Título: A importância da crítica para o desenvolvimento do movimento revolucionário
Data: 2011
Fonte: Do livro Problemas e Possibilidades do Anarquismo - José Antonio Gutiérrez Danton
Notas: * Tradução: Daniel Augusto de Almeida Alves. * Revisão/edição: Felipe Corrêa.

Este artigo foi escrito no intuito de dar conta de um velho mal-estar que sinto no movimento libertário. Este mal-estar é a falta de discussão nos meios anarquistas, somado ao fato que o pouco que há é frequentemente marcado por insultos e por um ânimo mais competitivo do que construtivo. Este equívoco, que se converteu em algo crônico, tem remédio e pode ser superado com vontade e maturidade. As ideias aqui articuladas começaram a desenvolver-se a partir de um documento de discussão para a revista chilena Hombre y Sociedad em 2006, já que nesta publicação temos tentado superar esta situação, ainda que reconheçamos as limitações e a modéstia de nosso esforço.

Espero que as ideias aqui defendidas sirvam para ir deixando de lado os vícios do movimento e possamos construir um edifício de bases sólidas e com ar fresco a partir do qual possamos trabalhar pela futura revolução.

* * *

A QUESTÃO DO DOGMATISMO

Não raramente escutamos, quando se fala das diferenças entre o anarquismo e as demais correntes da esquerda, que o anarquismo é uma corrente “livre de dogmas”, “que não é fechada em si mesma” e “que é aberta ao desenvolvimento por meio da livre crítica”. Isto tem sido repetido exaustivamente, incansavelmente, e de maneira habitual assume-se tal fato como uma virtude suprema do anarquismo. No entanto, o menor contato dos círculos anarquistas com a realidade nos mostra uma realidade bem diferente destas declarações autocomplacentes. Ainda que muito se fale sobre a falta de “dogmatismo” no anarquismo, o que encontramos frequentemente é uma falta de reflexão sistemática, misturada com o mais recalcitrante dos dogmatismos, em que a análise serena da realidade é substituída por uma série de categorias apriorísticas e incompatíveis com a realidade. Longe de encontrar um ambiente favorável ao desenvolvimento da crítica, encontramos um movimento paranoico, que tende a entender a crítica como um ataque, o que é muito acanhado para discutir em termos efetivos as diferenças reais em seu seio. E encontramos um movimento que, longe de aceitar as diferenças, discutindo-as com maturidade, está sempre prestes a excomungar. Isto não é um defeito de uma ou outra publicação, de um ou outro personagem no movimento (ainda que claramente haja quem leve esta tendência a níveis patológicos), mas é um defeito profundamente engendrado no movimento libertário que permeia praticamente todos seus setores e correntes.

Na verdade, o anarquismo ainda possui muitas debilidades. Como um movimento, sofremos de diversas delas, somos ainda um movimento em gestação, apesar de nossa longa história. Pois uma das carências que mais sentimos é a ausência de uma tradição autêntica de debate. Pois onde não há discussão, há dogmatismo, e onde há dogmatismo há ignorância. Onde a discussão não se dá livremente, o que impera é a falta de dinamismo nas ideias e a defasagem em relação à realidade. Em um ambiente deste tipo não é possível o desenvolvimento de um movimento sadio, com ambições de transformar este mundo.

DISCUSSÃO E DEBATE CONSTRUTIVOS

Carecemos de uma tradição de discussão. Estamos muito acostumados a “denunciar” em vez de discutir. Há muitos em nosso movimento mais próximos do espírito de Torquemada do que do espírito de Bakunin. Há muitos que preferem desperdiçar seu tempo “vigiando” os passos de outros anarquistas e denunciando aquilo que consideram um desvio, ao invés de contribuir com a construção concreta de um movimento. O anarquismo aparece assim, mais do que uma ferramenta de transformação do mundo, como um conjunto de dogmas elementares, de rudimentos políticos mal digeridos, de palavras de ordem vagas e gerais que substituem a reflexão política séria. O simplismo não deixa espaço para um pensamento articulado. Temos muitos autoproclamados defensores da fé e muito poucos anarquistas dispostos a desafiar o presente para explorar novos caminhos para o anarquismo diante de um mundo que não deixa de girar.

