é tão importante quanto o que queremos, e o que queremos é tudo para todos (conforme citado em Graeber, 2009: 148).
Aqui vemos a importância do apagamento da identidade - permanecer sem rosto, tornar-se todo mundo, recusar o espetáculo da celebridade - e também a importância da natureza carnavalesca do black bloc. Também é interessante observar que isso foi inscrito nas laterais das máscaras que, por sua vez, foram impressas com a imagem de um rosto que não era o rosto do participante que usava a máscara, criando assim, literalmente, um novo rosto para o sujeito black bloc sem rosto.
Além disso, embora eu reflita posteriormente sobre o conceito de “não exigir nada”, devo abordar aqui a aparente tensão entre a ideia de recusar exigências e o fato aparente de que os anarquistas, apesar disso, expressam desejos, representados acima pela afirmação de que querem tudo para todos. O ponto importante aqui não é que os anarquistas não tenham desejos ou ideias do que esperam alcançar. Se esse fosse o caso, seria impossível para eles se identificarem como anarquistas ou anticapitalistas, já que cada um desses rótulos de identificação implica um desejo ou uma vontade. O que deve ser entendido é que não exigir nada significa se recusar a fazer exigências ao capital e ao estado e, em vez disso, ter como objetivo criar algo totalmente novo.
A estética black bloc, então, é um apagamento da identificação; permite que o anarquista mascarado se torne o que quer que seja a singularidade e, como tal, se torne qualquer coisa, como o queer do referido grito. O black bloc apaga a rostificação anterior, mas, como Deleuze e Guattari nos dizem, a rostificação se espalha por todo o corpo, todo o corpo pode se tornar um rosto. Assim, o apagamento da identidade previamente existente também pode se espalhar por todo o corpo: o ativista black bloc está vestido de preto da cabeça aos pés, criando todo o corpo como o rosto do anarquista, que, no caso do canto acima, também é capaz de assumir a identificação de “queer”. O fato de o sujeito se vestir de preto quando faz isso não é uma coincidência, mas tem relação com a própria natureza da obscuridade como um estilo de vestimenta que “explicita uma obliteração de significado, um tipo de absorção física de todos os raios de luz que transforma o corpo vestido de preto em uma entidade transparente ou invisível” (Calefato, 2004: 110).
No entanto, Deleuze e Guattari também nos dizem que as desterritorializações, a obliteração do significado e da subjetivação, são sempre parciais e nunca totalmente consumadas. Assim, embora a desterritorialização do mascaramento seja uma linha de fuga para longe da subjetividade e em direção ao devir rizomático, “Temos que pensar a desterritorialização como uma potência perfeitamente positiva, que possui seus graus e seus limiares (epistratos) e que é sempre relativa, tendo um reverso, uma complementaridade na reterritorialização.” (Deleuze and Guattari, 1987: 54). Em outras palavras, uma desterritorialização sempre necessita de uma reterritorialização, nunca se pode tornar completa e permanentemente rizomático, embora se possa rejeitar a subjetividade, sempre se tornará re-subjetivado.
O apagamento da subjetivação realizado pela estética black bloc sempre necessita de um retorno à identidade. O sujeito primeiro se reterritorializará na subjetividade anarquista e depois, nesse caso, na subjetividade queer. De fato, o black bloc não pode evitar uma reterritorialização na identificação de anarquista porque essa subjetividade é necessária para a continuidade do black bloc; a subjetividade de “anarquista” é necessária para o objetivo da insurreição e da revolução, portanto, o apagamento é parcial até depois da insurreição; a máscara apaga a subjetividade, mas como a própria máscara é um significante do anarquista, a pessoa sempre se reterritorializará em uma subjetividade anarquista, mesmo que essa subjetividade seja hifenizada, como no caso do queer-anarquista. É, então, o queer que constitui a reterritorialização secundária nesse caso, e o rosto se torna um rosto queer-anarquista.
Essa incapacidade de desterritorializar permanentemente toda a subjetividade, inclusive a do anarquista, corresponde ao significado mais verdadeiro da declaração de Jean Genet em Paris, em 1968: “C’est triste à dire, mais je ne pense que l’on puisse vaincre sans les drapeaux rouges et noirs. Mais il faut détruire après [Infelizmente, não acho que possamos vencer sem as bandeiras vermelha e preta. Mas elas serão destruídas depois]” (CrimethInc, 2008: 11). As bandeiras vermelhas e pretas são um significante frequente do anarquismo-comunismo, a preta significando anarquia e a vermelha significando comunismo. Entretanto, a própria existência das bandeiras também promove a subjetivação externa como uma identidade singular, anarquista, em vez da liberação de se tornar qualquer.
