Título: As Matanças de Anarquistas na Revolução Russa, O Mito do Partido & Outros Escritos
Subtítulo: Um texto que denuncia a natureza autoritária, genocida e centralizadora do bolchevismo.
Data: 07/2005
Fonte: Originalmente editado pela Biblioteca “Alberto Ghiraldo” – setembro de 2005 – Rosário (Santa Fe, Argentina) Tradução e reedição por Imprensa Marginal – 2007
Notas: Extraído da conclusão de My Further Disillusionment in Russia, publicado na “Revue Anarchiste”, n. 33, abril de 1925. Traduzido para o português por Plínio Augusto Coêlho e publicado na revista Libertárias n.1, de outubro/novembro de 1997 – Editora Imaginário.

Índice:

As matanças de anarquistas na Revolução Russa
Juan Manuel Ferrario

O mito do partido – Símbolo da escravidão moderna
primeira parte
Federação de Estudantes Libertários

Por que a revolução não realizou suas esperanças
Emma Goldman


Palavras Preliminares

Alguma vez um lutador social latino-americano afirmou que para se compreender o século XX era preciso analisar com atenção a Revolução Russa, a Revolução Mexicana e a Revolução Libertária na Espanha.

Com efeito, estes três processos oferecem muitas chaves para desentranhar o trágico suceder das classes e setores oprimidos e explorados.

Além disso, é preciso esclarecer o papel que, em cada uma dessas lutas, cumpriram os distintos protagonistas.

Da Revolução Russa se ofereceram diversos testemunhos, os bolcheviques se ocuparam e se ocupam de contar uma história oficial que regateia dados fundamentais, por exemplo, os antecedentes dos primeiros soviets ou conselhos operários e populares de 1905.

Lênin, Trotsky e Stalin, que tomam o poder na Rússia a partir de outubro de 1917, aparecem como os caudilhos do proletariado, quando na realidade foram quem forjaram os mecanismos de um sinistro capitalismo de Estado que oprimiu, explorou milhões de pessoas.

As indicações de Mikhail Bakunin a Karl Marx, sobre a militarização da sociedade que implicaria na sobrevivência da maquinaria estatal após uma revolução socialista, se cumpriram pontualmente. O aniquilamento dos soviets do Báltico (Krondstadt, 1921) e da guerrilha makhnovista, demonstraram a irracional megalomania que inspirou desde o início aos burocratas bolcheviques.

Anos depois, na Espanha, perseguiram àqueles que impulsionavam a autogestão de campos, fábricas e oficinas, assassinaram lutadores sociais como Camillo Berneri (Maio, 1937), preferiram o triunfo do fascismo à instauração de uma sociedade comunista libertária, com federalismo, justiça social e liberdade.

Entre outros, Piotr Kropotkin e Emma Goldman assinalaram antecipadamente o horror de centralizar o poder, de não eliminar os mecanismos da burocracia.

Ironia do destino, quando o então máximo líder da URSS, Mijail Gorbachov, lançou a Glasnost e a Perestroika, o fez de um edifício localizado na Avenida Kropotkin; o dirigente do PCUS reconhecia, de certa forma, as críticas manifestadas pelo lutador anarquista mais de sessenta anos antes.

Vivemos em um mundo cruel, em que o capitalismo não pára de aniquilar vidas, de aperfeiçoar mecanismos de exploração e barbárie, em muitos casos como China, na mão de partidos que se autodenominam comunistas.

A verdadeira história é escrita pelos povos, com seu sacrifício, suas dores e sua coragem.

Estas páginas nos falam de uma porção da história que pretenderam apagar, nosso desafio é recuperá-la do esquecimento, porque as injustiças de ontem persistem e o caminho a seguir requer de memória e reconhecimento para com aquelas mulheres e homens que fizeram da solidariedade uma bandeira digna e luminosa. Bandeira que empunhamos com coragem e alegria na luta pela emancipação integral dos indivíduos e dos povos. Por uma sociedade sem exploradores nem explorados, sem opressores nem oprimidos.

Carlos A. Solero
Rosário, verão de 2005


Introdução

Uma das causas pelas quais escolhi assumir este tema é porque são questões quase desconhecidas da revolução russa, que foram ocultadas ou rodeadas pelos historiadores de direita e de esquerda. Por isso apenas na bibliografia de historiadores anarquistas pude obter dados e um desenvolvimento importante destas problemáticas, como foi assim possível, também, a leitura de fontes diretas. No caso de historiadores profissionais, como Hewllett Carr, os acontecidos de Kronstadt e o makhnovismo são apenas nomeados superficialmente e não há uma análise destas questões especificamente. Em relação à história marxista e bolchevique, utilizo um impresso de S. Chernomordik, intitulado “Majno y el movimiento majnovista”, que dá a visão bolchevique sobre o ocorrido na Ucrânia.

Cabe destacar não haver muita bibliografia marxista sobre estes temas. Existe um escrito de Leon Trotsky em inglês intitulado “Hue and cry over Kronstadt”, e editado em 1938, sendo sua justificação a respeito de Kronstadt, mas não pude utilizá-lo por não existir versão em castelhano do mesmo. Entretanto, tomo sua obra “Terrorismo e Comunismo”, onde não se detém no acontecido em Kronstadt, mas pelo menos faz alusão a isso. A opinião de Lênin e Trotsky a respeito pode ser vista também em notas destes aparecidas no diário russo “Pravda”, transcritas por Paul Avrich. Há que se recordar que quando a maioria das obras sobre estas temáticas foram escritas, ainda existia a União Soviética como tal, e os arquivos secretos ainda não haviam sido analisados.

Explicado tudo isto, passo a assinalar que sempre me interessaram as revoluções, mas em todas via uma constante: as revoluções começavam com gestos de um heroísmo e ideais imensos, mas a curto ou longo, toda revolução se degenerava, e com o passar do tempo seus ideais originais se perdiam. Só restava uma paródia da revolução. Isto pode se observar na revolução russa, na cubana, na Nicarágua, na China, ou qualquer outra revolução. Isto dará lugar a nossa hipótese de se Estado e Revolução são compatíveis. Se se pode chegar ao socialismo através do Estado ou se na realidade nos afastamos daquele ao nos aproximarmos deste. Mas isto analisaremos em breve e será desenvolvido e justificado ao longo do texto.


Objetivos

Resgatar os fatos quase esquecidos da Revolução Russa como o levante de Kronstadt e o surgimento e aniquilação do movimento makhnovista.

Buscar e assinalar as diferenças que havia entre bolcheviques e anarquistas, e ver os projetos que estes últimos tinham na Rússia. Demonstrar com esta análise que o caráter de “utópicos” e de “sonhadores idealistas” de que se acusa aos anarquistas é uma ficção. Tanto na Ucrânia quanto em Kronstadt se praticou o anarquismo e se o levou até as últimas consequências.

Começar a ver se os germens do stalinismo não estavam já aqui presentes com os massacres cometidos na repressão, se não é uma consequência direta ver até onde se parecem o primeiro bolchevismo durante o “comunismo de guerra” e o stalinismo.

Gerar, mas perguntas do que respostas a respeito do surgimento e finalização da Revolução Russa, desnaturalizando as ideias e os discursos oficiais que há sobre a mesma.

Separar a ideia de Estado e a de Revolução, demonstrando que se trata de duas coisas distintas e opostas.

Demonstrar a natureza autoritária, genocida e centralizadora do bolchevismo, não com fins apologéticos, mas baseando-me em fatos concretos como podem ser as enormes cifras de operários e camponeses executados em nome do “governo revolucionário de operários e camponeses” ou encarcerados em campos de concentração, não com Stalin, mas antes, entre 1920 e 1921, com Lênin no poder, e condenados a morrer de fome ou pestes.

Assinalar que é errôneo o conceito de um Lênin “bom” rodeado de um entorno “mau” como era errônea a ideia de um czar “bom” rodeado de cortesãos “maus”, já que o mesmo Lênin foi quem integrou Stalin no comitê central do Partido Comunista, e foi Lênin, pouco antes de sua morte, quem nomeia Stalin, como Secretário Geral do Partido Comunista.


Os anarquistas na Revolução Russa

Os acontecimentos mais importantes de que participaram os anarquistas russos foram dois: de um lado a configuração do movimento makhnovista que se estendeu por toda a Ucrânia entre 1918 e 1921 e cujo nome se deve a seu líder guerrilheiro, Nestor Makhno; de outro lado, estão os “acontecimentos de Kronstadt”, cidade russa em que os bolcheviques, já no poder, assassinaram milhares de marinheiros que se sublevavam em greve ao ver os primeiros indícios da configuração da burocracia vermelha, e da distorção dos objetivos principais da Revolução Russa.

Na Ucrânia, durante três anos inteiros se praticou a anarquia com a expropriação de terras, se criaram as escolas libertárias seguindo o modelo do pedagogo espanhol e anarquista Francisco Ferrer, fuzilado na Espanha em 1909, cujo projeto de educação era o das escolas laicas com formação naturalista e racional. Ao mesmo tempo, se dá a eliminação do dinheiro, a consolidação do soviet de Goulai-Polé, a destruição de cárceres e a libertação de todos os presos. Também se criam na Ucrânia centenas de comunidades agrícolas socializadas, a mais conhecida delas foi a comunidade “Rosa Luxemburgo”, incendiada pelos bolcheviques após terem vencido os makhnovistas. Finalmente se dá a formação de um exército não regular de guerrilheiros camponeses, que alternavam seus postos para não gerar burocracias. O anarquismo na Ucrânia não foi uma utopia, três quartos desta região foi revolucionada pelo makhnovismo até que chegou a repressão bolchevique. Há que se destacar que, até nos piores momentos, os makhnovistas nunca utilizaram as requisições obrigatórias de grãos sobre os camponeses para alimentar o exército. O projeto internacionalista e classista do makhnovismo se diferencia dos nacionalistas ucranianos de origem burguesa que só buscavam a independência da Ucrânia em respeito à Rússia e a ocupação alemã após o tratado de Brest-Litovsk, que, além disso, eram anti-semitas ferrenhos, tendo matado 100.000 judeus. Os nacionalistas estavam sob a liderança de Petliura, posteriormente assassinado pelo anarquista Schulin, em um atentado cometido em 1926, como forma de vingar aos judeus assassinados.