Em vez de aceitar as diferenças de opinião como tais e proceder a debater respeitosamente, energicamente, mas sempre com espírito construtivo, denunciamos e desqualificamos. Não sabemos debater; frequentemente nossas discussões entravam-se em questões de princípios e todas as divergências táticas são elevadas à categoria de discussões de princípios eternos do anarquismo. Pierre Monatte, o velho anarquista sindicalista francês, queixava-se no Congresso de Amsterdã (em 1907!) que “existem camaradas que, por tudo, inclusive pelas questões mais fúteis, sentem a necessidade de levantar questões de princípio[1]. Com isso, parece que a cada diferença estamos julgando a razão de ser anarquista e as posições divergentes são caricaturadas como “autoritárias”, “totalitárias”, “marxistas”, “reformistas”, etc. Rótulos bastante úteis para evitar abordar as discussões de maneira política e não-histérica. Em nosso movimento, lamentavelmente, tende-se a adornar qualquer argumentação com inúmeros adjetivos qualificativos que nada aportam, absolutamente nada, ao esclarecimento do assunto em debate. Assim, cada debate em torno do anarquismo termina em uma polêmica para ver quem é o “mais” anarquista, quem é o que conserva a linha sagrada... e não quem tem razão à luz da realidade.

Parece que neste ambiente de “denúncias” e de ausência de debates, a própria realidade não é senão um aspecto secundário, que pouco ou nada contribui com qualquer assunto que está em discussão.

QUANDO UM ATACA O OUTRO E ESQUECE DA LUTA

Estes sectarismo e dogmatismo também se veem refletidos em nossa propaganda. Inclusive chegamos ao extremo de publicações inteiras do anarquismo gastarem uma quantidade enorme de tinta e papel para atacar outros anarquistas, em vez de discutir de maneira saudável ou atacar àqueles que realmente “fodem” a vida de milhões de pessoas neste mundo.[2] Quem trabalha desta maneira causa um enorme prejuízo ao movimento: não somente alimenta as tendências centrípetas no anarquismo, mas persuade os leitores não familiarizados com nossas ideias de que o anarquismo é um movimento de espírito mesquinho, estreito e pequeno, deslumbrado por suas próprias vaidades e insensível aos verdadeiros problemas do nosso tempo. Para quê unir-se a um movimento que está muito ocupado com tarefas inquisitoriais ao invés de ocupar-se da problemática cotidiana do conjunto dos oprimidos, dos pobres, dos explorados e dos marginalizados?[3]

Esta virulência nos ataques a quem pensa ou trabalha de forma distinta e este sectarismo têm atingido o paroxismo com as possibilidades abertas pela internet e pela comunicação virtual. Qualquer um pode, hoje em dia, insultar gratuitamente e covardemente, da comodidade de sua casa e com a proteção oferecida pelo anonimato, organizações ou referentes do movimento libertário que atuam abertamente nas lutas. Qualquer um pode dar vazão a seus ânimos destrutivos e a seu espírito miserável para depreciar os esforços realizados, muitas vezes com enormes sacrifícios, por companheiros que estão suando a camisa para desenvolver uma alternativa libertária. Com todas as possibilidades abertas pela internet para trocar experiências e discutir, é desolador que a maioria dos fóruns seja tão pobre e que onde há mais comentários, eles são somente para insultar ou para desqualificar. Isto é uma realidade extremamente triste e dolorosa para qualquer um que seja honesto em sua luta.

Isto é próprio de movimentos distantes da realidade e, na verdade, ainda nas fileiras do anarquismo, há muitos que carecem de contato – em um sentido orgânico, obviamente – com o mundo popular, ou carecem de qualquer esforço para realizar um trabalho construtivo em meio aos explorados. Não basta conhecer a luta pelos livros de história; ela deve ser promovida realmente em nosso dia a dia. Com gente desligada das lutas e das organizações populares, acreditamos que é difícil um debate efetivamente construtivo, pois, com a falta de experiência prática, estas pessoas são incapazes de manter a discussão no plano da realidade e são facilmente arrastadas para o pântano das abstrações principistas. E disto vêm as denúncias de “traição ao anarquismo”. Esse é seu verdadeiro terreno, e por isso, diante das diferenças, sua reação natural é refugiar-se na segurança de seu próprio grupelho, um punhado de guardiões da fé.