O mesmo poderia ser dito sobre as máscaras negras - elas são necessárias para os anarquistas contemporâneos, mas depois devemos tirá-las e destruí-las. As máscaras negras ainda são necessárias porque permitem que o anarquista se torne a representação do pós-hegemônico ainda-por-vir, aquele futuro que lutamos para conquistar. O qualquer do black bloc, então, é uma maneira na linguagem de Agamben, no sentido de que é “uma maneira emergente, não um ser que é deste modo ou de outro, mas um ser que é o seu modo de ser e, portanto, mesmo permanecendo singular e não indiferente, é múltiplo e vale por todos” (Agamben, 1993: 28.8). Essa validade está relacionada à ideia de recusar exigências. Os anarquistas do black bloc não desejam que o estado atenda às suas demandas; em vez disso, eles representam o que poderia ser e o que todos poderiam se tornar. Isso é representado em uma frase dos protestos gregos do inverno de 2008, em que predominaram os black blocs e as máscaras, e mais tarde no título de um livro recente sobre esses protestos, We Are An Image From The Future [6] (Schwarz, Sagris e Void Network, 2010); eles representam o que pode ser, mas que ainda não chegou.
Os participantes do Black Bloc Veem Isso dessa Forma?
Para compreender adequadamente os black blocs, devemos entender não apenas a estética, mas também como alguns dos participantes de um black bloc se enxergam durante o ato. Será que os participantes em black blocs acreditam que a identificação pode ser apagada e assumida livremente por meio de máscaras e do vestuário preto? Será que alguns dos participantes do G20 em Pittsburgh acreditaram nisso quando assumiram a identificação queer? Será que eles veem sua própria presença como algo que precede o que está por vir? E será que eles acreditam que não estão exigindo nada? E, no final, eles precisarão destruir a subjetividade anarquista da mesma forma que destroem todas as outras? Para descrever isso, vou me basear em um zine intitulado The Enemy of Mankind Speaks Power (O Inimigo da Humanidade Profere Poder), criado pelos organizadores da resistência contra o G20 em Pittsburgh [7]. Como mostrarei, acredito que esse comunicado indica, de fato, que vários outros participantes dos black blocs contra o G20 em Pittsburgh podem enxergar o mascaramento da maneira que descrevi acima.
Na seção de The Enemy of Mankind Speaks Power intitulada “My Preferred Gender Pronoun is Negation” (Meu Pronome de Gênero de Preferência é a Negação), que trata mais especificamente da queerness [queeridade] e da relação entre queerness e os black blocs, o(s) autor(es) relata(m) uma conversa com um amigo. O amigo comentou: “O que há de tão queer nisso? As pessoas simplesmente usavam preto e queimavam coisas na rua”. O(s) autor(es) respondeu(ram): “A prática de usar preto e destruir tudo pode muito bem ser o gesto mais queer de todos”. Eles afirmam que “queer é negar”, que o tornar-se qualquer [8] do black bloc foi, em si, um gesto de queerness, pois nega não apenas os limites de gênero e sexualidade, mas o ato de resistência do black bloc também negou a própria subjetivação. Eles continuam dizendo:
Sem hesitação, queers se livraram das restrições da identidade ao se tornarem autônomos, móveis e múltiplos, com diferenças variadas. Alternamos desejos, gratificações, êxtases e emoções ternas sem referência às tabelas de mais-valia ou estruturas de poder [. . .] Se a tese de que o gênero é sempre performativo estiver correta, então nossos eus performáticos ressoaram com o gênero mais queer de todos: o da destruição total. Daqui em diante, nossos pronomes de gênero preferidos são o som de vidro quebrando, o peso de martelos em nossas mãos e o aroma adocicado da merda pegando fogo. Dirija-se a nós de acordo.