Os makhnovistas e anarquistas em geral, diferente dos bolcheviques, lutavam pelas comunas federadas e soviets descentralizados, com administrações locais. Os anarquistas não queriam dirigir a revolução, mas acompanhá-la. Enquanto os marxistas falam de revolução política, os anarquistas falam de uma revolução social. Não querem que se substitua um governo por outro, e sim eliminar da face da terra todo o princípio de autoridade, trate-se de uma monarquia, de uma república mais ou menos democrática ou de qualquer tipo de ditadura, mesmo que se faça em nome do proletariado. Os anarquistas não acreditam que se chegue ao socialismo, se o poder está centralizado e não socializado. Para o anarquista, seu fim são os próprios meios. Por isso não acreditam na tomada do poder. Para o marxista estatista, o fim (o socialismo) justifica os meios (ditadura do proletariado, centralismo político, perseguições indiscriminadas).

Por último, os anarquistas creem na revolução feita pelas massas, não nas vanguardas dirigentes como creem os bolcheviques. Para justificar nossa hipótese a se desenvolver mais adiante, poderíamos tomar o livro “O estado e a revolução”, de Lênin, e o ensaio com o mesmo nome, de Luiggi Fabbri; também há uma obra de Rudolf Rocker, chamada “Bolchevismo e anarquismo” e outra do mesmo Fabbri, intitulada “Ditadura e Revolução”. Estas obras analisam a relação do Estado com a revolução e serviram para demonstrar o afirmado em nossa hipótese ou comprovar o oposto.

O mesmo se pode dizer de Kronstadt, ali onde toda uma cidade se sublevou contra o bolchevismo que já era hegemônico; apesar das ameaças de repressão, a população se levantou em armas e foi até as últimas consequências. Estamos falando de uma cidade cuja metade da população foi dizimada. Paul Avrich compara a comuna de Kronstadt com a Comuna de Paris de 1871. Em Kronstadt a população não fez mais que seguir o slogan de Lênin de “todo o poder aos soviets” (“e não aos partidos”, agregaram os marinheiros), slogan logo abandonado pelo dirigente bolchevique.

Os rebeldes desta cidade se opuseram ao que eles chamaram de “comissáriocracia”, criaram o Comitê Revolucionário Provisório exigindo eleições livres, ao não se sentirem representados pelos enviados bolcheviques, encarcerando por sua vez o general bolchevique Kuzmin e enfrentando os bombardeios aéreos dos bolcheviques. Os marinheiros e operários da cidade criaram uma comuna livre que durou 16 dias.


O movimento makhnovista

A respeito do movimento makhnovista, podemos afirmar que este surge em 1918, quando os bolcheviques firmam o Tratado de BrestLitovsk, de paz com Alemanha. A Rússia vinha da Primeira Guerra Mundial e com a derrota da guerra russo-japonesa, o império czarista se havia debilitado como nunca, o que deu lugar a grande descontentamento na população, sendo uma das causas da revolução próxima que despontava. A Ucrânia havia deixado de ser uma nação independente quando o império czarista se apropriou dela, mas grande parte de sua população nunca havia deixado de sentir o desejo de liberdade e autonomia. A Ucrânia era uma zona marginal do império, e era refúgio tradicional de bandoleiros e rebeldes, uma zona de fronteira.

A importância do Tratado de Brest-Litovsk reside em que, ao se retirarem os russos da guerra, a Ucrânia fica muito indefesa, dando lugar para que os austro-alemães invadam esta zona e ponham no cargo de “Hetman” Skoropadsky, uma autoridade a serviço do invasor. A resposta à ocupação alemã não se faz esperar, há grandes revoltas de camponeses na Ucrânia, e até fins de 1918 nasce o exército makhnovista no povoado de Goulai-Polé, terra natal de Nestor Makhno, este exército derrubará o “Hetman” e a zona se declara libertada.

Makhno havia nascido em 1889, até 1909 se relaciona com os grupos anarquistas da Rússia e logo a polícia czarista o prende como agitador e atentador anarquista. Em 1917, em plena Revolução Russa, os camponeses que já adoravam a figura de Makhno por sua coragem, assaltam os cárceres e liberam muitos presos políticos, entre eles o próprio Makhno.

Uma vez iniciada a guerra civil, entre 1918 e 1921 os makhnovistas se enfrentam com vários inimigos. Uma vez derrubado Skoropadsky, os makhnovistas se defendem dos ataques dos militares czaristas Deñikin e logo Wrangel, que tentaram restabelecer a monarquia. Ambos líderes czaristas, serão derrubados pela precária guerrilha de Makhno que ataca e deserta, fazendo-o com armas roubadas do inimigo. Logo aparecerá em cena Petliura, líder da burguesia nacionalista ucraniana, um homem de direita e separatista que pretende dar às revoltas ucranianas um caráter nacional, porém logo se enfrentará com os anarquistas seguidores de Makhno, que veem que o problema não é ser russo ou ucraniano, e sim ser proletário ou burguês. Antes que os anarquistas triunfem, Petliura prefere entregá-los aos militares czaristas, motivo pelo qual Makhno e seus homens deverão enfrentar Deñikin, Wrangel e logo Petliura.

Entre 1919 e 1920 os bolcheviques, que já começavam a ser hegemônicos, começam a ver o “perigo” de um exército horizontalista e anárquico que não se soma às suas fileiras vermelhas. Irão existir várias tentativas de cooptar aos makhnovistas, ou, caso contrário, eliminá-los. Leon Trotsky dirá em 1918 que “a guerra civil inevitavelmente alimenta tendências anarquistas nos movimentos de massas trabalhadoras... Psicologicamente uma revolução significa o despertar na massa camponesa da personalidade humana. As formas anarquistas deste despertar foram a inevitável consequência da opressão existente. Chegar à criação de uma nova ordem, baseada no controle dos próprios trabalhadores sobre a indústria, é possível apenas por meio da eliminação INTERNA persistente das tendências anarquistas da revolução.

Radek, outro líder bolchevique, dirá em 1918: “Quando não há um poder proletário central, cada indivíduo se sente livre de trabalhar a seu capricho. Logo quando se organiza um governo central de operários e camponeses – que foi feito pelos bolcheviques – se dão fim às tendências anarquistas na classe operária. Somente um governo... que faz todo o possível para aumentar a produção, tem o direito moral de perseguir sem piedade as tendências anarquistas nas massas do povo”.

Não restam muitas dúvidas do desprezo dos dirigentes bolcheviques ao camponês (há que se recordar que o movimento makhnovista é fundamentalmente um movimento camponês) e de seu desprezo aos anarquistas em geral.

Há dois tratados de não agressão firmados entre makhnovistas e bolcheviques, ambos violados por estes últimos. Nestes tratados se havia firmado, entre outras coisas, o fim das perseguições aos anarquistas de toda a Rússia, e a liberação dos anarquistas detidos e aprisionados pelos bolcheviques, como também a liberdade de decisão militar dos makhnovistas de combater nas frentes que eles consideravam necessárias. Nada disto se cumpriu pelos bolcheviques, já que em pouco tempo começam a pressionar Makhno para mandá-lo combater na zona de fronteira com a Polônia, distante da Ucrânia. Makhno se nega, e logo o “herói expulsor de Deñikin”, segundo vozes bolcheviques em vésperas da assinatura de ambos os tratados, se converte logo em um “bandido a serviço dos generais brancos”, ao desobedecer. Ao longo da guerra entre ambas as tendências, 200.000 makhnovistas serão aprisionados e outros 220.000 executados pelos bolcheviques.

Sobre este tema nos conta Volin... “Dias antes da vitória decisiva sobre Wrangel, quando sua derrota não dava lugar a dúvidas, a estação central de emissões radiofônicas de Moscou prescreveu a todas as estações do interior que interrompessem suas recepções, devido a um telegrama urgente e absolutamente secreto de Lênin, que devia ser exclusivamente captado pelas duas estações centrais: a de Járkov e a de Crimea. Um simpatizante libertário a serviço de uma estação do interior não cumpriu a ordem e captou o seguinte telegrama:

“Estabelecer efetivos anarquistas Ucrânia particularmente região makhnovista. Lênin.”

Alguns dias mais tarde se cursou, nas mesmas condições, este outro:

“Vigiar ativamente todos os anarquistas. Preparar documentos, se possível de caráter criminal para poder submetê-los a acusação. Manter secreto ordem e documentos. Distribuir instruções necessárias. Lênin.”

E em poucos dias se lançou o terceiro e último telegrama:

“Prender todos os anarquistas e incriminá-los. Lênin”.

Em 1919, os seguidores de Lênin e Trotsky atacam Goulai-Polé com o fim de apanhar ou matar Makhno, mas como não o encontraram, executam um de seus irmãos. Logo as diferenças entre marxistas e anarquistas se agigantam.

Ao mesmo tempo, se dá outro fato, Piotr Kropotkin, geógrafo e biólogo de grande renome nos âmbitos científicos, e um dos teóricos anarquistas mais reconhecidos do mundo, sofrerá uma invasão a seu domicílio. Os bolcheviques o detiveram e prenderam em uma casa no campo de Dimitrov, para mantê-lo longe de Moscou. Assim pagou a Kropotkin tudo o que este havia feito em 1905, quando este usou todas as suas influências para tirar Lênin do cárcere, quando ainda reinava o czar.

Por outro lado, enquanto o exército bolchevique tinha um sistema de recrutamento obrigatório, os makhnovistas se submetiam ao exército voluntariamente, fato pelo qual, se eram milhares, eram menos que os bolcheviques. A falta de armas e alimento foi outro grande problema para os anarquistas, já que por sua ideologia não contavam com o poder centralizador do Estado nem a requisição de grãos aos camponeses. O makhnovismo foi morrendo ao ter de combater em várias frentes.

Muitas vezes, tropas bolcheviques enviadas para reprimir os anarquistas terminavam somando-se a estes vendo traída a revolução por parte dos líderes vermelhos. Por este motivo, Lênin enviará mercenários chineses e letões para reprimir a Ucrânia. Por outro lado, o exército vermelho conservava todo o autoritarismo e a disciplina do exército czarista, já que muitos de seus novos comissários eram antigos criminosos, oficiais do czarismo.