CONSCIÊNCIA DE PARTIDO

Estes problemas a que faço referência não são um assunto novo. Há 85 anos já eram assinalados por Camilo Berneri em um artigo cujo tom, a qualquer um que já está há um tempo militando no movimento anarquista, soará tristemente atual e familiar:

“Somos imaturos. Isso é demonstrado pelo que foi discutido na União Anarquista fazendo sutilezas sobre as palavras partido, movimento, sem entender que a questão não é de forma, mas de substância, e que o que nos falta não é a exterioridade do partido mas a consciência de partido.

O que entendo por consciência de partido?

Entendo algo mais que o fermento passional de uma ideia, que a genérica exaltação de ideais. Entendo o conteúdo específico de um programa partidário. Estamos desprovidos de consciência política, no sentido de que não temos consciência dos problemas atuais e continuamos difundindo soluções adquiridas em nossa literatura de propaganda. Somos utópicos e basta. O fato de haver editores nossos que continuam reeditando os escritos dos mestres sem nunca incluir uma nota crítica, demonstra que nossa cultura e nossa propaganda estão nas mãos de gente que pretende manter em pé o próprio palanque, em vez de impulsionar o movimento a sair do que já foi pensado e esforçar-se na crítica, do que ainda está por se pensar. O fato de haver polemistas, que tentam engarrafar o adversário em vez de buscar a verdade, demonstra que entre nós há maçons em sentido intelectual. Agregamos os grafômanos, para quem o artigo é um desafogo ou uma vaidade, e teremos um conjunto de elementos que perturbam o trabalho de renovação iniciado por um punhado de independentes que prometem.

O anarquismo deve ser amplo em suas concepções, audaz, insaciável. Se quer viver e cumprir sua missão de vanguarda deve diferenciar-se e conservar alta sua bandeira, ainda que isso possa isolá-lo e restringi-lo ao seu próprio círculo. Mas esta especificidade de seu caráter e de sua missão não exclui um maior enraizamento de sua ação nas fraturas da sociedade que morre, e não nas construções apriorísticas dos arquitetos do futuro. Semelhante às investigações científicas, a hipótese pode iluminar o caminho da indagação, mas esta luz se apaga quando resulta falsa. O anarquismo deve conservar aquele conjunto de princípios gerais que constituem a base de seu pensamento e o alimento passional de sua ação, mas deve saber afrontar o complicado mecanismo da sociedade atual sem óculos doutrinais e sem excessivos apegos à integridade de sua fé. [...]

Chegou a hora de acabar com os farmacêuticos das formulinhas complicadas que não enxergam além de seu nariz; chegou a hora de acabar com os charlatões que embriagam o público com belas frases altissonantes; chegou a hora de acabar com os simplórios que têm três ou quatro ideias cravadas na cabeça e exercem como senhores do fogo sagrado do ideal, distribuindo excomunhões. [...]

O que tenha um pingo de inteligência e de boa vontade que se esforce com seu próprio pensamento, que trate de ler na realidade algo além do que lê nos livros e periódicos. Estudar os problemas de hoje significa erradicar as ideias não pensadas, significa ampliar a esfera da própria influência como propagandista, significa dar um passo adiante, inclusive um bom salto de longitude a nosso movimento.

É preciso buscar as soluções enfrentando os problemas. É preciso que adotemos novos hábitos mentais. Da mesma forma que o naturalismo superou a escolástica medieval lendo o grande livro da natureza em vez dos textos aristotélicos, o anarquismo superará o pedante socialismo científico, o comunismo doutrinário fechado em suas casinhas apriorísticas e a todas as demais ideologias cristalizadas.

Entendo por anarquismo crítico um anarquismo que, sem ser cético, não se contente com as verdades adquiridas, com as fórmulas simplistas; um anarquismo idealista e ao mesmo tempo realista; um anarquismo, em definitivo, que enxerte novas verdades no tronco de suas verdades fundamentais, que saiba podar os ramos velhos.