Aqui percebemos que pelo menos alguns dos manifestantes dos black blocs em Pittsburgh viram o black bloc como uma negação de suas identificações anteriormente existentes. Além disso, percebemos que a destruição da identificação por meio do mascaramento do rosto é tida como um apagamento do eu em todo o corpo, já que eles não dizem apenas que o mascaramento é o gesto mais queer de todos, mas que o ato de usar preto, de apagar completamente o eu, é o gesto mais queer de todos. Além disso, podemos problematizar mais profundamente a frase “ We're here! We're queer! We're anarchists, we'll fuck you up!”. Embora a identificação deva, até certo ponto, apontar para a sexualidade queer, como é indicado pelas referências a gênero, pronomes, sexualidades e êxtases, ela também aponta para outra coisa. Como afirma(m) o(s) autor(es), queerness, nesse caso, também significa a própria negação; significa a negação ou obliteração de uma identificação existente e a liberdade de tornar-se qualquer. A destruição passa a incluir a destruição da identificação. Essa destruição da identificação também exige que os participantes vão além da solidariedade no sentido das teorias tradicionais de redes sociais. Em vez disso, essa destruição passa para o campo do que McDonald (2002) chamou de “fluidarity” [fluidariedade] [9]. A fluidariedade enfatiza o processo de criação e mudança durante a luta, e não a construção ou manutenção de um movimento singular coerente com líderes públicos e uma identidade singular coerente, como “Marxista” ou “Proletariado”.
Além disso, esse mesmo zine também indica que alguns se viam como representando o ainda-por-vir. Entretanto, não o fazem tentando obter o status de hegemonia. Em vez disso, na linguagem de Richard J.F. Day (2004; 2005), eles representam um futuro contra-hegemônico. Observamos isso quando afirmam que o objetivo não é a “Produção de militantes anarquistas com uma ideologia apropriada”, mas sim a disseminação de práticas insurrecionais como um modo de ser. Aqui eles reivindicam uma vitória evidente: “As práticas desordeiras que antes eram limitadas a um pequeno subconjunto do discurso anarquista se espalharam por categorias políticas, raciais, de gênero e sexuais, chegando até mesmo a tomar conta de uma parte da população estudantil” (ibid., 13-14). Em outras palavras, como afirmei acima, eles pretendiam representar uma nova forma de estar no mundo, uma forma de “destruição total”. Essa representação foi, pelo menos temporariamente, bem-sucedida, pois aqueles que não teriam participado anteriormente de tais ações aderiram a esse modo de ser.
Portanto, acredito que os participantes de Pittsburgh se viam como representantes de uma maneira válida para todos, mas não de forma paternalista. Pelo contrário, ao representar uma forma de destruição e fluidez, eles representam a possibilidade de tornar-se qualquer. Diferentemente, por exemplo, de uma vanguarda marxista que define os limites do possível para as massas proletárias, o black bloc representa simplesmente a possibilidade de tornar-se qualquer. Tal conduta é descrita por Melucci como o “sujeito da ação” (1996: 91). Ele nos diz que, ao contrário dos movimentos sociais pré-existentes, que “estavam mais profundamente enraizados em uma condição social específica na qual estavam inseridos, de modo que a questão do coletivo já estava resolvida desde o início” (ibid., 84), os sujeitos de ação contemporâneos rejeitam essa subjetividade preconcebida. Assim, o significado mais verdadeiro da “ação” em “sujeito de ação” seria o ato de se tornar o sujeito que se deseja ser e deixar de se tornar quando o sujeito achar conveniente - em outras palavras, tornar-se a singularidade qualquer. Assim, o impulso destrutivo do black bloc é a destruição de tudo, e isso é contrabalançado pelo impulso criativo de criar uma nova identificação naquele momento, cumprindo assim a afirmação de Bakunin de que o impulso de destruir é também um impulso criativo; o qualquer destruirá a subjetividade a fim de criar novos eus múltiplos.
Mas será que esse desejo também é um desejo de destruir a subjetividade anarquista? Os autores de The Enemy of Mankind Speaks Power afirmam que,
Se sabemos que a cúpula de comércio é uma imagem de si mesma, e sabemos que o manifestante também é uma imagem de si mesmo, então ambos devem ser confrontados se quisermos destruir a sociedade do espetáculo [. . .] até mesmo o mais ideológico dos ativistas anarquistas tornou-se cúmplice do devir-ingovernável coletivo. Foi por meio desse devir - essa perda do meu eu - que tanto os termos estabelecidos pelo discurso empobrecido do ativismo quanto os termos estabelecidos pelo estado foram praticamente derrotados.