Em reiteradas oportunidades, os bolcheviques usaram os makhnovistas nas frentes mais perigosas, para se debilitarem e assim poderem ser dominados. Os distintos tratados violados pelos bolcheviques demonstravam quais eram suas intenções e qual sua ideia de revolução. A revolução seria liderada por Lênin e o partido bolchevique, ou não seria revolução.

Após 1921, o exército makhnovista é apenas um fantasma, conseguem escapar com Makhno apenas 100 cavaleiros, sobreviventes daquele exército. Makhno tinha 9 feridas no corpo, uma delas era de um projétil no pescoço que saiu pela mandíbula. A repressão bolchevique havia sido enorme. Centenas de camponeses e operários “suspeitos” e “simpatizantes” dos makhnovistas foram executados pelos novos “representantes da classe trabalhadora”. Várias aldeias foram incendiadas e muitas camponesas violadas pelos soldados bolcheviques.

Enquanto isso, a imprensa bolchevique, por sua vez, apesar de raramente falar do ocorrido na Ucrânia, quando o fazia, simplesmente dizia que se tratava de um “exército de bandidos degenerados e violadores”.

Outra acusação bolchevique aos makhnovistas era a de colocá-los como agentes czaristas ou a serviço dos generais brancos dispersos pela Ucrânia, argumento errôneo já que os makhnovistas expulsaram da Ucrânia generais czaristas como Deñikin ou Wrangel.

De outro lado, os bolcheviques, em sua imprensa, diziam que os machnovistas eram grupos nacionalistas que lutavam pela independência da Ucrânia. Se recordamos qual foi a relação dos makhnovistas com Petliura, líder nacionalista ucraniano, logo justiçado pelo anarquista Schulim por ter matado mais de 100.000 judeus, e temos em conta o internacionalismo operário dos anarquistas, o argumento bolchevique cai por seu próprio peso. Tampouco serve o argumento bolchevique que dizia que os makhnovistas eram ricos detentores de terras, já que o makhnovismo era um movimento profundamente camponês e seus integrantes vinham dos setores mais humildes.

Finalmente, Makhno consegue escapar até a Romênia, e logo termina seus dias em Paris, França, onde morrerá em 1935, muito pobre e doente, com a ajuda de outros refugiados.

Tempos antes de morrer, Makhno conheceu ali Buenaventura Durruti, o emblemático anarquista espanhol que estava nesta época exilado na França.


Os acontecimentos de Kronstadt

Kronstadt era uma fortaleza militar construída no século XVIII, e está localizada na ilha Kotlin, ao norte da Rússia, sobre o mar Báltico, muito próxima da Finlândia. No momento analisado, esta cidade portuária tinha 50.000 habitantes.

Sua importância como cidade está no fato de que, tanto na época czarista quanto com os bolcheviques, Kronstadt será a base principal da frota russa. Os marinheiros, ao viajar, conheciam outros regimes e traziam muitas ideias de outras partes da Europa.

O caráter revolucionário desta cidade era histórico. Havia sido uma das primeiras localidades a aderir à revolução de 1905. Ocorreu algo parecido em 1910, e em 1917 Kronstadt se converteu na “glória da revolução”, segundo Trotsky.

Em vésperas da revolução de outubro, 16.000 marinheiros de Kronstadt entram nesta cidade com bandeiras rubro e negras.

Porém, até 1921, seus habitantes, sempre defensores da revolução, começam a sentir os abusos das tropas bolcheviques. A cidade não tem autonomia, seu soviet local começa a ser boicotado permanentemente por membros bolcheviques para acatar ordens de Moscou. O descontentamento aumenta e durante todo fevereiro e março se produz a insurreição. Quem a encabeça são os marinheiros de Kronstadt. Exigem soviets livres, participação popular de seus habitantes, e não de dirigentes bolcheviques da capital, e, além disso, se somam as enormes greves que então sacodem Petrogrado. Cansados de inspeções, abusos de todo o tipo e ordens de oficiais vermelhos ex-czaristas, os marinheiros se amotinam. Toda a cidade os apoia. Os poucos enviados bolcheviques são expulsos, mas muitos comunistas leais ao socialismo tomam partido e ficam com os marinheiros. Aqui “a glória da revolução” se converte para Trotsky na “canalha contra-revolucionária”.

Lênin declara o estado de sítio e, em 7 de março, às 18:45, começam os bombardeios terrestres e aéreos sobre a cidade. Como muitos de seus enviados desertam e se somam aos rebeldes, Lênin tem de enviar tropas de mercenários chineses e bashireses para reprimir.

Com os bombardeios, 7.000 crianças e mulheres são assassinados pelos bolcheviques. A maior quantidade de mortos se dá em 16 de março, e dois dias depois cai Kronstadt. Haviam morrido 14.000 marinheiros sublevados. De uma cidade de 50.000 habitantes, os bolcheviques assassinaram 21.000, sem contar os sobreviventes aprisionados, enviados a um campo de concentração no deserto do Turquemenistão, onde morreram de fome. Apenas alguns poucos marinheiros conseguiram escapar até a Finlândia, e outros, como Alexander Berkman e Emma Goldman, serão expulsos para os Estados Unidos.

Os bolcheviques logo colocaram o general Dybenko, que havia liderado os bombardeios, como ditador local de Kronstadt. Ele se encarregaria de que nunca mais alguém tivesse a ousadia de se sublevar. E assim, Trotsky pode gabar-se: “Por fim o poder soviético varre da Rússia, com vassoura de ferro, o anarquismo!”. A revolução havia morrido.

As explicações bolcheviques sobre o ocorrido em Kronstadt serão muitas e até contraditórias. Primeiro dirão que se tratava de um levante de exilados czaristas comandado de Paris. Logo dirão que se tratava de um levante de exilados, mas comandado da Finlândia, onde estavam ainda muitos refugiados. Nestes dias a Finlândia havia firmado um tratado de paz com a Rússia, e por isso o governo finlandês se encarregou muito bem de que os exilados russos na Finlândia não molestassem nem prejudicassem o dito pacto. Depois vieram outros argumentos, também injustificados. Se dirá que os marinheiros de Kronstadt tinham apoio do exterior, de potências como Inglaterra ou França. À direita de vários países quis aproveitar o levante dos marinheiros para restaurar o czarismo e quiseram ajudar economicamente os marinheiros, mas estes rechaçaram a dita ajuda, apesar de estarem sitiados e sem mantimentos.

O de Kronstadt não será um levante organizado, como diziam os bolcheviques, já que o levante se deu dias antes do primeiro degelo, e, se esperando sublevar-se durante o mesmo, a repressão bolchevique se complicaria muitíssimo já que, ao se tratar de uma ilha, o único que a conectava com o continente era este imenso bloco de gelo, que ao estar em degelo impossibilitaria a passagem da infantaria vermelha para reprimir. Não se esperou este momento porque Kronstadt foi algo espontâneo, não algo organizado. Desta forma os bolcheviques puderam reprimir, e por isso não houve negociações entre ambos os setores. Trotsky via chegar este degelo, e ante a dúvida decidiu não demorar as coisas. Se Kronstadt se expandisse, a “revolução”, como entendia Trotsky, correria perigo.

No Décimo Congresso do Partido Comunista, levado a cabo em 8 de março de 1921, Lênin dirá: “por trás da revolta soma-se a figura familiar da guarda branca. Está perfeitamente claro que isto é obra dos socialistas revolucionários e das Guardas Brancas emigradas”. Isto é absurdo, já que entre 1918 e 1920, 40.000 marinheiros de Kronstadt haviam enfrentado aos generais brancos, colocando sempre a vida para defender a revolução.

No dia 15 de março, continuava o Décimo Congresso do Partido Comunista, e assim, 7 dias depois de sua primeira acusação aos marinheiros, Lênin dirá que “em Kronstadt eles não querem os guardas brancos, e tampouco querem nosso poder”, referindo-se aos marinheiros, mas não fez nada para impedir a matança que neste mesmo momento, enquanto ele se retratava, estava-se levando a cabo na ilha.

Tampouco se tratava de um levante de ucranianos infiltrados na frota de Kronstadt, já que apesar de existirem ucranianos em suas fileiras, também havia letões, estônios e finlandeses, mas o grosso da frota de Kronstadt era de origem russa, muitos eram de Moscou e de Petrogrado, onde se multiplicavam as revoltas contra o regime bolchevique e mais além das nações de origem, do primeiro ao último marinheiro apoiaram o levante porque o consideravam uma defesa frente ao que eles entendiam, com muita razão a meu entender, como uma ameaça de morte à revolução por parte da burocracia vermelha e da estatização dos soviets. Os marinheiros de Kronstadt falavam de seu levante como assinalando o início da “Terceira Revolução”.

No caso de Kronstadt, a imprensa bolchevique também usará o argumento utilizado na Ucrânia, dizendo que os revoltosos eram ricos detentores de terras. A falsidade deste argumento pode ser vista ao se observar a origem camponesa de Petrichenko e dos demais marinheiros, que no momento do levante tiveram suas famílias mortas de fome no campo, devido às requisições de grãos levadas a cabo pelo governo bolchevique.


Relação entre o movimento makhnovista e os acontecimentos de Kronstadt

Há dois pontos exclusivamente políticos e geográficos de relação entre o makhnovismo e o ocorrido em Kronstadt. Em primeiro lugar, quando termina o movimento makhnovista, em 1921, neste mesmo ano, começam os conflitos em Kronstadt. Em segundo lugar, muitos (ainda que não a maioria) dos marinheiros da frota de Kronstadt eram de origem ucraniana, motivo pelo qual o vivido na Ucrânia pode ter influído na hora de agitar os ânimos já exaltados da inconformada cidade de Kronstadt. O próprio Petrichenko, figura mais reconhecida do levante desta cidade, era ucraniano.

Por outro lado, há quem afirme que o fugitivo Nestor Makhno, ao ser expulso da Ucrânia, a caminho de seu exílio para a Polônia, e logo em direção a França, pode se contatar com os anarquistas que estavam em Kronstadt, desejando levar ao menos suas ideias à cidade dos marinheiros.