Não um trabalho de simples demolição, de niilismo hipercrítico, mas de uma renovação que enriqueça o patrimônio original e lhe agregue forças e belezas novas. Temos de realizar este trabalho agora, porque amanhã deveremos reemprender a luta, que não se encaixa bem com o pensamento, especialmente para nós que nunca podemos nos retirar das trincheiras quando recrudesce a batalha.”

Camillo Berneri

Pagine Libertarie, Milão,

20 de novembro de 1922[4]

As palavras de Berneri ferem-nos por serem cortantes, mas, antes de tudo, por serem dolorosamente atuais. Ainda prima, na discussão, a vontade de derrotar o adversário mais do que a de avançar e aprender. Ainda prima o espírito de seita sobre o espírito de partido. Isto faz com que, com a menor diferença, os grupos se dividam. Não é que sejamos partidários da unidade a todo custo; a unidade somente tem sentido quando há práticas e ideias fundamentais que são convergentes (não idênticas, já que as diferenças são fundamentais para o desenvolvimento de uma linha política). Mas somos inflamados adversários do sectarismo e da divisão por questões insignificantes.

O DESENVOLVIMENTO DO PENSAMENTO CRÍTICO

O artigo citado de Berneri é importantíssimo, não somente pela crítica que faz ao movimento, mas por dar a devida importância ao desenvolvimento do pensamento crítico em nosso movimento. Acredito que nosso movimento ainda não se dá conta da importância do desenvolvimento da crítica e da discussão em seu seio.

Há uma relação direta entre o nível de discussão em um movimento político e seu dinamismo. E somente um movimento dinâmico toma a iniciativa política e sabe incidir sobre a realidade. Este fator, o dinamismo, deixa bastante a desejar nos meios anarquistas. Estamos muito acostumados a tratar a divergência de opiniões de duas maneiras aparentemente opostas: ou nos insultamos, acusando aqueles que pensam diferente de não serem verdadeiros anarquistas, ou ignoramos as diferenças dizendo que no anarquismo vale tudo (até a ideia mais absurda). O resultado destes dois mecanismos para enfrentar o dissenso é idêntico e, todavia, no final das contas não há discussão. Ou nos fechamos em guetos diferentes, ou armamos um único grande circo onde todos coexistem, mas onde ninguém toca nos temas divergentes para não ferir as “sensibilidades”.

Ainda que superficialmente pareçam extremos diametralmente opostos, o “vale tudo” no anarquismo e o sectarismo dogmático são idênticos pelo fato de que ambos impedem a discussão e o avanço das ideias.

OS DEBATES COM OUTROS SETORES DA ESQUERDA E COM O POVO

Acredito que, se não soubermos discutir entre nós, sequer conseguiremos então discutir com outros setores do mundo popular e, como resultado, trocaremos a luta política (a troca e o questionamento de ideias e práticas) por uma incansável e insuportável pregação entre os convencidos. É muito sintomático que a grande maioria das publicações de “divulgação” anarquista pareça estar dirigida mais a outros anarquistas do que àqueles aos quais deveríamos divulgar nossas ideias: a essa ampla massa de pessoas que não pensam nem atuam como anarquistas. [5]

Da mesma forma que, entre nós, as diferenças de opinião ou de prática são sinônimo de anátema, para o restante do movimento revolucionário e da esquerda, ou inclusive do povo, mostramos o mesmo rechaço. “Reformistas”, “fascistas vermelhos”, “autoritários” são termos utilizados em abundância que significam pouco ou nada a essa altura, precisamente por estarem tão desgastados.

