Título: A dádiva como ela é, e não como gostaríamos que ela fosse
Data: Novembro de 2005
Fonte: https://maquinacrisica.org/2019/02/28/a-dadiva-como-ela-e-e-nao-como-gostariamos-que-ela-fosse/
Notas: Tradução: Máquina Crísica – Grupo de Estudos em Antropologia Crítica [GEAC]

Uma parcela significativa das ciências sociais contemporâneas, principalmente aquelas que enfatizam os chamados “atores”, arrasta detrás de si um longo cortejo de transfigurações moralistas, inversões finalistas e construções axiológicas nunca explicitadas com clareza. Neste quesito a problemática da dádiva e todos os seus derivados – amor, amizade, generosidade, caridade, ou seja, todas as relações interpessoais suscetíveis de celebração – nos convidam a empreender um contundente trabalho de desilusão. Trata-se de um esforço de subversão intelectual que talvez seja a vocação especial do spinozismo nas ciências sociais.

Introdução

Teria a filosofia spinozista algo a dizer à pesquisa contemporânea em ciências sociais e, particularmente, às pesquisas que tomam por objeto as diferentes formas do dom? Certamente um percurso nesse sentido não promete ser fácil – envolver-se com idéias filosóficas sem fazer necessariamente filosofia… De qualquer forma, vale a pena correr semelhante risco. Sendo um filósofo clássico e, portanto, anterior à grande divisão do trabalho graças à qual se estabeleceu o domínio próprio das ciências sociais, Spinoza não deixa de ressoar nos propósitos de quem atualmente pesquisa sobre o mundo social. Basta percorrer sua filosofia para ficar impressionado com o fato de que ela parece esconder em seu seio uma ciência social latente, tendo conservado intactas algumas ferramentas de valor inestimável para os pesquisadores que, alguns séculos mais tarde, decidem tomá-las em suas mãos. É verdade que Spinoza não repercute de forma homogênea no campo das ciências sociais. Digamos que é necessário ter uma sensibilidade algo estruturalista, e inclusive um pouco anti-humanista, para conseguir entender melhor a sua mensagem. Deste ponto de vista, poderíamos afirmar – à maneira daquele que foi seguramente um grande spinozista nas ciências sociais – que já é tempo de retornar a Spinoza em nossa conjuntura presente. Em todo caso, esta opção está colocada para todos aqueles que não estão necessariamente satisfeitos com esta época incontestavelmente dominada pela figura do sujeito ou do ator, pela apologia do livre-arbítrio, da consciência voluntária, afirmativa e responsável; trata-se de uma época em que numerosas correntes das ciências sociais mostram-se frequentemente abertas a ratificar, de forma douta, os mais ordinários sentimentos de si. Não deve surpreender que essas ciências sociais orientadas aos “atores” tenham atraído em seu rastro, a uma distância variável – eventualmente muito curta –, todo o cortejo das transfigurações moralistas, das inversões finalistas e das construções axiológicas contras as quais Spinoza nunca deixou de lutar. Evidentemente, neste quesito a problemática do dom e todos os seus derivados – amor, amizade, generosidade, caridade, ou seja, todas as relações interpessoais suscetíveis de celebração – abrem um terreno de escolha. E, além disso, significam uma ocasião para empreender um trabalho de desilusão diretamente proporcional à intensidade das fabricações imaginárias que envolvem as questões que acabo de evocar. É claro que existem experiências da vida interpessoal que se prestam melhor do que outras à entropia moralista e ao encantamento sentimental. Contudo, não é verdade que deixar-se levar por essa inclinação espontânea à efusividade ofereça os melhores instrumentos à nossa capacidade compreensiva. Spinoza já tinha advertido que certas afecções mal controladas são extremamente prejudiciais quando se trata de empreender algum esforço compreensivo. Poderíamos acrescentar ao seu conselho, que convida-nos a evitar qualquer desejo de “zombar, deplorar ou detestar”[1], outra orientação que consiste em prescindir do maravilhamento. O primeiro parágrafo do Tratado Político propõe que olhemos os homens “tal como eles são e não como nós gostaríamos que eles fossem” (TP, I, 1). É que nesta matéria, as ilusões cobram um preço muito alto. Sem dúvidas, um erro semelhante – e, diga-se de passagem, bastante comum – a propósito do dom não implica consequências tão trágicas. Contudo, trabalhar para desfazê-lo não é tarefa menos urgente. O erro em questão é solidário a toda uma visão “humanista” do mundo social da qual ele próprio é representativo, apresentando-se, portanto, como um bom ponto de partida para um esforço de subversão intelectual que talvez seja a vocação especial do spinozismo nas ciências sociais.


1. MAUSS: entre conformidade e hesitação

Certamente é preciso agradecer ao MAUSS[2] por ter recolocado a questão do dom no centro do palco das ciências sociais. Este coletivo promove um volume enorme de produção e parece obstinadamente engajado em chamar a atenção para as suas problemáticas. Tal esforço sem dúvidas produz efeitos. Mas que efeitos, exatamente? A questão é árdua, na medida em que se torna necessário percorrer as variações interpessoais e as variações temporais para fazer justiça à diversidade de enfoques que confluem no campo de debates estimulado pelo MAUSS. O fato é que, em vinte anos, o MAUSS – se é que podemos falar no singular – não permaneceu idêntico a si mesmo. Seria preciso ter má fé para identificar nessas metamorfoses um motivo de recriminação; um pensamento evolui, empreende inflexões: por isso podemos dizer que ele está vivo. Contudo, esta situação também dificulta o debate crítico, posto que o corpus a considerar apresenta-se, hoje, como uma sedimentação de estratos a tal ponto diversos, e às vezes contraditórios, que nele poderíamos encontrar muitas saídas possíveis a quaisquer objeções específicas e circunstanciadas. Como interpelar o MAUSS sem que ele tenha a possibilidade de obstruir a crítica lançando mão de alguma citação retirada de outros lugares e momentos? Isto é particularmente claro a propósito da questão do interesse e do desinteresse, em relação a qual Alain Caillé, por exemplo – afinal, já é hora de deixar de falar em termos genéricos –, derivou de maneira muito nítida… mas, ao que parece, recusando-se a tomar conhecimento pleno deste fato. Caillé propõe que existe ao mesmo tempo “um interesse por si mesmo, primeiro e irredutível, (…) e um interesse em relação ao outro, também ele primeiro e irredutível”[3], mediante o qual o dom poderia escapar do desinteresse puro. Não obstante, este mesmo autor também se retrata observando que realizar tal afirmação é “dar ainda muita base à linguagem do interesse”, de modo que “seria melhor encontrar um termo genérico para designar o interesse pelo outro”[4]. Como compreender essas oscilações? Não estou seguro de que o neologismo “aimance[5], proposto por Caillé como alternativa, vá muito além de soluções meramente nominais para uma contradição que, na verdade, não deveria ter razão de ser, desde que a deriva teórica em direção ao interesse seja encarada de maneira consequente. No entanto, é verdade que a coerência é, às vezes, custosa, particularmente neste caso, onde a teorização do dom foi edificando-se, por longos anos, sobre a tese do desinteresse, a ponto de identificar-se totalmente com ela e de definir a própria singularidade dos trabalhos empreendidos pelo MAUSS. Parece que essa identidade de origem esforça-se por perseverar em seu próprio ser: a crença primeira no desinteresse resiste ao abandono e sobrevive nominalmente, a despeito de um rearranjo teórico que a desmente de forma radical.