Também é sabido que tanto em toda a região da Ucrânia como na cidade dos marinheiros, ainda que mais na primeira que na segunda, atuaram numerosos grupos anarquistas que fomentaram a rebelião aberta contra o regime bolchevique. Mas não cabe aqui uma hipótese conspirativa, já que em ambas as regiões as revoltas foram espontâneas, e os anarquistas eram um dos tantos setores opositores aos bolcheviques.

Outra semelhança entre ambos os processos é que nas duas regiões Lênin enviou guardas vermelhas para reprimir, mas também mercenários estrangeiros (no caso da Ucrânia se enviam mercenários chineses e letões, em Kronstadt, chineses e bashireses) e em ambos são oficiais ex-czaristas os que reprimem.

Finalmente se dá outro fenômeno, os marinheiros de Kronstadt eram de origem camponesa, como os guerrilheiros da Ucrânia, e todos eles haviam presenciado ou escutavam os relatos de seus familiares sobre as requisições obrigatórias de grãos que sofriam por parte do exército bolchevique, entre outros abusos, para alimentar seus soldados e a burocracia crescente que vivia nas cidades. Em ambas as regiões vão se dando uma forma muito mais marcada ao nojo generalizado aos bolcheviques, em cidades como Petrogrado ou regiões como a Sibéria, que já haviam sofrido todo tipo de greves e revoltas ao longo de 1920 e 1921. Os projetos dos marinheiros de Kronstadt eram similares aos dos makhnovistas: descentralização, soviets livres, defesa dos primeiros ideais da revolução de outubro de 1917, desejo de finalizar o Comunismo de Guerra, etc.


Hipótese Final

A hipótese a se estabelecer é a seguinte: A revolução não é compatível com o Estado porque quando triunfa o novo Estado, a revolução vai morrendo. Para que o Estado “revolucionário” consiga se impor, a revolução deve se subordinar a ele, e as revoluções não são feitas por partidos ou homens de Estado, mas pelas grandes massas, que serão reprimidas pelo novo Estado caso não concordem com ele, do mesmo modo que o novo partido no poder era reprimido quando lutava por sua conquista.

É interessante ver como em 1923 Luiggi Fabbri previu, quase com perfeição, tudo o que logo iria se passar na Rússia; parece adiantar-se ao surgimento do stalinismo. De todas as formas haviam se passado já dois anos dos ocorridos em Kronstadt, e analisando este massacre, era previsível que se “a glória da revolução” era reprimida de forma selvagem, cabia esperar algo muito pior para o resto da população russa.


Conclusão

Finalmente, creio que fica claro que um grupo ou partido pode ter um discurso, ou uma ideologia muito progressista, mas que ao chegar ao poder começa a se esquecer de seus princípios e rapidamente o revolucionário vai dando lugar ao reacionário. O movimento se converte em algo estático, e quem se rebela ante a nova ordem passa a ser um “contra-revolucionário”. Fica claro aqui que não há nada mais direitista que os esquerdistas reprimindo aos anarquistas. Pelo analisado nestes casos creio que Estado e Revolução não podem conviver, para que um dos dois triunfe é necessário que o oposto morra. Por outro lado, se pode falar de “ditadura do proletariado”, “governo dos trabalhadores” e outros, mas sabemos que quem governa não trabalha, e quem trabalha não governa, e que se não há mudanças permanentes de papéis se gera uma burocracia parasita e a revolução morre. O socialismo não pode existir se os próprios espaços de poder não estão socializados, se todo o poder é um monopólio do Estado centralizado, de um partido, de uma vanguarda ou de um líder. No caso russo podemos observar como os soviets de operários, soldados e camponeses, logo se converteram em soviets de dirigentes bolcheviques, e logo aconteceria o mesmo com os sindicatos e outros espaços de poder.

Há que se recordar que a estatização dos sindicatos, a burocratização e cooptação dos soviets, a militarização das fábricas, o genocídio político e a perseguição e matança de opositores, junto à aplicação do taylorismo explorador nas fábricas tomado do modelo norte-americano; o exército e os alistamentos obrigatórios, somados a fome e a miséria de milhões de seres humanos devido à requisição obrigatória e violenta de grãos e produtos agrícolas, como também a incorporação de altos hierarcas militares ex czaristas ao Exército Vermelho, ou seja, esta gama de sintomas em nada revolucionários, já se dava entre 1918 e 1921, com Lênin e Trotsky na chefia, muito antes de Stalin. O que fez Stalin foi aumentar as cifras de atrocidades cometidas pelos outros dois lideres bolcheviques. Os métodos de Stalin não eram desconhecidos na Rússia, ao contrário, eram moeda corrente. Estes eram os líderes “revolucionários”, estes eram os “defensores” da classe trabalhadora, estes eram a “mudança” para o mundo. Teria de se começar a analisar seriamente quem eram na realidade os verdadeiros contra-revolucionários a serviço do capital.

Por outro lado: O que teria acontecido se o resto da Rússia se juntasse ao levante de Kronstadt? Até onde teria chegado a revolução se a deixasse ser? Por que o resto da Rússia não se juntou a Kronstadt? A resposta é simples: o novo Estado bolchevique, ao chegar ao poder, foi se apoderando dos meios de comunicação, então os mais usados eram a rádio e o jornal. Há que se levar em conta que os bolcheviques monopolizaram os meios de comunicação e proibiram e perseguiram os periódicos opositores. Através destes meios o novo Estado foi desinformando a população, a ponto de que a informação que chegava a Moscou e outras cidades era falsa, e em muitas cidades se soube das matanças de Kronstadt meses após terem ocorrido. Além disso, durante o período que vai de 1918 a 1921, a falta de comunicação entre as cidades era quase total devido à destruição das pontes, rotas e caminhos. Era muito difícil se deslocar a cidades vizinhas.

Ademais, o grosso das revoltas contra os bolcheviques estava se dando durante 1921, em Petrogrado, Moscou e Sibéria, lugares que também sofreram a repressão bolchevique. Os marinheiros de Kronstadt esperavam que estas cidades se juntassem a eles em seu levante, mas ao ocorrer o mesmo as demais revoltas já haviam sido sufocadas e não estavam conectadas entre si. Por isso o resto da Rússia não se somou a comuna de Kronstadt.

Além disso, fica claro que se a revolução russa sobrevivesse, e se a deixasse ser, as possibilidades de mudanças teriam sido infinitas. O impacto da revolução russa no mundo foi enorme, e enormes eram as expectativas. Se a Rússia mudasse, muitos outros lugares poderiam ter se contagiado.

Por isso, há que se alertar aos iludidos que atualmente esperam revoluções ou mudanças por parte de partidos das siglas mais diversas, porém com fins similares, que ainda hoje reivindicam a genocidas de operários e camponeses, como Lênin, Trotsky ou Stalin, que criticam genocidas como Videla (que encabeçou a matança e desaparecimento de 30.000 pessoas sob a última ditadura na Argentina, entre outras barbaridades), mas reivindicam genocidas como Trotsky, que matou mais gente que o detestável militar argentino, e não falamos de matanças de burgueses ou sacerdotes cúmplices, mas de matanças de operários e camponeses em nome do socialismo, justificando suas caças de opositores como “um erro”, quando atrás deste erro há um morto na realidade, e milhares de erros que custaram milhares de vidas.

Há que se recordar sempre estas matanças, além dos anos passados, já que com este argumento de que são coisas do passado então, teríamos de esquecer os Videla, Hitler e os milhões de judeus assassinados, os milhões de indígenas que a Igreja Católica matou na América, e a lista seria infinita. Se falamos de resgatar a memória, que se recupere toda a memória e não só as coisas “que não prejudiquem o partido”.

Por outro lado, tampouco há que se esquecer que, entre aqueles que atualmente falam da liberdade dos presos políticos na Argentina, estão os que justificam os presos políticos nos cárceres cubanos, onde ainda hoje há centenas de anarquistas presos que neste mesmo momento estão apodrecendo entre suas paredes. Como também apodreceram na Rússia ou na China sob regimes chamados “comunistas”. Estes esquerdistas estão contra este ou aquele governo, contra este exército ou contra esta polícia, não contra todo governo, contra todo exército ou contra toda a polícia. Não se dão conta de que o problema é todo o Estado, a autoridade. Eles querem sua própria polícia, seu próprio exército e seus próprios cárceres, ainda que coloquem a cor vermelha atrás. Também, se possível, querem sua própria ESMA, como a tiveram Lênin, Trotsky e Stalin em seus respectivos campos de concentração. Basta pensar no que seria de nós se algum destes tantos atuais partidos de esquerda tivesse amanhã o tão ansiado poder que buscam tomar hoje. Qualquer crítica a seu autoritarismo seria pontuada de “influência pequeno-burguesa ou contra-revolucionária bancada pelo imperialismo ianque”, e este livreto que está em suas mãos seria queimado, seu autor aprisionado pela futura polícia vermelha junto a amigos, familiares e simpatizantes, pelas suspeitas.

Ainda se pode ouvir um ou outro trotskista lamentar-se de que na Argentina já não exista mais o serviço militar obrigatório, já que, em sua lógica autoritária, o trotskista considera que o serviço militar obrigatório era uma boa possibilidade para que o povo conheça o manejo das armas para libertar-se no dia da revolução, como se a autolibertação devesse basear-se na imposição, exemplo de uma mentalidade jesuítica que justificou o serviço militar obrigatório durante a Revolução Russa, tratando de obrigar o camponês a somar-se a um “exército libertador”, que na realidade não tinha nada de tal, e que, em caso de negação, esse mesmo exército “libertador” o fuzilava. Forma peculiar de “libertar” o oprimido.

Tudo o que contamos nestas páginas é o que fizeram aqueles que encheram a boca falando de mais-valia, operários e socialismo, mas que apenas buscavam o poder. E tudo o que fizeram no passado, voltarão a fazer, caso tenham a possibilidade, que ainda hoje reivindicam estes maquiavélicos vermelhos, porque não criticam o poder em si, mas o criticam porque ainda não está em suas mãos, e quando o tiverem deixarão de criticá-lo, para conservá-lo sem que o tire das mãos, como bons conservadores que são.