Termos que, em vez de nos ajudar a esclarecer as divergências e fazer pontes na discussão, nos isolam sem nos ajudar a persuadir nem a esclarecer os pontos reais em discussão. Todos os problemas de métodos e concepções, com o resto da esquerda, são reduzidos à simples fórmula: “vocês querem o poder e nós não”. Sempre pensei no absurdo desta afirmação: qualquer um que esteja cego pela obsessão de ter poder, faria isso muito melhor aliando-se aos partidos do governo ou da burguesia, em vez de militar em um partido comunista ou de inspiração socialista, o que indubitavelmente pode trazer-lhe mais problemas do que benefícios materiais, em termos imediatos. Outra coisa é o que acontece quando estes partidos chegam a ter algum poder em suas mãos, ou quando conseguem desenvolver uma burocracia com alguns membros dentro de algum movimento influente. Mas insisto, isto é um problema de métodos, mais que de intenções originais sinistras.

Isto não exclui que na esquerda, como em qualquer parte, não haja gente desonesta, gente oportunista, gente com espírito pequeno e incapaz de entender a realidade para além de suas limitadas lentes ideológicas, ou, pior ainda, gente que coloca os interesses de sua seita à frente dos interesses do conjunto do povo. Porém, há uma enorme diferença entre aceitar isso e supor que somos o único setor revolucionário bem intencionado, puro ou abnegado.

INFLUÊNCIAS BURGUESAS NO ANARQUISMO

Luigi Fabbri, em seu fundamental artigo “Influências Burguesas no Anarquismo”, já em 1918 queixava-se do problema da linguagem utilizada entre os anarquistas para discutir, mas também dos anarquistas para com outros setores populares ou da esquerda. Sua queixa é particularmente relevante em tudo o que tratei de expor. Nos diz Fabbri:

“O objetivo da propaganda e da polêmica é convencer e persuadir. No entanto, não se convence e não se persuade com violência na linguagem, com insultos e ataques, mas com cortesia e educação.”[6]

E continua:

“[...] Mas a violência da linguagem na polêmica e na propaganda, a violência verbal e escrita, que algumas vezes resultou tristemente em atos de violência material contra as pessoas, a violência que, sobretudo, deploro, é a que se emprega contra outros partidos progressistas, mais ou menos revolucionários – já que isto pouco importa – que são compostos de oprimidos e explorados como nós, de gente que como nós está animada pelo desejo de transformar a situação política e social atual em algo melhor. Aqueles partidos que aspiram chegar ao poder, quando chegarem, sem sombra de dúvidas serão inimigos dos anarquistas, mas como isto está um tanto distante, como sua intenção pode ser boa e muitos males que eles pretendem eliminar nós também queremos, e como temos muitos inimigos em comum e juntos teremos, sem dúvida, de lutar em mais de uma batalha, é inútil, quando não prejudicial, tratá-los violentamente, visto que agora o que nos divide é uma diferença de opinião, e tratar violentamente alguém porque não pensa ou trabalha como nós é uma prepotência, é um ato anti-social.

A propaganda e a polêmica que fazemos entre os elementos dos demais partidos deveriam, para atraí-los, persuadi-los do mérito de nosso raciocínio. O que já dissemos em linhas gerais, ou seja, que se persuade mal a quem se trata mal, é bem aplicável a elementos assimiláveis: operários, jovens, mentes já despertas, homens que já estão no caminho da verdade. A violência os detém em vez de impulsioná-los neste caminho. Alguns de seus líderes podem trabalhar com má-fé, mas diga-me: estamos seguros de que entre nós não há também pessoas que trabalham da mesma maneira? Devemos atacar a todos eles, generalizando, quando o que queremos é atacar aqueles que realmente possuem má-fé, e não todos no partido? Certamente, muitas de suas doutrinas são errôneas, mas para demonstrar seu erro não são necessários os insultos; alguns de seus métodos são nocivos à causa revolucionária, mas trabalhando diferentemente, de nossa própria maneira, e utilizando o exemplo e a demonstração razoada, demonstraremos que nossos métodos são melhores.