Em meio a esses movimentos por vezes contraditórios e por vezes negados de um corpus teórico cuja evolução deveria nos alegrar, o que poderíamos dizer a respeito do MAUSS que possa resistir a tantas variações? Sem dúvidas, seu centro gravitacional estabeleceu-se em torno de um humanismo do dom. E é provavelmente desta escolha “filosófica” que nasce a maior parte dos seus problemas, e mais precisamente de uma espécie de desejo evanescente, raramente explicitado como tal, às vezes intensamente negado[6], e portanto transbordante na maioria dos textos, de celebrar a beleza específica do gesto doador. Se tal desejo não ambiciona manter o dom no registro do encantamento, pelo menos pretende encará-lo como um dos gestos mais admiráveis e mais saturados de esperança: algo assim como uma dignidade da condição humana[7]. Tudo se passa como se o dom condensasse em si mesmo todas as esperanças de que as sociedades humanas possam, quem sabe, escapar à violência dos egoísmos. O dom carregaria em si todas as possibilidades de harmonia social, razão pela qual seus analistas maussianos parecem ter desposado a causa imanente ao seu próprio objeto, correndo o risco de transitarem da posição de observadores para a posição de cuidadores do dom. Certamente o próprio Marcel Mauss havia identificado no dom/contra-dom a “rocha de uma moral eterna”. Contudo, o autor reservou somente às conclusões de seu célebre Ensaio – do qual poderíamos dizer que elas não constituem a parte mais robusta – um movimento que transcende a análise estrita, em direção às preferências de sua visão de mundo e a celebração de uma moral compatível com ela. É esta separação que parece apagar-se incessantemente nos trabalhos do MAUSS, pois neles transpira muito visivelmente a tomada de partido em favor da causa do dom. Tal inclinação é tão intensa que descamba seguidamente para a apologia: uma apologia do desinteresse, concebido como radicalmente irredutível ao interesse. “Não há possibilidade de fazer o egoísmo parir o altruísmo”, diz-nos Caillé[8], recorrendo a termos que, por si mesmos, indicam toda uma orientação intelectual que não deixa de ser problemática. Se já é necessário desconfiar do pensamento antinômico, o que dizer então daquele pensamento que opera mediante antinomias morais? Não podemos ter certeza de que a oposição entre “egoísmo” e “altruísmo” seja capaz de oferecer uma matriz de leitura pertinente para o dom. Temos, inclusive, boas razões para crer que ela não só carece de tudo aquilo que é fundamental ao pensamento da complexidade, mas também sofre os efeitos de uma preferência teórica pelo desinteresse que lhe impede de conceber as potências geradoras do interesse. Pelo fato de estar muito ligado à necessidade de defender e ilustrar certa “esperança” – mesmo quando escolha negar este fato[9] –, o humanismo teórico não pode se permitir ver o dom “tal como ele é”. Mas nem tudo se explica por essa distorção generalizada. Neste ponto é necessário esclarecer o seguinte: minha crítica não coaduna com a ideia perfeitamente absurda de conceber a existência de uma ciência social “axiologicamente neutra” e despojada de qualquer política. Mas ao não esclarecer as relações – necessárias – do científico com o extra-científico na construção de uma ciência social, furtando-se de evidenciar como seu delicado equilíbrio poderia ser articulado, as melhores intenções do mundo ficam no vazio. Não só é possível, mas também viável, que as questões do dom, da solidariedade e da reciprocidade sejam posicionadas no topo da agenda das ciências sociais sob capitalismo. Deste ponto de vista, é necessário reconhecer que o MAUSS escolheu corretamente seus objetos. Por outro lado, seria lícito duvidar de que o wishfull thinking consistente em postular a bela natureza dadivosa do homem[10] – e regozijar-se dela, é claro – oferece o melhor meio para pensar aquilo que é e aquilo que deveria ser. Esta dúvida se faz ainda mais legítima a partir do momento em que quase ninguém parece disposto a condenar a ruinosa antinomia entre “homo donator” e “homo oeconomicus[11]. É neste exato momento que o pensamento spinozista, interessado em dissolver disjuntivas conceituais assentadas em medíocres propriedades analíticas, mostra-se extremamente útil. Entretanto, tal pensamento prescinde amplamente dos favores maussianos… Assim, o dom visto por Spinoza, da mesma forma que qualquer ação humana, permanece infalivelmente circunscrito à órbita do interesse soberano. Dito isso, e levando em conta a necessidade de conservar a atenção do leitor anti-utilitarista, devo fazer pelo menos três observações:

  1. Propor que o interesse é soberano demanda, em primeiro lugar, que identifiquemos nele um princípio fundamental e, sobretudo, que enunciemos em que aspectos tal soberania do interesse excede o utilitarismo. Por ser precisamente um interesse, ele rompe com o próprio paradigma do cálculo, ao passo que inclui o interesse utilitarista como um dos seus casos.

  2. Se quisermos sustentar que o interesse é soberano, também devemos mostrar que ele se manifesta de forma perfeitamente clara cada vez que acreditamos tê-lo desafiado. Em outras palavras: trata-se de esclarecer o paradoxo aparente segundo o qual uma atividade fundamentalmente interessada em si mesma pode passar por ser um dom oferecido ao outro.

  3. Por fim, é necessário mostrar como o dom interessado coabita com a crença em seu próprio desinteresse, isto é, como o sujeito dadivoso dissimula para si mesmo suas verdadeiras forças motrizes. Tal demonstração não deve limitar-se ao pobre diagnóstico da hipocrisia. Ela também deve ser capaz de reconhecer os mecanismos mais sutis que regem o auto-engano.


2. Conatus, ou o interesse soberano

Propor que o interesse é soberano implica ter em mente algo mais que o interesse utilitarista dos economistas, aquele sobre o qual repousam exclusivamente as atenções do MAUSS e contra o qual seus partidários lutam com tanto prazer. O paradoxo reside em que, no jogo da habitual cumplicidade dos opostos, tanto os utilitaristas como os anti-utilitaristas estão pelo menos de acordo em considerar a existência de apenas uma forma de interesse – o interesse utilitarista, precisamente! De acordo com este princípio, não existiria nenhuma outra ação interessada concebível mais além do registro da busca consciente e metódica de uma vantagem individual empreendida, sempre que possível, mediante uma racionalidade calculista. Não surpreende que do paradigma do homem calculista e egoísta só possamos extrair ações calculistas e egoístas. Dali dificilmente saia algo parecido ao dom, à solidariedade e ao altruísmo. Eis que o terreno está bem demarcado por um enfrentamento com contornos simples e nítidos. Não impressiona, então, que sobre a base de uma dicotomia tão aguda como a que opõe interesse e desinteresse, o anti-utilitarismo tenha convertido a economia geral das práticas, proposta por Bourdieu, numa variante do economicismo. Apenas quando a questão está mal colocada desde o início ela pode descambar em semelhante contra-sentido em cujo marco a própria crítica anti-utilitarista cai na armadilha da redução economicista. Se a objeção colocada à uma economia geral das práticas adquire contornos tão equívocos, isto se deve a que ela parte de uma ideia muito limitada sobre a natureza do interesse. A sociologia do interesse tornar-se-á novamente interessante se pudermos formular uma ideia adequada do próprio interesse. Ler a economia geral das práticas exige que lhe concedamos pelo menos uma ideia de interesse que seja adequada a sua generalidade – ou seja, que transcenda amplamente a estreita jurisdição do interesse utilitarista. Tal conceito ampliado de interesse, um conceito de interesse generalizado, pode encontrar-se em Spinoza: trata-se do conatus.

