Título: Os anarquistas ante os problemas revolucionários
Data: Junho de 1930, Paris
Fonte: MALATESTA, Errico. A anarquia e outros escritos. Tradução: Plínio Augusto Coelho. São Paulo: Intermezzo, 2018. pp. 121-129. [orig.: Vogliamo, junho de 1930, Paris]

Há, numa parte de nosso movimento, uma grande paixão para discutir problemas práticos que a revolução deverá resolver.

Eis que é um grande bem, ainda que as soluções propostas até então não sejam nem muito numerosas nem muito satisfatórias. O tempo passou onde se pensava que a insurreição bastaria totalmente. “Uma vez o exército e a polícia vencidos, bem como os poderes dos grupos, o resto irá por si só”, dizia-se. O resto era, apesar de tudo, o essencial.

“A partir do momento em que a insurreição tiver sido vitoriosa, todos poderão saciar sua fome, ter uma boa moradia e estar bem vestidos: basta tomar a riqueza lá onde ela está para que a revolução seja instalada sobre bases de granito e para que a humanidade avance a passos seguros, cada vez mais alto rumo ao ideal”. Ninguém pensava em verificar se havia efetivamente bastantes riquezas para todos e se as subsistências acumuladas encontravam-se lá onde se necessitaria delas. O espetáculo das lojas na cidade, iluminadas e repletas de mercadorias tranquilizava e entusiasmava as massas. Os agitadores – conscientes ou não desse erro grosseiro – encontravam nessa ilusão dos famintos e dos miseráveis um meio de propaganda inesgotável.

Hoje sabemos, é verdade, que a produção feita por todos e para todos, com a ajuda das máquinas e da química, pode aumentar enormemente. Mas também sabemos que, no sistema atual, os capitalistas geralmente só produzem o que eles podem vender com lucro, interrompendo a produção assim que seus lucros são ameaçados. Se, por erro, ou por causa de uma rivalidade entre os capitalistas, a produção ultrapassa a oferta, ocorre a crise e leva o mercado a esse estado de crise relativa que é muito vantajosa para os industriais e comerciantes. Compreende-se, pois, qual perigo teria em fazer crer que há superabundância de produtos e quanto será necessário, em caso de insurreição vitoriosa, que todos se ponham a trabalhar.

Assim, passou o tempo em que se dizia “nossa tarefa essencial é demolir” e para a construção “nossos sucessores ocupar-se-ão disso”. Esta era uma afirmação cômoda, que podia passar por hábil quando não havia possibilidades imediatas de revolução; servia a excitar a aversão e o ódio contra todo estado presente para intensificar a vontade de destruir tudo. Agora a situação europeia traz em si germes de possibilidades revolucionárias. Talvez, de um momento a outro, nós nos encontremos no instante da passagem da teoria à prática. Não devemos esquecer que a vida social e a vida individual não admitem nem interrupções nem incertezas em sua continuidade. Devemos e queremos comer todos os dias, nós e nossos filhos, antes que nossos filhos possam pensar em cuidar de si próprios.

Estaremos todos de acordo, portanto, para admitir que além do problema das armas, que consiste em assegurar a vitória contra as forças materiais do adversário, há o problema imediato de viver, dos transportes e do trabalho após a vitória. Estamos de acordo que uma revolução que só produzisse a desordem econômica não seria possível.

Mas não se deve ir de um extremo a outro e crer que poderemos, de antemão, ter uma solução para todos os problemas práticos. Não se deve prever em demasia nem regulamentar o futuro. Em vez de preparar a anarquia, faríamos sonhos irrealizáveis. Cairíamos no autoritarismo e, inconscientemente ou não, propor-nos-íamos agir como um governo que, em nome da liberdade e da vontade populares, submete o povo à sua própria dominação.

Ocorre que eu leia palavras extravagantes em relação a isso, ao menos do ponto de vista anarquista. Um camarada, por exemplo, disse que: “As massas teriam razão de protestar contra nós se, após as ter convidado ao muito doloroso sacrifício de uma revolução, disséssemos-lhes: fazei o que quiserdes, agrupai-vos, produzi, vivei em comum como bem quiserdes”.