Finalmente, a conclusão mais importante é que as revoluções se fazem de baixo, ou não são revoluções, que a revolução não é obra de vanguardas iluminadas, nem partidos, nem líderes. Nas revoluções atuam múltiplos setores, e todos devem ter a mesma possibilidade de tomar decisões. Estas não podem ser monopólio de um partido.

Um governo pode ser derrubado por outro que se atribui o mote de revolucionário, este “governo operário e camponês” pode requisitar a força a camponeses e militarizar as fábricas, pode matar milhares de operários e milhares de camponeses em seu nome. Um exército pode mudar de uniforme e agregar a cor vermelha, e somar a suas fileiras repressores de renome. Pode-se fazer isso e muito mais em nome de ideais e fraseologia mais abstratas, mas se a revolução e a possibilidade de mudança permanente não é um fim em si, não há mudança alguma, apenas paródias. Se não se é socialista no plano da prática cotidiana e do concreto, o socialismo nunca chegará. Se o poder não está socializado, o socialismo é uma mentira. O novo Estado pode tomar o poder e reprimir todos os que não concordem com ele, mas, por favor, então já não falemos de revolução.

Juan Manuel Ferrario


Bibliografia

- Anônimo. “El anarquismo insostenible”. El anarquismo insurreccional en Rusia a inicios del siglo XX. Ediciones insurgentes. Editado em novembro de 2002. Se trata de uma resposta ao livro “La outra alma de la revolución”, de Paulo Avrich, escrito em 1978.
- Archinoff, Pedro. “Historia del movimiento machnovista” (1918-1921). Editorial Argonauta. Bs.As. 1926.
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- Rocker, Rudolf. “El camino de pasión de Zensl Müsham” (Treze anos prisioneira de Stalin). Ediciones S.ª I. (Não tem ano de edição).
- Stepniak. “La Rusia Subterránea”, Editorial Americalee, Bs.As. 1945.
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- Williams, Chester S. “Crimenes soviéticos”. Editorial Agora. Bs.As. 1957


Fontes

- Cartas de Kropotkin a Lenin, escritas em 1919 incluídas na obra “ideário anarquista”, Editorial Longseller. Bs.As. 2000. - Transcrições de notas jornalísticas aparecidas em 1921 com os ocorridos de Kronstadt, nos diários “Pravda”, “New York Times” e “New York Tribune”, feitas pelo historiador Paul Avrich

Fonte Literária

- Gori, Máximo. “La Madre”. Editores Mexicanos Unidos. 1992.

Notas Jornalísticas

- “Recepciones de la Revolución Rusa, el caso de los anarcobolcheviques”, periódico “En la Calle”, número 51, maio de 2004. Bs.As.



O Mito do Partido Símbolo da Escravidão Moderna


Nota: Este texto foi reunido e publicado pela primeira vez pela revista anarquista “RUTA”, da Venezuela, em seu número 15 (setembro de 1973), e reeditado por Ofícios Vários, integrante da FORA em Tucumán, na edição que usamos para a tradução. Nesta compilação publicamos apenas a primeira parte, de autoria da Federação de Estudantes Libertários. A segunda parte, de autoria do grupo Orobon Fernandez, Espanha, pode ser encontrada na publicação acima citada, em espanhol. Se tiver interesse, entre em contato!


O Mito do Partido

(Primeira Parte) - Federação de Estudantes Libertários


A Revolução não é obra dos Partidos

As revoluções de tipo social não são efetuadas por “partidos”, grupos ou equipes: acontecem como resultado de forças históricas e contradições que põem em atividade amplos setores da população. Traduzem-se não só – como afirma Trotsky – porque as “massas” percebem como insuportável a sociedade existente, mas também como consequência da tensão entre o atual e o possível, entre “o que é” e “o que poderia ser”. A miséria por si só não produz revoluções. A maioria das vezes causa uma desmoralização inútil ou, o que é pior, a luta privada e pessoal para sobreviver.

A Revolução Russa de 1917 gravita na consciência de todos como um pesadelo, porque foi em grande parte a consequência de “condições insuportáveis” de uma guerra imperialista devastadora. Os sonhos nela contidos foram pulverizados por uma guerra civil ainda mais sangrenta, pela fome e traição. O que emergiu da revolução foi a ruína, não de uma velha sociedade, mas das esperanças de construir uma nova. A Revolução Russa falhou lamentavelmente ao substituir o czarismo pelo capitalismo de Estado. Os bolcheviques foram as trágicas vítimas de sua ideologia e em grande número pagaram com suas vidas durante a purgação dos anos trinta. Buscar adquirir sabedoria profunda deste frustrado ensaio revolucionário é ridículo. O que podemos aprender das revoluções do passado é o que todas elas têm em comum, e suas profundas limitações, se comparadas com as enormes possibilidades que agora se abrem ante nós.

O traço mais surpreendente das revoluções passadas é que se iniciaram espontaneamente. Tanto quando se examinam os precedentes da Revolução Francesa de 1789, como quando se estuda a de 1848, na Comuna de Paris, a revolução russa de 1905, a queda do czarismo em 1917, a revolução húngara de 1956, ou a greve geral francesa de 1968, as fases iniciais são geralmente idênticas: um período de fermentação que se transforma espontaneamente em uma insurreição popular. Que esta triunfe ou não depende de sua resolução ou de se o Estado pode empregar com eficácia sua força armada, ou seja, se as tropas podem ser lançadas contra o povo.

O “partido glorioso”, lá aonde existe, vai quase invariavelmente atrás dos acontecimentos. Em fevereiro de 1917 a organização bolchevique de Petrogrado se opôs à declaração de greve, precisamente no momento em que a revolução estava destinada a expulsar o czar. Felizmente, os trabalhadores ignoraram a “direção” bolchevique e proclamaram a greve em todas as partes. Nos acontecimentos que se seguiram, ninguém se viu mais surpreendido pela revolução que os partidos “revolucionários”, incluindo os bolcheviques. O recorda o líder bolchevique Kayurov com estas palavras: “Não houve em absoluto nenhuma diretriz do partido... o comitê de Petrogrado havia sido detido e o representante do Comitê Central, camarada Shliapnikov, era incapaz de dar iniciativa alguma para o dia seguinte”. O que, por acaso, foi um fato afortunado: antes da detenção do comitê de Petrogrado, a avaliação que este fazia da situação e de seu papel nela era tão deplorável, que, ao seguir os trabalhadores suas orientações, é duvidoso que a revolução se tivesse produzido quando o fez.


França 1968

Poderíamos apresentar histórias idênticas nas revoluções que precederam a de 1917 e nas que seguiram. Citaremos somente a mais recente: a rebelião estudantil e a greve geral na França durante maio/junho de 1968. Existe uma clara tendência de se esquecer que cerca de uma dezena de partidos de tipo bolchevique, “altamente centralizados”, existia em Paris neste momento. Raras vezes se menciona que cada um destes grupos de “vanguarda” depreciava a rebelião estudantil de 7 de maio, quando as lutas na rua se iniciaram realmente. Os trotskistas da JCR foram uma notável exceção, se bem que se limitaram a se deixar levar pelos acontecimentos, seguindo no substancial as diretrizes do Movimento 22 de Março. Até 7 de maio, todos os grupos maoistas criticaram a revolta estudantil como algo periférico e sem importância. Os trotskistas da FER o consideraram como “aventureiro” e trataram de abandonar as barricadas aos estudantes em 10 de maio; o partido comunista, por suposto, teve um papel de completa traição. Encontrava-se cativado pelo movimento popular, apesar de estar muito longe de dirigir-lhe. É sarcástico que a maioria destes grupos bolcheviques se deu a tarefa de manobrar, sem pudor algum, nas assembleias estudantis de Sorbona, em um esforço por controlá-las, e introduziram nelas elementos de discórdia que acabaram por desmoralizar todo o conjunto. Depois, para completar o sarcasmo, estes grupos bolcheviques se puseram a tagarelar sobre a necessidade de uma “direção centralizada”, quando o movimento entrou em colapso – um movimento que se produziu muito apesar de suas diretrizes e, em ocasiões, em oposição a elas.

As revoluções e rebeliões de alguma importância, não apenas revelam uma fase esplendidamente anárquica como tendem também, espontaneamente, a criar suas próprias formas de autogoverno revolucionário. As seções parisienses de 1793-94 foram as mais notáveis formas de autogoverno criadas por qualquer revolução social na história. Uma forma mais conhecida: os conselhos, ou “soviets” estabelecidos pelos trabalhadores de Petrogrado em 1905. Apesar de menos democráticos que as seções, o conselho estava destinado a aparecer anos mais tarde em algumas revoluções. Entretanto, outra forma de autogoverno, ou autogestão revolucionária, foi os comitês de fábrica estabelecidos pelos anarquistas na Revolução Espanhola de 1936. Finalmente, as seções reapareceram nas assembleias de estudantes e nos comitês de ação, durante a revolta e a greve geral de Paris, em maio-junho de 1968.

Chegando neste ponto devemos perguntar que papel desempenha o “partido revolucionário” em todos estes acontecimentos. Para começar, temos visto que tende a ter uma função inibitória, de forma alguma de “vanguarda”. Ali onde existe ou exerce influência tende a refrear o fluxo dos acontecimentos, e não a “coordenar” as forças revolucionárias. Isto não é casual. O partido está estruturado conforme as linhas hierárquicas que refletem a mesma sociedade a que pretende se opor. Apesar de suas pretensões teóricas, é um organismo burguês, um Estado em miniatura, com um aparato e um quadro cuja função é tomar o poder, não dissolvê-lo. Acomodado no período pré-revolucionário, assimila todas as formas técnicas e a mentalidade da burocracia. Seus membros estão educados na obediência, nos conceitos pré-formados de um dogma rígido, e ensinados a reverenciar a liderança. Esta liderança ou função dirigente de partido, por sua vez, se baseia em costumes nascidos no comando, na autoridade, na manipulação e hegemonia. Esta situação piora quando o partido participa de eleições parlamentares. Devido às exigências das campanhas eleitorais, o partido acaba por se modelar totalmente conforme as formas existentes e inclusive adquire os adereços externos do partido eleitoral. A situação se deteriora ainda mais quando o partido adquire grandes meios de propaganda, custosos quartéis generais, numerosos periódicos controlados rigidamente pela cúpula, e um “Aparato” pago; em resumo, uma burocracia com interesses criados.