Se, como diz a proposição 6 da parte III da Ética (E, III, 6), “cada coisa, na medida em que é, esforça-se por perseverar em seu ser” (“in suo esse perseverare conatur”), então o conatus representa a forma mais fundamental do interesse: o interesse na perseverança, o interesse em uma manutenção indefinida da existência. Ele é, ao fim e ao cabo, tendência de efetuação máxima de suas potências, força de desejo e pólo de atividade. Assim, na ontologia spinozista, a potência infinita da natureza exprime-se em e través de cada coisa da natureza naturada – i.e. através de cada modo, para retomar o léxico da Ética –; e cada modo, de alguma forma depositário de uma parte desta potência, esforça-se por realizá-la ao máximo – como diz Deleuze[12], os modos sempre esforçam-se para chegar até o limite do que eles podem. Assim, de forma análoga à natureza que lhes infunde potência – mas evidentemente já no registro da heteronomia e da finitude que lhes é própria – os modos são pólos de atividade. Quando esses modos são pessoas, ou seja, corpos complexos ao ponto de possuírem consciência, as forças de agir encontram seu correlato nos desejos. Em outros termos, o impulso desejante é a forma sob a qual se manifesta o impulso de potência do conatus. Não existe, portanto, nada que o modo humano empreenda e que não tenha o conatus como força motriz. O modo humano, assim como os demais modos, são pura e simplesmente expressão do conatus como força desejante, trabalhando em primeiro lugar e exclusivamente a serviço de um “si mesmo” do qual o conatus é a realização concreta. Assim, o conatus é próprio de toda e qualquer existência na medida em que ela está interessada, fundamentalmente, em si mesma. O conatus é manifestação do egocentrismo das existências. Uma coisa vive inteiramente para si mesma e o conatus é a afirmação disso.

Interesse fundamental, interesse genérico da existência, o conatus é, por conseguinte, um interesse matricial. Todos os interesses específicos derivam dele por atualização. Assim, um pouco à imagem de uma libido generalizada e dessexualizada, o conatus essencial é uma energia amorfa em busca de sua conformação: uma força desejante ainda intransitiva. Essa energia devém impulso com vistas a uma ação específica, e tal força encontra seus pontos de aplicação mediante um processo de atualização que é constitutivo da relação de objeto, e que determina cada modo, considerado em sua especificidade, a esforçar-se por perseverar no ser in concreto, isto é, enquanto que isto ou aquilo e através de uma busca ativa disto ou daquilo. Todas essas especificações do conatus essencial são traduções, sob a forma de interesses práticos, do interesse fundamental da perseverança. É possível inserir este fundamento spinozista na base de uma economia geral das práticas e afirmar que toda a ação consiste, na ontologia da atividade, num movimento de existência, numa manifestação conativa. Sendo assim, a ação não responde a uma razão de agir, mas sim a um móbil de agir que, por derivação do conatus, é um interesse de agir. Esse paradigma do conatus-interesse generalizado não retorna, de nenhuma forma, à versão utilitarista do interesse, com suas ações plenamente conscientes, deliberadas e, em suma, racionais no tocante a sua finalidade. O paradigma em questão propõe que os móbeis da ação são interesses porque constituem manifestação absoluta da preocupação fundamental que uma existência tem por si mesma. Spinoza afirma que essa preocupação raramente é lúcida – uma parte inteira da Ética está consagrada aos erros da servidão passional –, que ela é, na maioria dos casos, cega – “os homens são conscientes dos seus atos, mas ignoram as causas que os determinam”, lê-se no escólio da proposição 35, na parte II da Ética –, que ela é improdutiva e até aberrante – a filosofia de Spinoza é perfeitamente alheia à ideia de pecado, mas sabe muito bem que os homens podem “faltar a si mesmos”, ou seja, aos requisitos verdadeiros de sua perseverança. O interesse-conatus não é compatível nem com a racionalidade instrumental, nem mesmo com uma forma superior de razão – toda a obra de Spinoza é guiada pelo (difícil) objetivo de conquistar uma existência “ex ducto rationis[13] – e nada garante que ele encontre espontaneamente seus caminhos. O interesse-conatus não pode sequer reivindicar uma ascendência simplesmente cognitiva sobre seus impulsos, e é frequentemente sob o efeito de determinações que lhe escapam quase totalmente que ele é conduzido a orientar-se em direção a tal ou qual objeto. O conatus é opaco a si mesmo na maioria das vezes. Literalmente, ele não sabe o que faz. Creio ter argumentado o suficiente para deixar claro que este conceito ampliado de interesse é irredutível à falsa generalidade utilitarista.

Avaliar sem calcular, apreciar sem mensurar.

Resta ainda um obstáculo a superar se quisermos descartar definitivamente a insidiosa redução utilitarista. O obstáculo em questão tem a ver com o fato de que, sendo um interesse, o conatus nutre uma relação cognitiva com o mundo que é de caráter necessariamente avaliador. Dotar o conatus de uma relação avaliadora com o mundo, inclusive nas ações e nas relações que denominamos “desinteressadas”, implica desenvolver de maneira consequente a lógica do interesse generalizado e – por isso mesmo – correr o grande risco da assimilação ao utilitarismo – “se as pessoas avaliam, então elas estão calculando!”, exclamará com certeza o anti-utilitarista.

Ora, esta referência é completamente desnecessária. Mas para nos convencermos disso é importante definir a natureza particular das avaliações conativas, ou seja, delinear as operações mentais que elas põem em prática. As avaliações não utilitaristas do conatus-interesse generalizado assentam tipicamente nesse gênero de avaliações que Bourdieu agrupa sob a categoria do senso prático: elas realizam na ordem cognitiva o que o habitus efetua na ordem da prática atuante. Apenas o seu princípio operatório permite responder a questão do que ocorre numa relação de reciprocidade – amor e amizade, por exemplo – na qual deixamos de contar, deixamos de medir e nossa permanência é produto de julgamentos mais implícitos, julgamentos de equivalência, de equilíbrio e de desequilíbrio, que determinam que as partes sintam-se satisfeitas ou insatisfeitas com a relação e, em consequência, escolham atualizá-la ou interrompê-la. Em outras palavras, quais são as operações mentais associadas a qualquer trabalho implícito, a qualquer julgamento avaliador que – evidentemente – não pode ser mencionado e às vezes sequer pensado como tal pelos agentes envolvidos – aqueles que são corretamente chamados de “partes interessadas”?

Proponho que denominemos timésis[14] esta espécie de complemento do habitus que, como seu nome indica, tem a ver com o problema do valor, da estimação, e que se encarrega das operações de avaliação que são necessariamente correlativas à implicação interessada de um conatus atuante. Decorrente da mesma lógica que Bourdieu havia proposto a respeito do habitus, a timésis avalia sem possuir o princípio de suas avaliações, isto é, permanecendo sempre aquém dos critérios e das operações de avaliação. Assim como o habitus é “um princípio gerador e organizador de práticas e representações que podem ser objetivamente adotadas a seu propósito sem supor a busca consciente de fins e o controle expresso das operações necessárias para atendê-los”[15], a timésis produz avaliações sem proceder à medição, e julga equivalências sem elaborar balanços. Seu senso avaliativo – senso timético – é um componente do senso prático que permite que os agentes movam-se no espaço da reciprocidade, mas isso não significa que o conatus tenha sido abolido em meio à renúncia de qualquer forma de interesse. Por isso a questão timética é de importância decisiva para salvar o interesse da redução à “axiomática do interesse, ela própria reduzida a uma contabilidade analítica”[16], sobre a qual os trabalhos anti-utilitaristas retornam sistematicamente. A timésis é um operador cognitivo adequado para uma economia da satisfação que não seja, portanto, uma aritmética dos prazeres e dissabores. Ela consiste nessa forma de avaliação que compatibiliza interesse (no sentido de conatus) e desinteresse no marco de relações de reciprocidade que seriam imediatamente destruídas como tais se descambassem para as práticas de mensuração e de cálculo explícito. Podemos formular de outra maneira as propriedades da timésis dizendo que as operações de avaliação timética permanecem fluídas por natureza e não são administráveis porque os objetos sobre os quais elas assentam não são metrificáveis – isto é, excluem-se de toda a métrica. Os objetos do amor, da amizade ou da reciprocidade estão localizados – de maneira não objetiva, mas sim deliberada – por fora de qualquer métrica. Sendo assim, as avaliações que se projetam sobre eles – e elas existem, porque estes objetos são tangidos pelo conatus – não são controláveis. Quando há controle possível, significa que saímos do registro da avaliação timética para entrar no registro da avaliação econômica – aquele em que o ato de doar e suas consequências são suscetíveis de balanços bem definidos.