Todas as considerações deste trabalho foram-me sugeridas pela constatação de um fenômeno que observei em nosso campo. Acostumamo-nos tanto a sempre gritar que fomos perdendo gradualmente o valor das palavras e de sua relatividade. Os mesmos adjetivos depreciativos nos servem, da mesma maneira, para atacar diretamente o padre, o monarquista, o republicano, o socialista e até o anarquista que não pensa como nós. E isso é um defeito primordial. Se surge alguma diferença, isso acontece em benefício de nossos piores inimigos. Pode-se dizer que os anarquistas e os socialistas nunca insultaram os padres e os monarquistas como os republicanos, e que os anarquistas nunca insultaram os burgueses como o fizeram com os socialistas. Mas, todavia, direi: especialmente nos últimos tempos, houve anarquistas que trataram outros anarquistas que não pensavam exatamente como eles como jamais trataram os clericais, os exploradores e os policiais juntos.

[...] Eu acredito que seria melhor que procurássemos nos conhecer e, sobretudo, trabalhar sem nunca perder de vista que temos o inimigo em frente de nós, o verdadeiro inimigo que observa o momento de nossa fraqueza para nos atacar. Nunca – em meio aos partidos para os quais a ação é a única razão de existência – se poderia dizer com mais razão que o ócio é o pior dos vícios e o primeiro destes é a discórdia.”[7]

Não se pode ser mais perfeito e certeiro do que esta opinião. E, novamente, isso nos demonstra que em 90 anos aprendemos extraordinariamente pouco e que ainda nos falta muito para avançar na construção de um espaço saudável de debates, em que possamos aprender e avançar.

A RELEVÂNCIA DA PRÁTICA

Para nós, a crítica e o debate devem ser ferramentas para a construção, antes de tudo. Não nos interessa debater para demonstrar “quem tem razão”, nem debater “por esporte”, senão para tratar de buscar o melhor caminho para enfrentar os problemas que afligem nosso movimento e dentro de um espírito verdadeiramente construtivo. Certamente, tal forma de discussão deve ter por ponto de partida a prática, pois acreditamos que a discussão deve estar firmemente ancorada na realidade para evitar assim as distorções próprias do desconhecimento prático ou do conseguinte idealismo. Além disso, somente a discussão que se fundamenta em experiências equivalentes pode gerar uma linguagem comum e produtiva. Pois se criticamos uma organização por sua maneira de fazer as coisas, certamente devemos ser capazes de mostrar que há outra maneira de realizá-las ou que ao menos podemos sugerir alternativas. Ainda que seja necessário ter em mente, a todo momento, que em raras vezes uma posição é completamente acertada e que, afinal de contas, é a própria prática, o desenvolvimento da realidade, que se dedica a separar as posições mais corretas das menos corretas.

Então, outro ponto importante é que se a crítica revolucionária não estiver acompanhada de uma prática, ela torna-se irrelevante. Pois, que sentido tem uma crítica que se entende revolucionária se ela não está disposta a converter-se em realidade, na ação imprescindível para que haja um efetivo movimento revolucionário e não um puro diletantismo intelectual? O revolucionário, diferente do politiqueiro, não fala da plateia, da condição de espectador: o revolucionário deve falar sempre a partir da ação e do esforço, por humilde que isso possa parecer, de converter-se em uma alternativa para o presente. Tendo a ser bem mais cético com os hipercríticos e com os ultrarevolucionários que nunca são vistos em uma experiência concreta e que nunca sujaram as mãos. Esta é uma visão construtiva da crítica: uma que seja forjada no calor da construção concreta e não do mero ânimo de destruir o esforço alheio.

A discussão deve, além disso, ser posta a serviço da prática, pois o dinamismo que ela gera deve servir para enriquecer nossas experiências. E vice-versa, a prática logo entrega novos elementos para poder avançar na teoria, e como dizia Berneri, para um anarquismo que saiba podar os ramos velhos, que saiba inserir novas verdades em suas verdades fundamentais e que saiba renovar-se, pois o imobilismo intelectual é o principal fator de nossa incapacidade de compreender a complexidade dos fenômenos de um mundo que esta em permanente transformação.