A Hierarquia da autoridade

A medida que o partido cresce, a distância entre a direção e os homens da base aumenta fatalmente. Os líderes não somente se convertem em “personagens” como perdem contato com a situação viva nas fileiras abaixo. Os grupos locais, que conhecem sua situação de cada momento muito melhor que qualquer líder remoto, se veem obrigados a subordinar sua visão direta às diretrizes de cima.

Os dirigentes, que carecem de todo conhecimento direto dos problemas locais, respondem rotineira e cautelosamente. Reclama-se maior amplitude de visão e justifica-se maior “competência teórica” própria, a competência do líder tende a diminuir quanto mais ascende na hierarquia de autoridade. Quanto mais nos aproximamos do nível onde se tomam as decisões “reais”, melhor observamos o caráter conservador do processo que elabora as decisões, quanto mais burocráticos e distantes são os fatores que entram em jogo tanto mais as considerações de prestígio e o entrincheiramento substituem a criação, a imaginação e a dedicação desinteressada aos objetivos revolucionários.

O resultado é que o partido se faz menos eficiente de um ponto de vista revolucionário, quanto mais busca a eficiência na hierarquia, nos quadros, e na centralização. Mesmo que todos sigam o passo, as ordens costumam ser em geral equivocadas, sobretudo quando os acontecimentos começam a fluir rápido e a tomar rumos inesperados, acontecendo em todas as revoluções. O partido só é eficiente em um sentido: no de moldar a sociedade de acordo com sua própria imagem hierárquica se a revolução tem êxito. Cria a burocracia, a centralização e o Estado. Incita as condições sociais que justificam este tipo de sociedade. Daí que, ao invés de desaparecer progressivamente, o Estado controlado pelo “partido glorioso”, preserva as condições essenciais de que “necessita” a existência de um Estado, e de um partido para “guardá-lo”.

Por outro lado, este tipo de partido é extremamente vulnerável em tempos de repressão. A burguesia não tem senão que lançar mão contra a direção para destruir todo o movimento. Com os líderes na prisão ou desaparecidos, o partido fica paralisado. Os obedientes aderidos não têm a quem obedecer e tendem a se dispersar. A desmoralização sobrevém rapidamente. O partido se decompõe, não apenas por sua atmosfera, como também pela escassez de recursos internos.

As afirmações anteriores não são meras hipóteses ou juízos, mas o resumo histórico de todos os partidos marxistas de massa do século passado – os social-democratas, os comunistas, e o partido trotskista de Ceilán, o único partido de massas em seu gênero. Reivindicar que estes partidos deixaram de interpretar seriamente os princípios marxistas não basta para impedir outra pergunta: por que este fato se deu pela primeira vez? O caso é que estes partidos degeneraram porque estavam estruturados segundo os modelos burgueses. Levavam o germe da degeneração implícito desde seu nascimento.

O partido bolchevique escapou a esta sorte entre 1904 e 1917 por uma razão: foi uma organização ilegal durante a maioria dos anos que conduziram à revolução. O partido se via continuamente destruído e reconstruído, de forma que, enquanto não tomou o poder, não pode se cristalizar em uma máquina plenamente centralista, burocrática e hierárquica. Por outro lado, se encontrava minado pelas facções. Esta intensa atmosfera de facção persistiu ao longo de 1917, até a guerra civil, apesar da direção do partido ser extremamente conservadora, um traço que Lênin teve de combater naquele ano, primeiro para voltar a orientar o Comitê Central contra o governo Provisório (o famoso conflito sobre a tese de Abril), e logo para empurrar aquele organismo à insurreição em outubro.

Em ambos os casos teve de ameaçar com demissão do Comitê Central e levar seus pontos de vista “aos níveis mais baixos do partido”.


Disputas entre as facções

Em 1918 as disputas entre facções adquiriram tal gravidade acerca do tratado de Brest-Litovsk, que o partido bolchevique esteve a ponto de cindir em dois partidos comunistas irreconciliáveis. Os grupos da Oposição Bolchevique, assim como os democratas Centralistas e a Oposição Operária, travaram duras lutas dentro do partido bolchevique ao longo de 1919 e 20, sem falar dos movimentos de oposição que se desenvolveram no Exército Vermelho devido à tendência de Trotsky pela centralização. A completa centralização do Partido Bolchevique – a realização da “unidade leninista”, como seria denominada mais tarde – não se efetuou até 1921, quando Lênin conseguiu persuadir no décimo congresso do partido da necessidade de expulsar as facções. A esta altura, a maioria dos guardas brancos havia sido esmagada e os intervencionistas haviam retirado suas tropas da Rússia.

Não nos cansaremos de sublinhar que os bolcheviques tenderam a centralizar de tal modo seu partido, que cada vez mais ficaram isolados da classe operária. Esta relação foi raramente investigada nos círculos bolcheviques dos últimos dias de Lênin, e este foi suficientemente honesto para reconhecê-la. A Revolução Russa não se limita à história do partido bolchevique e seus seguidores. Sob a marca dos acontecimentos oficiais descritos pelos historiadores soviéticos, há outros mais essenciais, como o movimento espontâneo dos trabalhadores e camponeses revolucionários que posteriormente se enfrentariam com violência a burocracia policialesca dos bolcheviques. Ao cair o czarismo, em fevereiro de 1917, os trabalhadores estabeleceram espontaneamente comitês em quase todas as fábricas da Rússia e manifestaram um crescente interesse em intervir na direção das empresas; em junho de 1917, na conferência dos comitês de fábrica de toda a Rússia, celebrada em Petrogrado, os trabalhadores pediram “a organização de um estreito controle de trabalho sobre a produção e a distribuição”. As conclusões desta conferência raras vezes são mencionadas nos informes leninistas sobre a Revolução Russa, apesar de a própria conferência ter se alinhado com os bolcheviques. Trotsky, que descreve os comitês de fábrica como “a mais direta e genuína representação do proletariado de todo o país”, toca apenas superficialmente no tema nos três volumes de sua história da revolução. Entretanto, estes organismos espontâneos de autogoverno eram tão importantes que Lênin, desconfiando conseguir o controle sobre os conselhos naquele verão de 1917, estava disposto a abandonar o lema “todo o poder para os soviets” para o de “todo o poder para os comitês de fábrica”. Esta posição teria empurrado os bolcheviques a uma atitude totalmente anarco-sindicalista, anda que seja duvidoso que pudessem permanecer com ela muito tempo.


Fim do controle operário

Ao ocorrer a revolução de outubro, os comitês de fábrica se apoderaram dos centros de trabalho, expulsando deles a burguesia e estabelecendo um controle completo sobre o trabalho. Ao aceitar o controle operário, o famoso decreto de Lênin de 14 de novembro não fazia outra coisa que reconhecer um fato consumado; os bolcheviques não se atreviam a se opor aos trabalhadores tão cedo, mas começaram a solapar o poder dos comitês de fábrica. Em janeiro de 1918, a dois escassos meses de “decretar” o controle operário, os bolcheviques transferiram a administração das fábricas à burocracia dos sindicatos. A história de que os bolcheviques experimentaram pacientemente o controle operário até que este demonstrou seu caráter ineficaz e caótico, é um mito. A “paciência” dos bolcheviques só durou umas semanas. Não se limitaram a fim ao controle direto dos trabalhadores algumas semanas depois do decreto de novembro, como puseram fim também, sem demora, ao controle sindical. Até a primavera de 1918, praticamente toda a indústria russa se encontrava colocada sob formas burguesas de administração. Lênin afirmou sumariamente que “a revolução exige, precisamente no interesse do socialismo, que as massas devem obedecer cegamente a única vontade dos dirigentes do processo de trabalho”. O controle operário foi denunciado não só como “caótico” e “impraticável”, mas também como “pequeno-burguês”.

Osinsky, da Esquerda Comunista, denunciou amargamente estas falsas declarações e advertiu o partido: “O socialismo e a organização socialista deve ser estabelecida pelo próprio proletário, ou não se estabelecerá de modo algum: em seu lugar se instalará outra coisa: o capitalismo de Estado”. Em nome dos “interesses do socialismo” o partido Bolchevique afastou o proletariado de tudo aquilo que havia conquistado com seu esforço e iniciativa. O partido não coordenou a revolução e nem a dirigiu: simplesmente, a dominou. Primeiro o controle sindical, foram substituídos por uma complexa hierarquia tão monstruosa como qualquer outra dos tempos pré-revolucionários. Como demonstrariam os anos seguintes, a profecia de Osinsky se converteria em amarga realidade.

O problema de quem prevaleceria – o partido bolchevique ou as massas russas – não se limitava de modo algum às fábricas. O desenlace se deu tanto nas comarcas rurais como nas cidades. Uma guerra camponesa espontânea havia encontrado respaldo no movimento dos trabalhadores. Contrariamente ao afirmado pelos informes leninistas oficiais, a rebelião agrária não limitou seus fins a redistribuição da terra em lotes privados. Na Ucrânia, os camponeses influenciados pelas milícias anarquistas de Nestor Makhno, estabeleceram uma multidão de comunas rurais sob o lema comunista de: “De cada um segundo suas forças; a cada um segundo suas necessidades”. Em outros lugares, no norte e na Ásia Soviética, alguns milhares destes organismos foram estabelecidos em parte sob a iniciativa dos socialistas revolucionários, e em grande medida como consequência do tradicional impulso coletivista que emergia da comuna rural.

Importa pouco se estas comunas eram ou não numerosas, ou se incluíam grande número de camponeses. O transcendental é que se tratava de autênticos organismos populares, o núcleo de uma moral e um espírito social muito superiores aos desumanizantes valores da sociedade burguesa.