O interesse utilitarista ou o estado metódico do conatus

É necessário ainda um último movimento para terminar de separar o interesse conativo do interesse utilitarista: trata-se, uma vez que eles já foram diferenciados, de situar o segundo em relação ao primeiro – o que seria outra forma de demarcar a distinção entre ambos. Para simplificar, digamos que, entre uma forma de interesse e a outra, existe uma distância análoga a que separa o geral do particular. Sendo assim, o conatus essencial, essa força genérica e intransitiva do existir, é a matriz da qual derivam os processos de conformação, todos os esforços específicos, ou seja, todos os desejos de objeto assim como o interesse de perseguir tais desejos. Mais conveniente que falar de desejos de objeto seria evocar os regimes de desejo, nos quais poderíamos incluir tanto os desejos de coisas materiais como os de coisas simbólicas – como a glória e a reputação – e, além disso, os desejos vocacionais, desejos de perseverar enquanto tal ou qual tipo particular de ser social – enquanto capitão da indústria ou homem público, por exemplo. Os regimes de desejo incluiriam todas as formas de impulso dirigido que são próprias dos conatus atualizados. Nesta perspectiva, o interesse utilitarista não é outra coisa senão uma conformação histórica particular e subsequente ao interesse-conatus genérico. Sua especificidade consiste em que ele está menos caracterizado pelo tipo de objeto que persegue do que por seu modus operandi. Com efeito, é mediante a aquisição de uma disposição muito particular que o interesse fundamental do conatus toma a forma do interesse utilitarista, manifestando-se à consciência como projeto tangível pela reflexividade cujos meandros serão metodicamente considerados até reformular o campo de ação sobre o espaço de um problema. A emergência desta disposição calculista é o produto de um longo trabalho histórico que podemos intuir, em linhas gerais, na tese do processo de civilização das morais. A retração dos impulsos violentos, a evacuação do imediatismo colérico, a adoção do ponto de vista forward looking e, sobretudo, a lógica do desvio e do investimento – ou seja, a renúncia a ter tudo de uma só vez, em favor de um ganho paulatino – são, segundo Elias, os co-produtos de uma evolução marcada pelo adensamento das interações sociais e pela inscrição dos indivíduos em cadeias de interdependência que se expandem constantemente[17]. “Não quebrar nada” torna-se o imperativo da perseverança da vida social, uma espécie de pré-requisito para sair em busca dos interesses específicos. Daí que se tenha desenvolvido um habitus da composição que tende a relegar quaisquer tendências insultantes. Sendo assim, para driblar outra antinomia irritante – aquela que opõe paixões e interesses –, poderíamos dizer que o cálculo é a paixão embebida pelo aprendizado da interdependência. E o interesse calculista é o conatus em seu estado metódico.


3. O dom, ou as potências metamórficas do conatus

Uma vez entendido que o interesse-conatus não é o interesse utilitarista, ainda resta compreender o paradoxo que conduz esse por-si-mesmo fundamental a um devir tão específico. Como sempre, o paradoxo é apenas aparente, pelo menos se não subestimarmos a ductilidade dos interesses, nem suas capacidades metamórficas. Para termos uma medida dessas capacidades, e também para podermos identificar suas determinações sociais, assim como todo o trabalho histórico do qual elas são produto, é relevante retornar ao núcleo do paradoxo de um conatus força de desejo auto-centrada, um impulso que pode ser tomado e que também pode ser aplicado a outrem.

Do dom/contra-dom aos campos: uma economia geral da violência conativa

O conatus é imediatamente uma força desejante: este foi nosso argumento geral até agora, em consonância com a Ética de Spinoza – “o impulso pelo qual cada coisa esforça-se para perseverar em seu ser não reside em nada exterior à essência atual dessa coisa” (E, III, 7). Os afetos também foram definidos em chave spinozista: “o desejo é a essência do homem na medida em que tal essência concebe-se como determinada por alguma afecção qualquer de si mesma para cumprir uma ação” (Idem). Se existe um paradoxo do conatus dadivoso, isto se dá porque o esforço ontológico com vistas à perseverança – um esforço que se preocupa fundamentalmente consigo mesmo e procura vantagens para si – exprime-se, primeiramente, numa relação prática com o mundo que é espontaneamente pronadora[18], capturadora. Em seu impulso mais bruto, o conatus toma as coisas para si: seu gesto primeiro é o de “colocar a mão sobre”. Ele consiste em capturar e devorar, apropriar-se do mundo e absorvê-lo. O problema original do social nasce então do choque recíproco entre um conatus pronador antagonista e a generalização da pronação das coisas disputadas. A pulsão pronadora elementar, que é a ação mais espontânea do conatus, é ao mesmo tempo um dado básico – um dado “de essência”, diz Spinoza (E, III, 7) – e o “problema” a ser regulado. Em termos funcionalistas, trata-se do perigo social por excelência, do fermento para a decomposição violenta do grupo, na medida em que a missão conativa de perseguir vantagens para perseverar em si mesma está sempre à beira de degenerar na busca de vantagens pessoais em detrimento dos outros.

Sem ceder a nenhum evolucionismo e a nenhum funcionalismo, é lícito olhar as trajetórias civilizacionais sob a perspectiva de uma economia geral da violência conativa, e mais particularmente como a história das invenções institucionais de regulação da violência pronadora. Sob tal perspectiva, o dom/contra-dom talvez seja um dos primeiríssimos “achados civilizacionais” para acomodar as pulsões pronadoras do conatus. Basta observar as múltiplas operações que o dom/contra-dom realiza simultaneamente: 1) ele nos proíbe a captura selvagem, ato anti-social por excelência; 2) ele substitui a captura pela recepção (pelo ato de receber) e já não existe algo que possa ser adquirido de outra pessoa senão sob a forma da recepção; 3) ele promove o ato de doar como o gesto de paz por excelência, em conformidade com os requisitos da perseverança grupal; 4) finalmente, ele recanaliza as energias conativas, afastando-as de objetivos anti-sociais relacionados com a conquista das coisas, e orientando-as na direção de propósitos socialmente legítimos, associados à conquista de prestígio. Em poucas palavras, o dom/contra-dom regula o problema da pronação anárquica através de uma operação formidável de sublimação social, pois as pulsões elementares do conatus, espontaneamente orientadas à captura selvagem das coisas, não estão simplesmente obstruídas – algo que implicaria opor-lhes uma energia equivalente, isto é, fenomenal –, mas sim redirigidas para objetos mais elevados – leia-se: socialmente mais elevados – que são declarados como tais porque são menos perigosos e, portanto, mais suscetíveis de manter a coesão do grupo. O objetivo principal do conatus deixará de ser, então, algo material para transmutar-se em objetos simbólicos, prestígio, glória e, em última analise, aprovação grupal. Se o dom/contra-dom consiste numa solução praticável – e inclusive econômica – de regulação da violência, isto se dá porque em vez de barrar o devir conativo, ele escolhe proporcionar-lhe alguma superfície de realização. A pulsão de conseguir vantagem para si mesmo, que é própria do conatus, não é renunciada no dom/contra-dom. Ao contrário, ela encontra ali sua medida, mas de uma forma compatível com a perseverança do grupo.