Essa afirmação enfatiza o objetivo não apenas de destruir o G20 e o capital global, mas também de destruir o ativista e os sujeitos anarquistas. Quando eles afirmam que o mais ideológico dos ativistas anarquistas “tornou-se cúmplice” no ato de “tornar-se ingovernável” [10], vemos mais claramente o desejo de destruir a subjetividade anarquista. O anarquista mais ideológico está sujeito à força externa da ideologia anarquista; a força da ideologia limita o sujeito. No entanto, no ato do black bloc, até mesmo esse ideólogo tornou-se qualquer e se engajou na destruição da subjetividade por meio da perda do eu. Assim, ao menos naquele momento, o sujeito conquista a qualquer-idade [11] e entra em uma linha de fuga. No entanto, como eu disse acima, esse qualquer tem que se reterritorializar, e isso estava sempre retornando ao anarquista e, em alguns casos, ao queer. A reterritorialização para o anarquista é essencial, pois é o anarquista que deve destruir tudo, mas, no final, o sujeito também terá de destruir o anarquista.
Por fim, essa ausência de uma posição ideológica rígida também é o que prefigura a exigência de nada. Embora os autores reconheçam que alguns indivíduos tenham levantado preocupações sobre a falta de uma estratégia ou ideologia clara que sustente ações como as descritas aqui, eles veem isso como uma vantagem que lhes permite recusar a integração. Eles afirmam: “Em um clima político sem nenhuma esquerda real, adotar uma estratégia com demandas e táticas específicas para atingir nossos objetivos apenas serviria para solidificar os anarquistas como a oposição leal”. Primeiro, aqui vemos que eles continuam a se ver como anarquistas, eles se reterritorializaram. Embora o objetivo de longo prazo seja destruir até mesmo isso, nesta citação vemos que eles mantêm uma subjetividade anarquista. Se esse não fosse o caso, eles não poderiam ver os anarquistas enfrentando a ameaça de serem reconhecidos como a “oposição leal”, porque eles não seriam anarquistas. Em segundo lugar, vemos aqui que eles não exigem nada; eles se recusam a fazer exigências que possam ser atendidas pelo sistema, incorporando assim sua resistência. Ao se tornarem a “oposição leal”, eles seriam apenas aquilo que poderia ser apaziguado com o atendimento de algumas demandas. Ao se recusarem a fazer exigências, ao se envolverem em um ato de destruição total, eles recusam essa incorporação.
Assim, defendo que a rejeição da subjetivação e o tornar-se qualquer é exatamente o que alguns participantes do black bloc no G20 se viram fazendo. Eles se viam como representantes do ainda-por-vir. Além disso, eles parecem acreditar que, nesse ainda-por-vir, a subjetividade do “anarquista” terá de ser destruída junto com todas as outras. Entretanto, eles também continuam a se ver como anarquistas no aqui e agora. Embora eles possam conquistar a desterritorialização, é necessário reterritorializar o anarquista a fim de “vencer”. Por fim, vemos aqui que eles são queer não apenas no sentido de serem sujeitos sexuais queer, mas no sentido de serem sujeitos de destruição total. Se queeridade significa negação, então suas identificações sexuais se tornam de negação, que deve significar o que há de mais significativo na afirmação de que seu pronome preferido é o som de vidro se estilhaçando. Isso, então, gera a razão mais transparente para a equação do referido grito de que estar aqui e ser queer equivale a foder com tudo - ser queer é negar e destruir, é ser contra-hegemônico, não é apenas foder, mas também foder com tudo.
Conclusão
Anarquistas que participam de black blocs (assim como de outros projetos dos quais anarquistas fazem parte) representam um futuro libertário. Esses sujeitos existem como sujeitos anarquistas até que destruam as bandeiras pretas e vermelhas e tirem suas máscaras, até que possam se tornar os mais queer por negarem sua própria queeridade. Deleuze e Guattari chamam esse futuro que representamos de “fora”, o lugar para o qual as linhas de fuga escapam. Entretanto, se vencermos, não poderemos ser complacentes com esse futuro. Richard J.F. Day (2005) enfatiza que o fora deve ser sempre uma passagem em vez de um lugar, pois corremos o risco de hegemonizar o fora e oprimir os Outros ainda não conhecidos. Assim, na linguagem de Agamben, “o exterior não é um outro espaço situado para além de um espaço determinado, mas é a passagem, a exterioridade que lhe dá acesso” (Agamben, 2005, p. 7)
A possibilidade dessa passagem para o exterior é exclusiva de nossa era pós-moderna contemporânea. A “época em que vivemos agora é também aquela em que se torna pela primeira vez possível para os homens terem a experiência da sua própria essência linguística” (Agamben, 1993: 82.3). Em outras palavras, é hoje que podemos estar cientes da natureza construída de nossa própria subjetividade. O fato de podermos reconhecer esse método de subjetividade hoje, e não no passado, também foi reconhecido por Laclau e Mouffe:
Essa não é uma descoberta fortuita que poderia ter sido feita em qualquer momento; pelo contrário, está profundamente enraizada na história do capitalismo moderno. Em sociedades com baixo nível de desenvolvimento tecnológico, em que a reprodução da vida material é realizada por meio de práticas fundamentalmente repetitivas, os “jogos de linguagem” ou as sequências discursivas que organizam a vida social são predominantemente estáveis. Essa conjuntura dá origem à ilusão de que o existir dos objetos, que é uma construção puramente social, pertence às próprias coisas [...] É somente no mundo contemporâneo, quando a mudança tecnológica e o ritmo deslocador da transformação capitalista alteram constantemente as sequências discursivas que constroem a realidade dos objetos, que o caráter meramente histórico do ser se torna totalmente visível (Laclau e Mouffe, 1987: 97).