Por que não? Sempre dissemos às massas do povo que elas não devem contar nem conosco nem com ninguém; que deve tratar elas próprias de seus interesses; que, seguramente, só terão o que souberem tomar, e que só o conservarão defendendo-o. É justo e natural que nós, iniciadores, estimulantes e parte integrante da massa, busquemos impulsionar o movimento na melhor via – para isso, devemos preparar-nos com esse objetivo –, mas permanece um princípio sempre fundamental: a decisão cabe aos interessados.

Leio também: “Criaremos um regime que, se ele não é totalmente libertário, ao menos portará nossa marca e sobretudo dará livre acesso à realização progressiva de nossos princípios”. O que é isso? Um pequeno governo, não muito mau, que cuidará de suicidar-se o mais rápido possível para dar lugar à anarquia? Mas não estávamos de acordo para estimar que todo governo tem tendência, não a suicidar-se, mas a perpetuar-se e tornar-se cada vez mais despótico? A missão dos anarquistas não é combater todo regime não fundado sobre a liberdade plena e total? E estamos errados ao dizer que os anarquistas no poder não poderiam fazer diferente dos outros?

Um bom camarada, persuadido como outros de um “plano” anarcossindicalista, declara: "Desde o triunfo da insurreição, deveremos confiar à classe operária – preparada por nosso ensinamento com vistas a essa grande função social – a gestão de todos os meios de produção, de transporte, de troca etc.” “Nosso ensinamento?” Em quantos séculos o camarada quer fazer a revolução? Se ao menos os séculos bastassem, mas, de fato, “não se educa” a massa. Se ela não tem a possibilidade e a necessidade de agir por si mesma, permanece passiva. A organização revolucionária dos trabalhadores, por mais útil e necessária que seja, não pode estender-se nem subsistir indefinidamente. Tendo chegado a certo estágio de desenvolvimento, se ela não tem ação revolucionária, ou o governo rompe-se ou ela rompe-se a si mesma. E tudo deve ser recomeçado.

Demasiado amiúde as pessoas mais “práticas” são utopistas ingênuas!

A discussão seria sem dúvida menos acadêmica se não se tratasse da Itália, país onde a livre organização dos trabalhadores está destruída e proibida, onde a liberdade de imprensa, de reunião, de associação está suprimida, onde todos os militantes conhecidos – anarquistas, comunistas, republicanos, socialistas – foram exilados, deportados, presos a fim de não poderem falar, mover-se, nem mesmo respirar.

Pode-se razoavelmente esperar uma reviravolta próxima, em um país reduzido às condições descritas, uma Revolução social, no sentido profundo que damos à palavra? Hoje, o que é urgente e possível é, de início, a reconquista das condições necessárias à propaganda e à organização.

Parece-me que a razão das dificuldades, das incertezas e das contradições reside na concepção de anarquia sem anarquistas, ou naquela da propaganda que converte ao anarquismo antes que as condições do meio tenham sido transformadas profundamente. Entre nós, alguns têm o hábito de dizer: “A revolução será anarquista ou não será”. Mais uma frase empolada que soa oca. É, com efeito, uma lapalissada do tipo “o papel branco deve ser branco”. Mas se quiser dizer que a única revolução é aquela dos anarquistas, então, é uma asneira, porque há e haverá movimentos que, mudando radicalmente as condições existentes, dando uma nova direção à história, merecem o nome de revolução. Seria como dizer que as revoluções do passado foram vãs assim como aquelas do futuro que não serão anarquistas. Estou inclusive inclinado a crer que o triunfo completo da anarquia virá não pela violência revolucionária, mas por uma evolução gradual, quando uma precedente revolução ou revoluções precedentes tiverem destruído a maioria dos obstáculos militares e econômicos que se opõem ao desenvolvimento moral dos povos, ao aumento da produção, à satisfação das necessidades essenciais e à harmonização dos interesses em conflito.

De todo modo, se levarmos em conta nossas magras forças e o espírito da massa, e se não quisermos tomar nossos desejos por realidades, devemos admitir que a próxima etapa revolucionária – talvez iminente – não será anarquista. Assim, o mais urgente não é legiferar soberanamente sobre a história, mas pensar no que poderemos e deveremos fazer em uma revolução na qual não seremos senão uma minoria relativamente fraca e mal armada.