É este esquema fundamental de sublimação-simbolização das pulsões pronadoras do conatus que muitas outras instituições irão reproduzir, assim como o dom/contra-dom já o fizera. De fato, a anterioridade deste último o converte numa espécie de paradigma em matéria de reorientação do conatus. Ao longo de sua trajetória civilizacional, as sociedades procuraram regular a violência por meio da simbolização e, principalmente, pela via da instauração de esferas especializadas onde os indivíduos estão autorizados a perseguir certo tipo de vantagem pessoal, expressando suas pulsões conativas sempre e quando estas possam ser moldadas de alguma maneira. Estas esferas são algo assim como as vias de fuga, os canais de escoamento das energias conquistadoras; são os cenários de um agonismo instituído. Estamos falando de lugares apropriados para a expressão legítima dos desejos de conquistar algo para si mesmo. Todos esses lugares oferecem ao desejo de captura os mesmos bens simbólicos genéricos de prestígio, mas sob formas diferenciadas, definidas localmente: glórias de artista, de esportista, de prelado, de capitão da indústria. A maior parte desses espaços sociais que Bourdieu articulou sob a categoria “campo” respondem ao imperativo de organizar adequadamente os investimentos conativos pronadores, sem obviamente ter sido criados para executar expressamente essa finalidade. Afinal, que engenheiro social esclarecido poderia ter projetado algo assim? Tais campos constituem, em si mesmos, domínios de atualização do conatus que sinalizam critérios para definir o que é desejável e quais são as determinações vocacionais dos indivíduos. Assim, os campos simultaneamente atualizam e socializam o conatus, moldando suas pulsões elementares e dirigindo suas energias na direção de objetos lícitos, em nome de cuja conquista é legítimo esforçar-se, porque se trata de objetos cuja disputa está regrada e não ameaça a coesão do grupo.

Não agonístico e, portanto, interessado: o dom “moral”

Nem todos os desejos deixam-se afetar por essa organização instituída da violência conativa e pelas estratégias de substituição. Existem regulações do conatus que não podem tomar a forma de um processo agonístico aberto, de uma competição declarada. A moral do dom e do desinteresse é uma dessas regulações que parecem suspender o conatus, sob a forma de uma renúncia a tomar algo para si. Contudo, devem existir contrapartidas, porque qualquer ação é determinada por um interesse de agir. A dificuldade específica da moral altruísta reside no fato de que ela recusa por definição o recebimento de vantagens protéicas (substitutivas) públicas – troféus –, ao passo que não pode deixar de oferecer benefícios caso pretenda colocar os indivíduos em movimento – agora como indivíduos caritativos.

Felizmente, a moral do dom pode beneficiar-se de mecanismos muito poderosos da vida passional; mecanismos interpessoais e sociais cujo fundamento comum é dado pela proposição da emulação dos afetos (E, III, 27). De modo geral, o bloco de proposições que vai do número 27 ao número 30 da parte III da Ética é particularmente útil para resgatar a sociologia do interesse de uma relação tautológica: dizer que um determinado agente atua de tal forma porque ele possui algum interesse em agir assim deixa de ser uma repetição improdutiva a partir do momento em que se torna possível evidenciar o complexo de interesses específicos dos quais a ação efetivamente procede. O 3° corolário e o escólio da proposição 27 oferecem indicações extremamente precisas a esse respeito: “Pelo fato de que nós imaginemos uma coisa semelhante a nós sendo afetada por um afeto dado, somos afetados por um afeto semelhante”. É nesta parte da ética que talvez esteja mais intimamente presente a possibilidade de uma ciência social spinozista. O mecanismo da imitação dos afetos – que é, também, um mecanismo de imitação dos desejos, porque, assim como a alegria e a tristeza, o desejo é um dos três efeitos “primários” para Spinoza[19] –, do qual a Ética oferece apenas a fórmula elementar, é sem dúvidas aquele cuja potência gerativa no mundo social é a mais intensa. Seria equívoco ver nesse mecanismo um princípio relacionado às influências interpessoais “horizontais” e um suporte para uma espécie de interacionismo. A pessoa cujo afeto eu emulo pode ter sido afetada, ela própria, por todo tipo de mecanismos propriamente sociais, que incluem efeitos de poder simbólico, autoridades pré-constituídas, poderes inerentes aos “grandes locutores”, que atuam em sua constituição afetiva – seu ingenium –, esta última também determinada sócio-biograficamente. Deste modo, as influências horizontais e as influências verticais se misturam na propagação social dos afetos e, às vezes, as segundas contribuem para reforçar as primeiras. No que diz respeito à interação local, interpessoal, que constitui o núcleo do mecanismo elementar, o argumento da Ética consiste em afirmar que o ato de imaginar o afeto de outrem conduz, de certa forma, a vivê-lo em si mesmo e, ao fim e ao cabo, a emulá-lo. Não basta dizer que o efeito de emulação pode mostrar-se determinante para o desencadeamento do dom moral[20], ou caritativo, pois “essa imitação dos afetos, quando reporta-se à tristeza, chama-se Piedade” (E, III, 27, escólio). O 3° corolário acrescenta o seguinte: “diante de uma coisa que nos infunde piedade, esforçar-nos-emos o máximo possível para livrá-la da infelicidade” e – escólio do corolário – “essa vontade ou apetite de fazer o bem, que emerge daquilo que nos faz ter piedade da coisa à qual queremos fazer bem, chama-se Bondade”. O assunto é bastante claro: eu tenho um interesse muito pessoal de ceder algo ao outro para amenizar sua miséria porque, por emulação, o espetáculo de sua tristeza também me afeta com tristeza. A tristeza de outrem é causadora de meu afeto triste. Mas é meu próprio afeto triste que se converte na causa de minha ação caritativa – eu fui comovido e, portanto, atuei. Eu não amenizo a miséria alheia senão a título instrumental, pois em última análise, é da minha própria tristeza – mas uma tristeza minha induzida por ele – que eu pretendo desfazer-me. Vemos, assim, até que ponto a análise spinozista subverte a antinomia do egoísmo e do altruísmo. Certamente eu ofereço um dom ao outro, mas o faço fundamentalmente por mim. Tal é a lei absolutamente infalível do conatus que não opera em prol de nada mais além de si mesmo e não conhece outra “causa” que não seja a sua. O conatus é um impulso expansivo ou de resistência às diminuições de potência que as coisas exteriores infligem a ele: o conatus esforça-se por buscar os afetos alegres e rechaçar os afetos tristes. A atividade mais fundamental do conatus assenta-se inteiramente nesse duplo princípio de busca e repulsão: “esforçamo-nos para promover o advento de tudo aquilo que imaginamos conduzir à alegria, mas esforçamo-nos para afastar tudo aquilo que opõe-se a ela, ou seja, tudo aquilo que imaginamos que pode conduzir à tristeza” (E, III, 28). O dom moral não escapa dessa regra: ele resulta de um encontro acidental e, sob os efeitos do afeto triste imposto por tal encontro, pretende restaurar a potência à qual meu conatus propende; potência cuja restauração passa hic et nunc[21] por esse outro ao qual eu dôo.

