Errico Malatesta
Idealismo e materialismo
Foi mil vezes constatado que os homens, antes de alcançar a verdade (ou melhor, o pouco de verdade relativa apreensível nos diversos momentos de seu desenvolvimento intelectual e social), têm tendência a cair nos erros mais opostos, vendo as coisas ora de um lado, ora de outro, e saltando, assim, de um exagero a outro.
É um fenômeno desse tipo, e que interessa principalmente a toda a vida social contemporânea, que quero examinar aqui.
Há alguns anos, todos eram “materialistas”. Em nome de uma “ciência” que não era outra coisa senão a dogmatização de princípios gerais emanados de conhecimentos positivos demasiado incompletos, pretendia-se explicar toda a psicologia humana e todas as reviravoltas históricas da humanidade, em função das simples necessidades materiais elementares. O “fator econômico” explicava tudo: o passado, o presente e o futuro; todas as manifestações do pensamento e do sentimento, todas as vicissitudes da vida: amor e ódio, paixões boas e más, condição da mulher, ambição, ciúme, orgulho de raça, relações de toda sorte entre indivíduos e povos, guerras e paz, submissões ou revolta das massas; diferentes constituições da família e da sociedade, regimes políticos, religião, moral, literatura, arte e a própria ciência. Tudo era só uma simples consequência de um modo de produção e distribuição das riquezas e do instrumento de trabalho que prevalecia em cada época. E aqueles que tinham uma ideia mais ampla e uma concepção menos simplista da natureza humana e da história eram taxados, tanto no campo dos conservadores quanto naquele dos subversivos, de atrasados e indignos da “ciência”.
Essa maneira de ver influía naturalmente sobre a conduta prática dos partidos, e tendia a fazer sacrificar todo nobre ideal aos interesses materiais, às questões econômicas, amiúde de importância muito negligenciável.
Hoje a moda mudou e todos são “idealistas”: cada um afeta desprezar o “ventre” e fala do homem como se ele fosse espírito puro, para quem comer, vestir-se e satisfazer suas necessidades fisiológicas são contingências passageiras, às quais não se deve dar atenção sob pena de decadência moral.
Não tenciono aqui me ocupar desses sinistros indivíduos cujo “idealismo” é só hipocrisia e engodo: do capitalista que prega aos operários o sentimento do dever e o espírito do sacrifício para poder reduzir sem resistência os salários e aumentar seus lucros; do “patriota” que, completamente inflamado de amor cívico e espírito nacional, devora sua pátria e, se ele pode, aquela dos outros; do militar que, para a glória e a honra da bandeira, explora os vencidos, oprime-os e pisoteia-os.
Refiro-me às pessoas sinceras, e especialmente alguns de nossos camaradas que, tendo visto que a luta para as melhorias econômicas acabara por absorver toda a energia das organizações operárias até apagar toda potencialidade revolucionária, e vendo agora que uma boa parte do proletariado deixa-se arrancar docilmente todo vestígio de liberdade, e beija, de bom ou mau grado, o bastão que o golpeia, na vã esperança de obter um trabalho garantido e um bom pagamento, esses camaradas têm tendência a abandonar por desgosto toda preocupação e toda luta econômicas, limitando toda a sua atividade ao nível da educação e das lutas propriamente insurrecionárias.
O problema principal e a necessidade fundamental concernem à liberdade, dizem eles. A liberdade não se conquista e não se conserva senão por lutas fatigantes e cruéis sacrifícios. É preciso, portanto, que os revolucionários não deem importância às pequenas questões de melhorias econômicas, que eles combatam o egoísmo que prevalece nas massas, que eles propaguem o espírito de sacrifício; e, em vez de prometer um regime de abundância, que eles inspirem à massa o santo orgulho de sofrer por uma causa nobre.
Perfeitamente de acordo, mas não exageremos. A liberdade, plena e completa, é certamente a conquista essencial, porque é a consagração da dignidade humana. É o único meio pelo qual se pode e deve-se resolver os problemas sociais em benefício de todos. Mas a liberdade é uma palavra vã se ela não é a acompanhada da força, isto é, dos meios de exercer livremente sua atividade.
A máxima “quem é pobre, é escravo” é sempre válida, conquanto seja igualmente verdadeiro que “quem é escravo, empobrece-se e perde todas as características fundamentais do ser humano”. As necessidades materiais, as satisfações da vida vegetativa são decerto coisas de ordem inferior, e inclusive desprezível, mas elas são a base necessária de toda vida superior, moral e intelectual. Mil razões, de natureza diversa, animam o homem e determinam o curso da história; mas é preciso comer. Primeiro viver, depois filosofar.
Um pouco de tecido, de azeite e de terras coloridas são para nosso senso estético pouquíssimas coisas diante de uma tela de Rafael. Mas sem essas coisas materiais e relativamente sem valor, Rafael não teria podido realizar seu sonho de beleza.
Creio que os “idealistas” são pessoas que comem todos os dias e estão sempre mais ou menos seguros de poder comer no dia seguinte. É natural que seja assim, porque, para poder pensar, aspirar a temas elevados, um mínimo, mesmo ínfimo, de bem-estar material é verdadeiramente indispensável. Houve e há homens que se elevaram aos mais altos cumes do sacrifício e do martírio, que afrontam serenamente a fome e a tortura, e continuam a combater por sua ideia, heroicamente, passando pelos mais terríveis sofrimentos. Mas são homens que se desenvolveram em condições relativamente favoráveis e puderam acumular um conjunto de energias latentes que, em seguida, sustenta-os, quando a necessidade faz-se sentir. Ao menos, é a regra geral.
Frequento há longos anos organizações operárias, grupos revolucionários, sociedades educativas, e sempre vi que os mais ativos, os mais zelosos, eram aqueles que se encontravam nas menos tristes condições. Vinham não por necessidade, mas para cooperar em uma boa obra e sentir-se enobrecidos por um ideal. Os mais miseráveis, aqueles que seriam os mais diretamente concernidos por uma mudança social, estavam ausentes ou, no conjunto, desempenhavam um papel passivo.
Lembro-me de como a propaganda era difícil em certas regiões da Itália há trinta ou quarenta anos. Os trabalhadores agrícolas e uma boa parte dos operários das cidades viviam em condições verdadeiramente animais, miséria que eu gostaria de crer definitivamente superada, conquanto hoje não faltem razões para temer o retorno. Quantos movimentos populares provocados pela fome eu vi estrondear e acalmar-se de repente pela abertura de algumas cozinhas populares e pela distribuição de algum dinheiro.
Deduzo de tudo isso que, antes de tudo, há uma ideia que deve animar a vontade e que são necessárias algumas condições para que a ideia possa nascer e agir.
Tudo isso confirma, portanto, nosso velho programa que proclama a indispensabilidade da emancipação moral, política e econômica; a necessidade de colocar a massa em condições materiais tais que elas permitam o desenvolvimento das necessidades em ideias.
Lutar pela emancipação integral, e, enquanto se espera e prepara-se o dia em que ela será possível, arrancar do governo e dos capitalistas todas as melhorias políticas e econômicas que possam aliviar para nós as condições da luta e aumentar o número daqueles que lutam em plena consciência. E, para isso, é preciso apelar unicamente aos meios que não impliquem o reconhecimento da ordem atual, mas que preparem os caminhos do futuro; tal é a nossa tarefa.
Propagar o sentimento do dever e do espírito de sacrifício, mas se lembrar de que o exemplo é a melhor das propagandas, e que é inútil esperar dos outros o que nós próprios não fazemos.