Assim, agora que podemos estar cientes da natureza fraturada, instável e construída da subjetividade, alguns estão tentando transformar isso em formas de estar no mundo. Mas como poderia ser um futuro construído em torno da imagem apresentada aqui, de singularidades quaisquer e linhas de fuga, constantemente desterritorializando e reterritorializando? Se os anarquistas que participam dos black blocs são uma imagem do futuro, qual é esse futuro? A maneira mais óbvia de responder a essa pergunta é recusar-se a respondê-la. Isso se deve ao fato de que as comunidades rizomáticas de quaisquer não teriam uma forma ou um tipo singular, o que simplesmente recriaria a hegemonia. Em vez disso, os anarquistas contemporâneos estão lutando pela liberdade da diferença. Ao dizer qual seria o futuro, correríamos o risco de fazer uma exigência que poderia ser absorvida.
Entretanto, Agamben, ao contrário de Deleuze e Guattari, pelo menos nos dá algumas ideias sobre o que pode nos levar a esse futuro. Ele afirma que aqueles que estiverem dispostos a levar a rejeição da subjetividade até seu resultado final “serão os primeiros cidadãos de uma comunidade sem pressupostos nem Estado” (Agamben, 1993: 82.3). Ele afirma que a luta pela política vindoura “não será já a luta pela conquista ou controlo do Estado, mas luta entre o Estado e o não--Estado (a humanidade), disjunção irremediável entre as singularidades quaisquer e a organização estatal” (ibid., 86.5). Richard J.F. Day desenvolve ainda mais as ideias de Agamben, afirmando que
Assim como a rejeição da moralidade coercitiva não precisa necessariamente levar a um relativismo niilista passivo, a rejeição da comunidade hegeliana não precisa necessariamente levar a um individualismo antissocial. Na teoria pós-estruturalista, isso conduz a algo bem diferente, que pode ser abordado por meio do conceito de singularidade [. . .] que rompe as distinções rígidas entre o indivíduo e a comunidade, o particular e o universal (Day, 2005: 180).
Esse é o ainda-por-vir contra-hegemônico de Day. Entretanto, ele também nos diz que, nessas comunidades vindouras, nunca devemos nos permitir concluir que chegamos a um fim teleológico. Em vez disso, essas comunidades e aqueles que as compõem devem estar sempre abertos para “ouvir outro outro” (Day, 2005: 200), um Outro que ainda não existe, mas que pode existir nesse ainda-por-vir. Essas comunidades vindouras não devem imaginar que eliminaram todos os pontos a partir dos quais a subjugação poderia ocorrer ou que todos os sujeitos potencialmente subjugados foram liberados, mas, em vez disso, devem estar sempre abertas ao novo.
Para além da adesão temporária à qualquer-idade nos black blocs, quem poderia provocar esse ainda-por-vir? A resposta de Agamben a essa pergunta é problemática. Richard J.F. Day ressalta que Agamben parece acreditar que são aqueles que estão mais entrincheirados no capitalismo de consumo que serão capazes de trazer esse futuro, pois são esses indivíduos que se mostrarão mais conscientes da natureza pós-moderna da subjetividade. Entretanto, Day discorda:
É mais provável que as comunidades vindouras sejam encontradas naqueles cadinhos de sociabilidade e criatividade humanas dos quais emerge o radicalmente novo: identidades racializadas e etnizadas, subculturas queer e juvenis, anarquistas, feministas, hippies, povos indígenas, “desviantes” de todos os tipos em todos os tipos de espaços (Day, 2005: 183).