Em decorrência de seu próprio minimalismo, a situação de interação bilateral pura apresentada na Ética oferece um argumento a fortiori. É evidente que a introdução de mecanismos propriamente sociais conduz à intensificação dos interesses dadivosos. De fato, é nessa direção que o argumento de Spinoza encaminha-se: “esforçar-nos-emos para realizar tudo o que nós imaginamos que os demais homens consideram com alegria” (E, III, 29). Este é um prolongamento da lógica iniciada na proposição 27 (E, III, 27), posto que esforçar-se para realizar o que faz os outros felizes é procurar para si mesmo, mediante emulação, a alegria decorrente disso. Eis que se abre, pouco a pouco, toda uma sociologia do reconhecimento, cujos correlatos psíquicos são indicados do seguinte modo: “se alguém faz algo que se supõe que afeta todos os demais com alegria, então esse alguém será afetado com alegria, acompanhada da ideia de ser, ele mesmo, seu agente causador; em outras palavras, esse alguém se contemplará com alegria”. Perceber-se como causa da alegria alheia e poder desfrutar de contemplar-se a si mesmo com alegria: não temos aqui um interesse psíquico suficientemente poderoso para desencadear a ação dadivosa? “Há certo charme em ter feito algum bem”, observa Sêneca em Dos benefícios, “envolto em sua beleza radiante, o espírito persegue o bem; e encantado, maravilhado com sua luz, ele se sente transportado”[22]. Mas para acessarmos a última palavra sobre o que seria esse “transporte”, é melhor recorrer a Spinoza do que a Sêneca – Dos benefícios é uma longa apologia do dom desinteressado e da pura generosidade…

Um humanista do dom que depois do détour por Spinoza ainda quisesse salvar a ideia do desinteresse poderia, então, estar inclinado a perguntar-se se esse interesse resistente não seria, ao fim e ao cabo, a marca de um indivíduo que permanece, lamentavelmente, no terreno da heteronomia passional, configurando, portanto, uma imperfeição superável. Com certeza este não é o caso. Os interesses derivam diretamente do conatus e o conatus é a essência atual do homem (E, III, 7). O homem guiado pela razão não é o ignorante liberto de seu conatus – esta ideia é em si mesma simplesmente absurda. Na verdade, o homo liber está instalado num regime completamente diferente de conatus. Ele também é dadivoso, mas de acordo com outras determinações. O dom sob o regime da servidão passional procede do contágio incontrolável dos afetos tristes. É precisamente isso que o homem livre evita: “A piedade, em um homem que vive sob a conduta da razão, é má em si mesma” (E, IV, 50). Não poderia ser diferente, já que a piedade é um afeto triste e os afetos tristes são maus em si mesmos… Tradução livre: a efusão de comiserações só é boa para uma moral sentimental. “Daí que – escreve Spinoza – o homem que vive sob o comando da razão esforce-se o máximo possível para não ser atingido pela piedade” (E, IV, 50). E como a subversão spinozista da moral ordinária é implacável, a Ética agora ataca outra obrigação sagrada da trilogia maussiana: “o homem livre que vive entre os ignorantes empenha-se o máximo possível em recusar suas boas ações”. Já posso imaginar a dureza desse golpe para os leitores maussianos! Não obstante, sua lógica é perfeita. Spinoza a demonstra assim: “Cada um julga o que é bom de acordo com seu temperamento; então o ignorante que fez o bem para alguém avaliará esse bem de acordo com seu próprio temperamento, e se o bem que ele realizou não for estimado por aquele que dele beneficiou-se, então o ignorante ficará triste” (E, IV, 70). Em outros termos, receber as boas ações de um ignorante é expor-se a demandas de reconhecimento anárquicas e imprevisíveis, produzidas pela desordem dos afetos. Cruel esclarecimento sobre a verdade dos dons recíprocos: “o reconhecimento que os homens guiados pelo desejo cego têm uns pelos outros é, na maioria das vezes, um tráfico ou, em outras palavras, uma dissimulação e não um reconhecimento” (E, IV, 70 escólio).

Mas, no final das contas, o dom é possível sob a tutela da razão? Sim, é possível, mas à distância dos afetos tristes e do tráfico de reconhecimentos. Um dom dessa natureza é viável porque “nada é tão útil ao homem quanto o próprio homem. Disso decorre que os homens que buscam sua utilidade própria sob a conduta da razão não estão perseguindo nada para si mesmos que eles não desejam também para os outros” (E, IV, 18, escólio). Mais adiante, Spinoza acrescenta: “o bem que, em busca da virtude, todo o homem quer para si também será desejado para todos os outros homens” (E, IV, 37). Não devemos incorrer em equívocos sobre o sentido das palavras empregadas por Spinoza. Para ele, virtude não tem nada a ver com observância moral. Em Spinoza a virtude não é outra coisa além da busca de potência ativa em conformidade com a essência conativa do homem: “Em termos absolutos, agir por virtude é agir, viver, conservar seu ser (três formas de dizer a mesma coisa) sob a conduta da razão e em conformidade com o fundamento que consiste em buscar aquilo que é efetivamente útil para si mesmo” (E, IV, 24). Eis que aqui se revela a natureza profunda do spinozismo – e não sem perder a oportunidade de travar um debate com o anti-utilitarismo. O spinozismo é, de fato, um utilitarismo, mas um utilitarismo da potência. Aqui, virtude coincide com utilidade, mas trata-se da utilidade do conatus, isto é, de tudo aquilo que amplia a potência de agir. Assim, retomando a esclarecedora fórmula de Deleuze, que sublinha a diferença entre a ética spinoziana e a moral, deveríamos entender a primeira não como a observância de um dever, mas sim enquanto uma teoria da potência[23]. “Sob a conduta da razão” – único regime adequando à busca da virtude – os homens descobrem agora que seu “próprio bem” coincide com o dos outros, de modo que têm a oportunidade de sair da pronação conflituosa, da captura em detrimento do outro que os empurrava ao regime da servidão passional. Lidas por um economista, as proposições de Spinoza – especialmente (E, IV, 18, escólio) e (E, IV, 37) – enunciam a tese forte segundo a qual os homens conduzidos pela razão perseguem um bem não-rival às externalidades positivas. Isto significa que esse bem não só é eminentemente compartilhável, mas também que sua partilha não me priva de nada, muito pelo contrário, torna-me melhor ainda. Em oposição ao dom de Servidão[24], o dom de Fortaleza[25] é um dom de universalidade, que não possui o caráter seletivo do tráfico de reconhecimento: “o homem livre empenha-se para vincular-se em amizade a todos os outros homens, e não para retribuir aos outros homens aquelas boas ações que eles julgam adequadas de acordo com seus próprios afetos[26] (E, IV, 70, dem.). O conatus evaporou-se neste processo? Muito pelo contrário: ele foi conduzido a um regime superior de potência. Podemos observar o deslocamento conceitual operado por Spinoza. A antinomia entre interesse e desinteresse foi totalmente abandonada. Não haveria pior contrassenso que fazê-la corresponder ao par ignorante/homem livre. A verdadeira cisão ocorre entre dois regimes de afetos: passivo ou ativo. No regime de Servidão, o conatus pode ser determinado a realizar a dádiva, mas sob o efeito dos afetos passivos, ou seja, de causas exteriores, excluídas de seu entendimento. Em regime de Fortaleza, o homem livre dá algo porque o conatus esclarecido compreendeu que o bem de outros faz crescer o bem próprio. Contudo, tanto em Servidão como em Fortaleza é sempre o conatus que afirma seu direito. E é sempre o interesse, sob uma forma ou outra, que tem a palavra.


4. O autoengano do interesse no desinteresse

Que o interesse seja soberano inclusive nos gestos aparentemente mais desinteressados de doação não pressupõe nada quanto ao grau de consciência que possuem os doadores a respeito dessa situação. De fato, nesta matéria o leque de possibilidades é amplíssimo e vai desde a hipocrisia nua e crua até o mais perfeito encantamento. É necessário indagar mediante quais mecanismos o espírito consegue acomodar-se à presença simultânea de ideias contraditórias ligadas à crença em seu desinteresse e à consciência – em diferentes graus – da vigência do interesse. A solução para essa contradição aparente repousa em mecanismos inseparáveis de ordem psíquica e social. Sendo assim, é necessário analisar simultaneamente as estruturas mentais e as estruturas sociais da duplicidade – por duplicidade não devemos entender uma intenção enganadora, mas sim uma presença do duplo, do duplicado.