Camaradas, talvez levados também pela gloríola socialista e pelas ilusões que fez nascer a revolução russa, creem que a tarefa dos autoritários é mais fácil do que a nossa, porque eles têm um “plano”: apoderar-se do poder e impor seu sistema pela força.

Não é verdade. O desejo de agarrar-se ao poder é certamente partilhado pelos socialistas e comunistas estatistas, e, em certa medida, eles podem chegar a ele. Mas os mais inteligentes deles bem sabem que, estando no poder, eles poderão, a bem da verdade, tiranizar o povo e submetê-lo a experiências caprichosas e perigosas. Poderão substituir a burguesia atual por uma nova classe privilegiada, mas eles não poderão fazer o socialismo e não poderão aplicar o “plano”. Como se pode destruir uma sociedade milenar e fundar uma nova e melhor por meio de decretos ditados por alguns homens e impostos pela baioneta? E é a razão honesta (não quero ocupar-me de outras razões menos confessáveis) pela qual, na Itália, socialistas e comunistas estatistas recusaram sua participação e impediram a revolução quando a possibilidade de fazê-la existia. Eles sentiam que não teriam podido dominar a situação e teriam de deixar o campo livre aos anarquistas ou se fazer os instrumentos da reação. Mais ainda nos países onde eles estão no poder… sabemos o que fizeram.

Nossa missão, se ao menos tivéssemos a força material de livrar-nos da força material que nos oprime, seria muito mais fácil, porque nós não pedimos da massa senão aquilo de que é capaz e o que quer fazer, embora fazendo tudo o que podemos para desenvolver sua capacidade e sua vontade.

Mas devemos evitar tornar-nos menos anarquistas, porque a massa não é capaz de anarquia? Se a massa quer um novo governo, não é por isso que devemos fazer menos para dissuadir as pessoas da inutilidade, da nocividade do governo, e para impedir que ele imponha-se igualmente a nós e àqueles que não o querem. Devemos fazer o que pudermos para que a vida social, e em particular a vida econômica, continue do melhor modo, sem intervenção estatista. Assim, devemos estar preparados o máximo possível aos problemas práticos da produção e da distribuição, lembrando-nos, além disso, que os mais aptos para organizar o trabalho são aqueles que o fazem, cada um em seu próprio ofício.

Devemos buscar ser parte integrante e, se possível, preponderante, no ato insurrecional. Todavia, uma vez abatidas as forças de repressão que servem para manter em escravidão o povo, uma vez desfeitos o exército, a polícia, a magistratura etc., toda a população estando armada para poder opor-se a todo retorno ofensivo da reação, os mais voluntários ocupando-se da organização dos negócios públicos, então, para prover às necessidades mais urgentes utilizando prudentemente as riquezas existentes nas diferentes localidades, deveremos procurar evitar todo desperdício, fazer espeitar e utilizar os hábitos, os costumes, os sistemas de produção, de troca, de assistência que satisfazem, bem ou mal, as necessidades. Será preciso igualmente fazer desaparecer todo vestígio de privilégio, mas evitando destruir o que ainda não se pode substituir por algo que responda melhor à necessidade de todos. Impulsionar os operários a apoderar-se das fábricas, a federar-se e trabalhar para a coletividade, estimular também os camponeses a tomar as terras e os produtos usurpados pelos proprietários e entender-se com os operários para as trocas necessárias.

Se não podemos impedir a constituição de um novo governo, se não podemos abatê-lo de imediato, deveremos, em todo caso, recusar-lhe nossa ajuda. Recusar o serviço militar, recusar pagar os impostos. Não obedecer por princípio, resistir até ao extremo a toda imposição das autoridades e recusar absolutamente aceitar todo posto de comando.

Se não podemos abater o capitalismo, deveremos exigir para nós, e para todos aqueles que quiserem, o direito de servir-se gratuitamente dos meios de produção necessários para uma vida independente.

Aconselhar, quando temos conselhos a dar, ensinar se soubermos mais do que os outros; dar o exemplo da vida pelo livre acordo; defender, mesmo pela força, se necessário e se possível, nossa autonomia contra toda pretensão governamental… mas jamais comandar.

Assim, faremos a anarquia, porque a anarquia não se faz contra a vontade das pessoas, mas, ao menos, preparemo-la.