Os bolcheviques acolheram com reservas desde o primeiro momento a estes organismos, e inclusive em ocasiões os condenaram. Para Lênin, o preferido, a forma mais “socialista” de empresa agrícola era a representada pela granja estatal: de modo literal, uma fábrica agrícola em que o Estado possuía a terra, os equipamentos de trabalho, e designava gerentes que arrendavam camponeses por um salário base. Aparecem nestas atitudes com o controle operário e as comunas agrícolas o espírito e a mentalidade essencialmente burguesas que penetravam no partido bolchevique, espírito e mentalidade que transcendiam não apenas de suas teorias, como de seus métodos característicos organizacionais. Em dezembro de 1918, Lênin lançou um ataque contra as comunas sob o pretexto de que os camponeses eram “forçados” a entrar nelas. Na verdade, pouca ou nenhuma coerção foi utilizada para organizar aquelas formas comunistas de autogoverno. Assim, Robert G. Wesson, que estudou detalhadamente as comunas soviéticas, conclui: “aqueles que entraram nas comunas o fizeram em sua grande maioria por vontade própria”. As comunas não foram suprimidas, mas se limitou seu desenvolvimento, até que Stalin as integrou na coletivização forçosa de finais dos anos vinte e princípios dos trinta.

Em 1920 os bolcheviques haviam se isolado eles próprios da classe operária e camponesa russa. A eliminação do controle operário, a supressão da Makhnovitchina, a repressiva atmosfera do país, a inflada burocracia, a esmagadora pobreza material herdada dos anos de guerra civil, tudo isso tomado em seu conjunto, originou uma profunda hostilidade para com o governo bolchevique. Com o fim das hostilidades um novo movimento surgiu das profundezas da sociedade russa reclamando uma “terceira revolução”, não uma restauração do passado, mas o apressado desejo de concretizar os objetivos da liberdade, tanto econômica como política, que havia reunido as massas ao redor do programa bolchevique de 1917. O novo movimento encontrou sua forma mais consciente no proletariado de Petrogrado e nos marinheiros de Kronstadt. Também conseguiu expressão no partido: o desenvolvimento de tendências anticentralistas e anarco-sindicalistas entre os bolcheviques até o ponto de que um bloco de grupos de oposição, orientados ao ponto neste sentido, alcançou 124 votos em uma conferência provincial de Moscou, contra 154 partidários do Comitê Central.


A Rebelião de Kronstadt

Em 2 de março de 1921, os “marinheiros vermelhos” de Kronstadt se sublevaram em rebelião aberta, levantando a bandeira da “Terceira Revolução dos Trabalhadores”. O programa de Kronstadt reclamava eleições livres para os soviets, liberdade de expressão, liberdade para os anarquistas e os partidos socialistas de Esquerda, sindicatos livres, e libertação de todos os presos pertencentes aos partidos socialistas.

As histórias mais vergonhosas foram fabricadas pelos bolcheviques para explicar esta rebelião, as quais seriam reconhecidas nos anos posteriores como mentiras infames. A rebelião foi qualificada como uma “conspiração de guardas brancos”, apesar de a maioria dos membros do partido comunista de Kronstadt ter se unido aos marinheiros – precisamente como comunistas – denunciando os dirigentes do partido como traidores da revolução de outubro. Como afirma Robert Vincent Daniels em seu estudo sobre os movimentos bolcheviques de oposição: “os comunistas da época eram, na verdade, tão pouco confiáveis... que o governo não tinha confiança neles”.

O principal corpo de tropas empregado foram os chequistas e os oficiais cadetes das escolas militares do Exército Vermelho. A investida final de Kronstadt foi dirigida pelo Estado Maior do Partido Comunista. Um amplo grupo dos delegados assistentes do décimo Congresso do Partido foi enviado precipitadamente de Moscou com este fim. Tão fraco era o regime internamente que a elite teve de fazer este trabalho repugnante.

Ainda mais significativo que a rebelião de Kronstadt foi o movimento grevista que se desenvolveu entre os trabalhadores de Petrogrado, um movimento que desencadeou o levante dos marinheiros. As histórias leninistas não contam este crítico e importante acontecimento. As primeiras greves estouraram na fábrica de Troubotchine em 23 de fevereiro de 1921. Em poucos dias o movimento se propagou de uma fábrica a outra, até que no dia 2 de fevereiro foram à greve os famosos oficinas de Putilov, “o crisol da revolução”. Os trabalhadores expressaram não só reivindicações econômicas, como também claras exigências políticas, adiantando-se às que reclamariam poucos dias depois os marinheiros de Kronstadt. Em 24 de fevereiro os bolcheviques declararam o “estado de sítio” em Petrogrado e detiveram os líderes operários, reprimindo as manifestações destes com os oficiais cadetes. O fato é que os bolcheviques fizeram algo mais que reprimir um “motim de marinheiros”: esmagaram com a força armada a própria classe trabalhadora. É neste momento que Lênin reclamou a extirpação das facções no Partido Comunista russo. A centralização do partido foi agora completada, e o caminho estava preparado para Stalin.

Temos discutido estes acontecimentos porque conduzem à conclusão que nossas últimas fornadas de marxistas-leninistas querem iludir: o Partido Bolchevique alcançou seu grau máximo de centralização nos dias de Lênin, não para levar a cabo uma revolução ou para suprimir o movimento contra-revolucionário da Guarda Branca, mas para levar a cabo uma contra-revolução própria contra as mesmas forças que pretendiam representar. As facções foram proibidas e se criou um partido monolítico, não para evitar uma “restauração capitalista”, mas para conter o movimento das massas operárias em direção a democracia soviética e a liberdade social. O Lênin de 1921 se opôs ao Lênin de outubro de 1917.

Daqui por diante Lênin flutuou. Este homem, que mais que nenhum outro, tratou de basear os problemas de seu partido nas contradições sociais, encontrou a si próprio tentando na última hora parar a burocratização criada por ele mesmo. Não há nada mais patético e trágico que o Lênin dos últimos anos. Paralisado por um corpo simplista de fórmulas marxistas, não lhe ocorreram melhores contramedidas que as de tipo organizacional. Propõe a Inspeção de Operários e Camponeses para corrigir as deformações burocráticas no partido e no Estado, e aquela inspeção caiu nas mãos de Stalin, que, com pleno direito, a levou a seu maior esplendor burocrático. Lênin sugeriu depois a redução da Inspeção de Operários e Camponeses e sua absorção na Comissão de Controle. Defendeu do mesmo modo a ampliação do Comitê Central. Estas são as soluções: ampliar este organismo, absorver este naquele, este terceiro organismo se modifica ou se substitui por outro. Este extraordinário ballet de formas organizacionais continua crescendo até sua morte, como se o problema pudesse ser resolvido por meios organizacionais. Como afirma Mosche Lewin, um admirador de Lênin: O líder bolchevique “tratava os problemas de governo como um executivo de mente rigidamente ‘leninista’. Não aplicava métodos de análise social ao governo e se contentava em entendê-lo simplesmente em termos de métodos organizacionais ou técnicos”.


Os meios substituem os fins

Se é certo que nas revoluções burguesas “a fraseologia modifica o conteúdo”, na revolução bolchevique as formas substituem o conteúdo. Os soviets substituíram os trabalhadores e seus comitês de fábrica, o Partido substituiu os soviets, o comitê central substituiu o Partido e o Birô Político o Comitê Central. Em resumo, os meios substituíram os fins. Esta incrível substituição do conteúdo pelas formas é um dos traços mais característicos do marxismo-leninismo. Na França, durante os acontecimentos de maio-junho de 1968, todas as organizações bolcheviques se prepararam para destruir a assembleia estudantil de Sorbona, para aumentar sua influência e recrutar adeptos. Sua principal preocupação não se referia a revolução ou as autênticas formas sociais criadas pelos estudantes, mas ao crescimento de seus próprios partidos. Nos Estados Unidos ocorreu algo assim e uma situação semelhante se dá entre os grupos estudantis.

Somente uma força poderia se opor ao crescimento da burocracia na Rússia: uma força social. Se o proletariado e o campesinato russos tivessem conseguido desenvolver o campo na autogestão através de comitês de fábrica, comunas rurais e soviets livres, a história do país poderia ter dado uma reviravolta radical. Não há dúvida de que o fracasso da revolução socialista na Europa depois da Primeira Guerra Mundial levou a um isolamento da revolução na Rússia. A pobreza material da Rússia, com a pressão do mundo capitalista circundante ia claramente contra o desenvolvimento de uma sólida sociedade libertária, realmente socialista. Mas de modo algum era necessário que a Rússia tivesse que se desenvolver conforme as linhas do capitalismo estatal. Contrariando as previsões de Trotsky e Lênin, a revolução foi destruída por forças internas, não pela invasão dos exércitos estrangeiros. Se o Movimento, surgindo de baixo, tivesse continuado na linha dos primitivos objetivos da revolução, em 1917, uma estrutura social de diversas faces poderia ter se desenvolvido sobre a base do controle operário da indústria, e uma livre economia inspirada pelos camponeses, e no contraste vivo de ideias, programas e grupos políticos. Enfim, a Rússia não se teria visto aprisionada entre as correntes do totalitarismo, e Stalin não teria envenenado o movimento revolucionário, preparando o caminho para o fascismo e a Segunda Guerra Mundial.

O desenvolvimento do partido bolchevique fazia presumir estas consequências, deixando de lado as intenções de Lênin e Trotsky. Ao destruir o poder dos comitês de fábrica na indústria, ao esmagar o movimento makhnovista, aos operários de Petrogrado, aos marinheiros de Kronstadt, os bolcheviques garantiam praticamente o triunfo da burocracia russa sobre a sociedade russa. O partido centralizado – uma instituição completamente burguesa – se converteu no refúgio da contra-revolução em suas formas mais sinistras. Ou seja, a contra-revolução disfarçada, implícita na própria bandeira e na terminologia de Marx. Finalmente, o que os bolcheviques suprimiram em 1921 não era uma “ideologia” ou uma “conspiração das guardas brancas”, mas uma luta elementar do povo russo para libertar-se de suas correntes e assumir o controle sobre seu destino. Para a Rússia isto significou o pesadelo da ditadura de Stalin: para a geração dos anos trinta significa o horror do fascismo e a traição dos partidos comunistas na Europa e nos Estados Unidos.