O ponto de partida desse itinerário reside, sem dúvidas, no abandono das representações unitárias da consciência, particularmente quando se trata de apresentá-la como uma instância de controle, de vontade e de decisão. Se quisermos compreender como vão sendo acomodadas as contradições da ação social moral em geral, e da ação dadivosa em particular – que é impossível, como qualquer ação, sem um benefício específico – então será necessário abandonar o paradigma da consciência soberana, abandonar todos os seus correlatos de unidade e deixar de ver a ação como uma decisão unívoca. Deste modo, poderemos considerar a determinação da ação no espaço do múltiplo, que dá acesso aos estados mentais no registro da ambivalência ou da mentira para si mesmo. Deste ponto de vista, a filosofia do espírito de Spinoza nos convida a observar a consciência já não como uma instância de decisão e de controle, mas sim como uma instância de registro. Tal perspectiva torna muito mais fácil identificar numa ação e numa ideia formuladas pelo agente a co-presença de determinações múltiplas, heterogêneas e contraditórias. Assim, a consciência-comando é substituída pela psique-campo-de-batalha, lugar de enfrentamento de poderes afetivos a partir dos quais podemos pensar os compromissos de acomodação dos conflitos psíquicos – como aqueles relacionados ao auto-engano, que encontramos por trás do interesse no desinteresse.

A perspectiva spinozista remete a um agonismo interior dos afetos. No marco da psique-campo-de-batalha enfrentam-se, então, afetos ligados respectivamente ao interesse e ao desinteresse. Ramond insistiu particularmente sobre esse caráter quantitativo da filosofia de Spinoza[27]: a cena da psique e os conflitos de afetos que nela jogam-se, assim como qualquer coisa no mundo, são regidos pelo princípio da medida das potências. “Um afeto não pode ser reprimido nem suprimido se não existir um afeto contrário e mais forte do que o afeto a reprimir” (E, IV, 7). Esta proposição oferece, em linhas gerais, uma das principais leis de governo da vida psíquica; leis que depois serão desenvolvidas pelas proposições de 8 a 18, onde encontramos expostas as diversas configurações de relação de força suscetíveis de ocorrer entre os afetos – as configurações em questão dependem do caráter de suas causas, que podem ser imaginadas como presentes ou ausentes, certas ou contingentes, mais ou menos distantes no futuro ou no passado, etc. Neste ponto, Spinoza chama a atenção sobre a denominada impotência da razão, isto é, a incapacidade do conhecimento verdadeiro enquanto tal de controlar, por si mesmo, algum tipo de afeto: “O conhecimento verdadeiro do bem e do mal não poderá reprimir nenhum afeto pelo fato de ser verdadeiro, mas apenas na medida em que tal conhecimento for considerado como um afeto”.

Para colocar as coisas em termos mais palatáveis: esse agonismo quantitativo dos afetos é o operador concreto da timésis. A demonstração que encontramos na proposição 70 da parte IV da Ética nos oferece uma intuição a respeito, quando evoca a forma como os homens se dão “os benefícios que eles julgam iguais de acordo com seus afetos”[28]. Os julgamentos de equivalência elaborados nas relações de reciprocidade em que são avaliadas as prestações cruzadas constituem, de fato, o produto não de medidas explícitas, mas sim de uma apreciação afetiva das circunstâncias. A equivalência satisfatória é concluída enquanto resultante afetiva que sintetiza os custos do ato de doar – porque desfazer-se de qualquer coisa sempre implica um custo para o conatus – e os benefícios do retorno: ela coloca na balança os afetos felizes e os afetos tristes, cuidando para que o saldo final não fique no vermelho. A psique é o lugar dessa medida de potências afetivas, uma vez que o julgamento timético escapa a qualquer controle ativo da consciência e a qualquer forma de cálculo explícito. A timésis é, então, uma solução simplesmente nominal destinada a desenredar as aporias implicadas em jogos de palavras do tipo “avaliação sem medida” ou “apreciação sem cálculo”. Estes oximoros serão apenas aparentes se tivermos a possibilidade de indicar os processos concretos que os fazem operar. Tais processos consistem numa avaliação efetiva, mas exterior a um espírito humano deliberadamente avaliador. Poderíamos dizer que a natureza é o verdadeiro “sujeito” dessas avaliações, posto que estas últimas emergem em qualquer confrontação de potências e todo o encontro antagonista de coisas resolve-se mediante o triunfo do vetor mais forte, evidenciando uma avaliação de facto. Assim, por exemplo, nas lutas intrapsíquicas de afetos, o “sujeito” humano – o sujeito subditus e inclusive substratum, no sentido de “sujeito” da experiência – apenas registra passivamente as resultantes – isto é, as avaliações.

O dom não é uma exceção a essa determinação comum: o enfrentamento no espírito entre a crença encantada no desinteresse e a crença lúcida no interesse – com suas respectivas potências afetivas – está regido pela lei do mais forte. Abordando o auto-engano, Martine de Gaudemar encontra por outras vias uma intuição profundamente spinozista quando sugere que “a crença conserva-se na medida do prazer que lhe subjaz[29]. Deste modo, podemos compreender, por exemplo, a sobrevivência da crença e do comportamento supersticioso lado a lado com sua crítica racional e a despeito da convicção real de que esta última é bem fundamentada. É que a crença supersticiosa produz um prazer específico – um prazer ansiolítico – que supera o prazer do conhecimento lúcido, impedindo que este consiga desarmar o comportamento aberrante adotado pelo próprio sujeito. Esta mesma linha de raciocínio nos permite entender o fato de que os agentes continuem a regular seus comportamentos mediante certos valores como se eles fossem absolutos, mesmo quando existe consciência de seu caráter relativo. O protótipo dessa persistência da crença contra os argumentos da razão – no interior de um mesmo indivíduo – poderia ser encontrado no Quereia de Camus. Em oposição a Calígula, que afirma a ausência de valor dos valores e, sobretudo, proclama seu desejo de viver as consequências existenciais desse fato, Cássio Quereia, consciente da força intelectual da posição de Calígula – “ele transforma sua filosofia num cadáver e, para nosso infortúnio, trata-se de uma filosofia sem objeção”[30] – escolhe nada mais nada menos que “lutar contra uma grande ideia que, se viesse a triunfar, significaria o fim do mundo”[31]. Vencido filosoficamente, mas ativo politicamente, Quereia não esconde seu conflito interior e a natureza real de seus princípios de ação, a saber: agir como se o que não vale, valesse realmente e conformar-se a este valor fictício. Tal procedimento responde aos potentes afetos do medo e aos interesses da conservação.

São mecanismos desta natureza que estão implicados no momento de “escolher” entre a interpretação mentirosa do desinteresse e sua lúcida concorrente, que versa sobre o interesse. Esta “escolha” ou “seleção” não tem evidentemente nada a ver com uma deliberação introspectiva ou decisão refletida, como poderiam afirmar os paradigmas da consciência reflexiva. Tampouco há vantagem em ler esta situação como se fosse da ordem do “desejo de crer”. De fato, esta última ideia está muito próxima de uma contradição em termos: as pessoas não crêem no registro da decisão, salvo que a crença ou a adesão à crença se autodestruísse imediatamente a partir do momento da decisão. Contudo, se não existe desejo de crer, sim existe, por outro lado, um prazer de crer, como fica evidente numa expressão aparentemente inócua, mas que deveria ser levada mais a sério: “j’aime à croire…”[32]. De fato, o sujeito dadivoso ama acreditar em seu próprio desinteresse, tanto mais quanto esse afeto de prazer recebe a cumplicidade grupal. A proposição 30 da terceira parte da Ética oferece explicitamente o princípio deste afeto de prazer associado à crença no desinteresse, que não é outra coisa senão o prazer proporcionado pela aprovação do grupo: “se alguém fez algo que supõe ter afetado os outros com alegria, esse alguém também será afetado de alegria, acompanhada da ideia de si mesmo como causa de alegria; em outras palavras ele se proporcionará alegria”. Aqui reside a eficácia das contrapartidas morais, contrapartidas específicas ao desinteresse almejado pelo grupo: retornos prazerosos ofertados a quem dá testemunho de sua deferência diante dos requisitos da perseverança coletiva no exato momento em que expressa sua renúncia à captura direta de bens e sua recusa ostensiva à violência pronadora. No cenário da psique-campo-de-batalha, a luta entre afetos de interesse e de desinteresse se dirime na dominação de certos vetores por outros, sem que nenhum deles desapareça. O confronto entre afetos contrários resolve-se num certo equilíbrio de forças que não anula nenhum dos seus termos e pode, portanto, oscilar ao longo de todo o espectro de ponderações relativas definido pela variação entre 0 e 1 – aqui também compreendidos os estados assintóticos. O encantamento completo, ou seja, a inconsciência total de seu próprio interesse, é a passagem ao limite do compromisso psíquico, quando o peso relativo do afeto lúcido tende a zero. Em todos os demais casos, mesmo dominados, os afetos minoritários continuam operando. Daí que a psicologia popular faça referência, de modo muito pertinente, aos chamados “sentimentos desencontrados” ou “sentimentos misturados”. Daí também o tormento da consciência confusa, presa ao auto-engano, incapaz de atuar em causa da verdade e impossibilitada de esquecê-la completamente: encurralada entre o frente a frente com a realidade e o gozo desenfreado da ilusão.