Vemos isso representado nos black blocs, cuja subjetivação é temporariamente apagada pelo nulo do rosto mascarado espalhado pelo corpo. No entanto, aqui vemos que não são apenas os ativistas black blocs que compõem a representação desse ainda-por-vir, tampouco o fazem apenas durante o black bloc. Todos aqueles que Day menciona, alguns dos quais podem, às vezes, ser participantes do black bloc, também são (não-)cidadãos em potencial desse futuro não-Estado. Eles representam as comunidades vindouras [12] e são exemplos vivos de sua possibilidade de transformação.
Referências
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[1] Nota do tradutor: optei por manter a frase inicial em inglês, por ser algo próprio dos protestos que ocorreram em Pittsburgh. Em tradução livre, significa “Estamos Aqui, Somos Queer, Somos Anarquistas!”. Utilizarei a frase original em inglês durante o restante da tradução em respeito à sua enunciação pelos membros do black bloc. Para sugestões em relação à tradução, sinta-se livre para contatar: mltpfeil@gmail.com.
[2] Se se identificassem, então provavelmente seria um pink bloc, que emergiu, sim, durante as revoltas noturnas da Universidade de Pittsburgh.
[3] O termo “identificação” soluciona a preocupação de Alberto Melucci em Challenging Codes, onde ele afirma que “o termo ‘identidade’ é conceitualmente insatisfatório: ele transmite muito fortemente a ideia da permanência de um sujeito. No entanto, neste momento, nenhuma outra designação parece ter a capacidade de substituí-lo em seu propósito” (1996: 72). Afirmo que “identificação” é exatamente essa designação.
[4] Nota do tradutor: em inglês, a palavra rosto se escreve “face”, aproximando-se da mesma palavra em portugues, que significa “rosto”. No entanto, mantive a tradução como “rosto” em virtude da referência a Deleuze e Guattari.
[5] Essa questão de escolher abraçar o apagamento da subjetividade é particularmente importante. Embora Žižek nos mostre que qualquer ocultação do rosto pode expor a pessoa como a Outra Coisa, apagando a identidade assumida, não parece ser o caso de que, por meio dessa ocultação, a pessoa sempre cria necessariamente uma nova subjetividade. Em vez disso, é a questão de fazer essa escolha durante o black bloc que permite isso, uma escolha que muitas vezes não é feita, por exemplo, por uma noiva com véu.
[6] Nota do tradutor: Somos uma Imagem do Futuro.
[7] The Enemy of Mankind Speaks Power não tem autor(es) associado(s) a ele, o que elimina a subjetividade identitária da autoria. Além disso, o zine não está disponível em nenhum lugar da Internet. O objetivo dos produtores desse zine era mostrar que as redes de compartilhamento entre humanos ainda são valiosas e, por isso, eles nunca criaram uma versão acessível pela Web. Em nome da manutenção dessa tradição, se algum leitor quiser uma cópia desse zine, poderá entrar em contato com o autor deste artigo para receber uma cópia física pelo correio.
[8] Nota do tradutor: aqui, “queer” é usado como verbo. O ato de “queer” seria o ato de negar. Queer não é usado como substantivo [sobre ser algo], mas como verbo [sobre exercer algo]. Do mesmo modo, ao utilizar a expressão “tornar-se qualquer”, a tradução poderia ser, também, “se tornar o que quer que seja”. No entanto, mantive a expressão inicial para fazer jus à referência a Agamben.
[9] Nota do tradutor: em tradução livre, esse termo poderia ser pensado como: fluidez, fluidariedade. Para ser mais próximo do sentido original, optei pelo segundo termo na tradução.
[10] Nota do tradutor: aqui, traduzir “becoming-ungovernable” como “tornar-se ingovernável”, e antes como “devir-ingovernável”. Ora como verbo, ora como substantivo, dependendo da utilização.
[11] Nota do tradutor: na versão original, “whatever-ness”, É um jogo de palavras que transforma a palavra “whatever” [qualquer] em uma qualidade. Traduzi como “qualquer-idade”, utilizando o sufixo “idade” para atribuir qualidade a “qualquer”.
[12] Embora Agamben use o termo “a comunidade que vem”, prefiro seguir Richard J.F. Day (2005) e chamá-las de comunidades que vêm. Como Day aponta, a linguagem de “comunidade” de Agamben é problemática porque implica uma coisa singular no mundo em vez de uma multiplicidade de possibilidades. Parece implicar que, apesar de tudo, seremos todos iguais e todos faremos parte de uma única comunidade, reproduzindo assim a hegemonia.