Porém, a crítica não tem somente a função de nos ajudar a compreender melhor nossa realidade e a desenvolver conceitos, ensinamentos e propostas mais acertadas às necessidades de nossa época. A discussão também é importante para avançarmos e nos desfazermos das ideias errôneas, mal-formuladas ou insuficientes. Como me disse uma vez um companheiro: “com nossa discussão, você não conseguiu me convencer, mas pelo menos ela serviu para eu descobrir minhas próprias fraquezas e reforçar minhas ideias”. Isso não é cair em um diálogo de surdos, na medida em que respondemos e escutamos os argumentos do outro. Mas é uma ajuda crucial para avançar, pois dá solidez às ideias que aparecem melhor argumentadas, mas convincentes e mais acabadas. A cada vez que nos desfazemos das ideias errôneas ou disparatadas.

Para finalizar, a crítica e o debate são importantíssimos para fazer pontes com outras correntes. Com seu desenvolvimento podemos nos aproximar daqueles que se atraíram por outras correntes, podemos ganhar para as nossas posições outras organizações ou podemos aprender com elas e nos dar conta que, em algum aspecto determinado de nossa política, estamos equivocados. Somente onde se estabelece esta ponte de discussão saudável, pode-se acontecer uma prática livre de sectarismo que, respeitando as diferenças, seja capaz de envidar esforços onde houver unidade de critérios.

EM CONCLUSÃO

Estas palavras não foram escritas com o objetivo de denunciar ou acusar tal ou qual companheiro de sectário. Nem acredito que haja corrente livre de vícios, que se converteram em costumes, em nossos círculos. Muitas vezes é tão culpado quem provoca como quem se deixa provocar e segue a corrente. Todos sabemos que há “maçons em sentido intelectual” no movimento; todos sabemos que há devotos do “Santo Ofício”; mas não nos importa o que eles pensam. Não lhes damos bola, como se diz, pois sabemos que nada do que é fundamental para se chegar a uma sociedade livre se consegue desta maneira. Mas o que é de se preocupar, é que eles consigam arrastar outros companheiros ou organizações que são valiosos para o nosso campo. E o que é pior: que a cultura de debate tenha seu referente comum traçado por este espírito mesquinho. Finalmente, o que é ainda pior: que os companheiros que, a partir de distintas vertentes ou perspectivas, estejam presentes na luta e na construção não tenham ainda aprendido a ter estas dinâmicas de intercâmbio saudável. Isto é o que verdadeiramente preocupa.

A esquerda tradicional tem sido sectária, dogmática e tem frequentemente ignorado a realidade ao seu redor. Não acredito que os anarquistas, no geral, tenham sido muito melhores. É hora de dar o exemplo. Devemos apontar para a construção de espaços de discussão e mudar os hábitos maléficos em nosso movimento, que não contribuem com o debate e que mais entorpecem o desenvolvimento do necessário espírito crítico que o movimento revolucionário tanto necessita para fazer frente às difíceis tarefas de regeneração social que temos adiante.

12 de Novembro de 2007

[1] Em “‘Anarchisme & Syndicalisme’ Le Congrès Anarchiste International d’Amsterdam (1907)”, ed. NautilusMonde Libertaire, 1997, p. 161.

[2] Esta debilidade pela denúncia tem atingido, lamentavelmente, extremos mórbidos nos meios argentinos e espanhóis.

[3] Luigi Fabbri, o famoso anarquista italiano, disse que a primeira vez que leu os periódicos anarquistas, estes não o persuadiram e que, se fosse pela propaganda escrita dos anarquistas, ele jamais haveria se aproximado do movimento. Lamentavelmente, muito de nossa imprensa hoje, em sua virulência contra o restante do anarquismo e da esquerda, cumpre um papel mais de contrapropaganda do que de propaganda propriamente dita.

[4] Em “Camillo Berneri: Humanismo y Anarquismo”, ed. por Ernest Cañada, ed. Los libros de la Catarata, 1998, pp. 43-46.

[5] Obviamente, há artigos (como este próprio que eu escrevo) ou publicações que estão dirigidas principalmente ao público libertário, sendo esta sua verdadeira audiência. Certamente não me refiro neste artigo a este tipo de publicações, mas àquelas que explicitamente dizem ser de “propaganda”, de “difusão” e de “divulgação”.

[6] Luigi Fabbri, “Influencias Burgesas en el Anarquismo”, ed. Solidaridad Obrera (Paris), 1959, p. 53.

[7] Ibid. pp. 56-59.