É verdade que, em matéria de dom, o combate entre as crenças, resolvido através do conflito entre os afetos a elas associados, atribui na maioria das vezes pouco peso final à interpretação lúcida. Os interesses inseparavelmente psíquicos e sociais – poderíamos falar de interesses psíquicos socialmente determinados – de não encarar o dom tal como ele é são muito poderosos para que a visão realista tenha alguma chance de se impor. São intensos e capciosos os afetos prazerosos extraídos da ideia do dom tal como nós gostaríamos que ele fosse – e tal como o grupo inteiro convenceu-se coletivamente de que ele é. Para falar a verdade, neste caso a razão lúcida está comprometida desde o início. No entanto, poderíamos nos perguntar se não haveria motivos para ficarmos felizes diante das impotências da razão. Assim, a análise lúcida não nos faz naufragar na melancolia do desencantamento. Seus relâmpagos de desilusão não pesam muito em comparação com os afetos felizes que nos invadem enquanto efetuamos o dom – sem saber exatamente o que estamos fazendo. Há um prazer específico não só em mentir para si mesmo, mas também em saber algo e, inconsequentemente, continuar acreditando e fazendo o contrário. Pode até ser melhor assim. Seja como for, devemos tranquilizar os maussianos, que parecem às vezes incomodados com a ideia do desencantamento e da perda – perda do desinteresse, claro – e precisam encontrar algo para se convencer de que é pouco provável que uma sócio-antropologia do interesse soberano impeça as pessoas de continuarem doando, amando e sendo amadas.


Notas

duperie de soi, Kimé, p. XX.

[1] Tratado Político, capítulo I, § 4.

[2] Sigla em francês para Movimento Anti-Utilitarista nas Ciências Sociais. [N.T.]

[3] Alain Caillé (2000), Anthropologie du don. Le tiers paradigme, Sociologie économique, Desclée de Brouwer, p. 65.

[4] Id.

[5] Este neologismo derivado do verbo “amar” (aimer) diz respeito ao interesse pelo outro, por oposição ao interesse por si mesmo. Evoca uma necessidade de colocar-se a disposição daquilo que se ama. [N.T.]

[6] Alain Caillé, por exemplo, parece escandalizado quando constata que certas vozes atribuem ao MAUSS a ideia “quase débil” de ceder ao “mito do bom selvagem, vagamente cristianizado, [para] se desembaraçar do capitalismo imundo” (Alain Caillé, 2004), Correspondance, Revue du MAUSS n°23, La Découverte, p. 254

[7] Christian Arnsperger vê no dom a possibilidade de um ideal associado às “relações verdadeiras”, ou seja, “solidárias, caritativas”, “orientada primeiramente à satisfação do outro”. (Arnsperger , 2000). “Mauss et l’éthique du don: les enjeux de l’altruisme méthodologique”, Revue du MAUSS, n°15, p. 105. Grifos meus.

[8] Alain Caillé (2000), op. cit., p. 47.

[9] Godbout pede que seu leitor não ceda “a suspeita de que nós projetaríamos sobre o dom cerimonial uma concepção ‘bem-feitora’ do dom e de que veríamos o dom (altruísta) como uma ‘economia’ alternativa à economia mercantil”, Jacques Godbout (2004), Correspondance, Revue du MAUSS, n° 23, p. 256.

[10] Jacques Godbout pretende, de fato, postula a hipótese do dom como um “instinto natural”: “Nós fizemos do próprio dom um postulado. Ou seja, propusemos uma tendência natural a doar, uma espécie de pulsão do dom” (Godbout, 2000-b). Le don, la dette et l’identité, MAUSS, La Découverte, p. 171.

[11] Esta oposição aparece no subtítulo do livro de Godbout (2000-b).

[12] Gilles Deleuze (1968), Spinoza et le problème de l’expression, Les Editions de Minuit.

[13] “guiada pela razão” [N.T.]

[14] O termo proposto por Lordon deriva do vocábulo grego time, que significa valor ou estimação. Uma experiência timética está baseada no valor que se atribui aos fatos no marco de crenças e tradições coletivas mais ou menos compartilhadas. [N.T.]

[15] Pierre Bourdieu (1980), Le sens pratique, Les Editions de Minuit, p. 86.

[16] Alain Caillé (1996), “Ni holisme ni individualisme méthodologique. Marcel Mauss et le paradigme du don, in L’obligation de donner, La Revue du MAUSS semestrielle, n°8, p. 46

[17] Norbert Elias (1975), La dynamique de l’occident, Calman-Lévy.

[18] Em anatomia geral, o termo pronação (do qual deriva o qualificativo “pronador”) é associado à mobilidade do antebraço que provoca a rotação da mão de fora para dentro. Para Lordon esse movimento descreve o gesto prosaico de tomar algo em mãos e subtraí-lo da sua posição original. Em poucas palavras: trata-se do gesto de apanhar algo. [N.T]

[19] (E, III, 11, escólio).

[20] Para retomar uma qualificação elaborada por Marcel Hénaff (2002). Le prix de la vérité. Le don, l’argent, la philosophie, Seuil.

[21] “Aqui e agora” [N.T.]

[22] Sêneca, Les Bienfaits, Bouquin, Robert Laffont, IV, XXII, 2, p. 488.

[23] Gilles Deleuze (1981), Spinoza. Une philosophie pratique, Les Editions de Minuit.

[24] “Eu denomino Servidão a impotência humana para controlar e contrariar seus afetos” (E, IV, Prefácio).

[25] “Denomino Fortaleza todas as ações que, decorrendo dos afetos, relacionam-se com o espírito que as compreende (ou seja, estão sob a conduta da razão, Nota do Autor)” (E, III, 59, escólio).

[26] Grifos meus.

[27] Charles Ramond (1995), Qualité et quantité dans la philosophie de Spinoza, PUF, Philosophie ’aujourd’hui.

[28] Grifos meus.

[29] Martine de Gaudemar (2001), “Duperie de soi et question du sujet”, in Augustin Giovannoni, Figures de la

[30] Albert Camus (1958), Caligula, Gallimard Folio, Ato II, Cena 2.

[31] Id.

[32] Literalmente: “eu amo crer que…”. Algumas traduções possíveis ao português dessa expressão bastante frequente no idioma francês seriam: “Eu quero crer que…”; “Gostaria de acreditar que…”. No entanto, nenhuma dessas traduções preserva o jogo de palavras proposto por Lordon, posto que ambas remetem a uma ideia de escolha em relação a qual o autor deste ensaio pretende estabelecer distância. [N.T]