Fim da primeira parte
Federação de Estudantes Libertários


Por que a Revolução não Realizou suas Esperanças - Emma Goldman

A razão do fracasso da Revolução russa, conduzida como foi pelo partido comunista, é agora clara. O poder político do partido, organizado e centralizado no Estado, procurou se manter por todos os meios à sua disposição. As autoridades centrais tentaram conduzir as atividades populares a uma via que correspondesse aos projetos do partido. O único objetivo desse último era reforçar o Estado e estabelecer seu monopólio sobre a atividade econômica, política e social, e todas as formas de manifestação intelectual. A Revolução tinha um objetivo bem diferente; seu caráter essencial era a negação da autoridade e da centralização. Ela lutava para ampliar o campo na iniciativa do proletariado e multiplicar as formas do esforço individual e coletivo. Os objetivos e tendências da Revolução eram diametralmente opostos àqueles do partido político dirigente.

Igualmente opostos eram os métodos da Revolução e do Estado. Os da Revolução estavam impregnados do espírito da própria revolução, quer dizer, procuravam emancipar-se de todas as forças opressivas; em resumo, estavam transformados pelos princípios libertários. O método do Estado, ao contrário – do Estado bolchevique, como de qualquer outro governo – estava baseado na coerção, que, lógica e necessariamente, desenvolveu-se em violência sistemática, opressão e terrorismo. Assim, duas tendências opostas lutavam pela supremacia: o Estado bolchevique contra a Revolução. Esta luta era um combate em que um dos dois devia perecer. As duas tendências, contrárias em seus objetivos e métodos, não podiam trabalhar em comum acordo: o triunfo do Estado foi o fracasso da Revolução.

Seria, entretanto, um erro pretender que a não-realização dos objetivos da Revolução deveu-se apenas às práticas dos bolchevistas. Fundamentalmente, foi o resultado dos princípios e métodos do bolchevismo. Foram os princípios autoritários do Estado que sufocaram o espírito libertário e as aspirações rumo à liberdade. Qualquer outro partido político que tivesse estado no poder, o resultado teria sido completamente idêntico. Não foram os bolchevistas que mataram a Revolução, mas sim a ideia bolchevista. Foi o marxismo ou, em resumo, o sectarismo governamental. Somente a compreensão dessas forças ocultas, subterrâneas, que esmagaram a Revolução, pode lançar luz sobre a verdadeira lição deste evento que agitou o mundo inteiro. A Revolução russa refletiu, em pequena escala, a luta secular entre os dois princípios: libertário e autoritário. O progresso não consiste na aceitação dos princípios de liberdade contra os de coerção? A Revolução russa foi uma tentativa libertária, vencida pelo Estado bolchevista, pela vitória temporária da ideia governamental e reacionária.

Esta vitória deve-se a um certo número de causas, das quais a principal, entretanto, era a situação retardatária da indústria russa, como muitos escritores ressaltaram. A cultura intelectual do povo russo foi também outra causa que, se lhe dava vantagens sobre os povos vizinhos contaminados pela política, tinha também grandes desvantagens. A Rússia estava preservada da imundície e da corrupção política e parlamentar. Por outro lado, esta ignorância comportava a inexperiência no jogo político e uma fé ingênua no poder milagroso do partido que gritava mais alto e fazia mais promessas. Esta crença no poder governamental serviu para acorrentar o povo russo ao partido comunista, antes que as grandes massas tivessem podido notar que o jugo fora de novo colocado sobre seus ombros.

O princípio libertário foi poderoso nos primeiros dias da Revolução, a necessidade de livre opinião exprimindo-se em todos os lugares. Mas quando a primeira onda de entusiasmo deu lugar às necessidades prosaicas da vida cotidiana, foi preciso grande firmeza de convicção para manter ardente a chama da liberdade. Houve apenas, comparado à vasta extensão da Rússia, um punhado de homens, os anarquistas, que empreenderam esta tarefa. Mas seu número era pequeno, e sua propaganda, sufocada sob o regime czarista, não pudera ainda dar seus frutos. O povo russo, ainda que parcialmente anarquista por instinto, estava ainda muito pouco familiarizado com os verdadeiros princípios e métodos libertários para tentar aplicá-los positivamente.

A maioria dos anarquistas russos estava, infelizmente, ainda mais preocupada com a atividade limitada dos grupos e com o esforço individual do que com uma ação coletiva e social. Os anarquistas – os historiadores probos do futuro o admitirão – representaram um papel muito importante na Revolução russa, um papel muito mais fecundo e significativo do que seu pequeno número poderia fazer supor. Entretanto, a sinceridade e a honestidade obrigam-me a constatar que seu trabalho teria sido de valor infinitamente mais prático se eles estivessem mais bem organizados e preparados para guiar as energias desamparadas do povo no sentido de uma reorganização social sobre as bases libertárias.

Mas o insucesso dos anarquistas na Revolução russa – no sentido acima indicado – não significa de modo algum o fracasso do ideal libertário. Ao contrário, a Revolução russa demonstrou incontestavelmente que a ideia de Estado, o socialismo de Estado, em todas as suas manifestações (econômica, política, social, educativa), fracassou por completo. Ela é a antítese da revolução.

Permanece verdadeiro, como em todo o tipo de progresso, que apenas o espírito e o método libertários podem conduzir os homens a dar um passo adiante em sua luta por uma vida melhor, mais bela e mais livre. Aplicadas às grandes revoltas sociais conhecidas sob o nome de revolução, esta tendência é tão fecunda em resultados quanto em um período de processo da evolução ordinária. O método autoritário jamais obterá sucesso na história, como mostrou a Revolução russa. O espírito humano não descobriu outro princípio além do libertário, pois o homem pronunciou a mais elevada palavra de sabedoria quando disse que a liberdade era a mãe da ordem e não sua filha. Apesar de todas as seitas e partidos políticos, nenhuma revolução pode resultar em verdadeiro e permanente sucesso se não vetar toda tirania e centralização, e se não se esforçar em fazer completamente uma real reclassificação de todos os valores econômicos, sociais e intelectuais. Não uma simples substituição de um partido político por outro à frente do governo; não mascarando a autocracia com fórmulas proletárias; não a ditadura de uma nova classe no lugar de uma antiga; não uma comédia política qualquer, mas a total derrubada de todos esses princípios autoritários servirá à revolução.

Sobre o terreno econômico, essa transformação deve ser feita pelas mãos das massas industriais: estas últimas podendo escolher entre o Estado industrial e o anarco-sindicalismo. No primeiro caso, a ameaça contra a reconstrução da nova estrutura social desenvolverse-á com o Estado político. Isto se tornaria um peso morto, entravando o crescimento das novas formas de vida. Por esta razão, o sindicalismo (ou o industrialismo) é suficiente para realizar a tarefa, assim como proclamam seus partidários. Somente quando o espírito libertário tiver penetrado na organização econômica dos trabalhadores as múltiplas energias criadoras do povo poderão manifestar-se, e a revolução será defendida e salvaguardada.

Somente a livre iniciativa e a participação popular nos interesses da revolução poderão impedir que os terríveis erros cometidos na Rússia reproduzam-se. Por exemplo, com combustível disponível a uma centena de quilômetros de Petrogrado, não havia nenhuma razão para que essa cidade sofresse frio, se as organizações de trabalhadores tivessem podido exercer livremente sua iniciativa para o bem-estar de todos. Os camponeses da Ucrânia teriam podido cultivar suas terras se tivessem tido acesso aos implementos agrícolas armazenados em Kharkov e outros centros industriais que, esperavam, para distribuí-los, ordens de Moscou. Estes são exemplos característicos da centralização bolchevique, que deveriam servir de advertência aos trabalhadores da Europa e da América, e preveni-los contra os efeitos destrutivos do Estado.

Só a potência industrial das massas, realizada por suas associações de bases libertárias – anarco-sindicalismo – consegue organizar com sucesso a vida econômica e a produção. Por outro lado, as cooperativas, trabalhando conforme as organizações industriais, servem de meio de troca e repartição entre a cidade e o campo, e, simultaneamente, unem as massas agrárias e industriais. Um elo comum de serviços recíproco e de ajuda mútua é criado, constituindo a melhor possibilidade da Revolução, bem mais efetiva que o trabalho obrigatório, o Exército Vermelho ou o terrorismo. Só nesta via a Revolução pode agir e desenvolver rapidamente as novas formas sociais e inspirar às massas a maior vontade de aperfeiçoamento.

Mas as organizações industriais (ou sindicais) libertárias e as cooperativas não são os únicos meios para resolver as fases complexas da vida social. Há também as forças intelectuais, as quais, ainda que intimamente ligadas às atividades econômicas, têm, entretanto, suas próprias funções a exercer. Na Rússia, o Estado comunista tornou-se o único árbitro de todas as necessidades do corpo social. O resultado, como descrevi anteriormente, foi uma completa estagnação intelectual e a paralisia de todo esforço criativo. Se quisermos evitar no futuro semelhante derrota, as forças intelectuais, que permaneceram enraizadas na vida econômica, devem ainda ter certa independência e liberdade de expressão. Não mais adesão ao partido político dirigente, mas sim dedicação à Revolução; capacidade, conhecimentos e – acima de tudo – o impulso criador deveriam ser o único critério de capacidade para o trabalho intelectual. Na Rússia, isso se tornou impossível desde o começo da Revolução de Outubro, pela separação da intelligentsia e das massas. É verdade que a primeira a tomar a ofensiva foi a intelligentsia (os intelectuais), especialmente os técnicos que, na Rússia, como em muitos outros lugares, agarram-se à burguesia. Este elemento, incapaz de compreender a significação dos eventos revolucionários, esforçou-se em represar a torrente de revolta por uma completa sabotagem. Mas, na Rússia, havia também outra espécie de intelectuais com um glorioso passado revolucionário de cem anos. Esta categoria de intelectuais manteve sua fidelidade ao povo, ainda que não pudesse aceitar sem reserva a nova ditadura. O erro fatal dos bolcheviques foi não ter feito nenhuma distinção entre estes dois elementos. Eles combateram a sabotagem por um terror que se aplicava a todos os intelectuais, enquanto classe, e inauguraram uma campanha de ódio ainda mais intensa do que contra a burguesia, método que cavou um abismo entre intelectuais e proletariado, e entravou o trabalho construtivo.

Lênin foi o primeiro a compreender este erro criminoso. Ele fez notar que era um grave erro levar os trabalhadores a crer que poderiam reconstruir as indústrias e engajar-se no trabalho intelectual sem a ajuda e a cooperação da intelligentsia. O proletariado não tinha os conhecimentos nem os treinamentos para essa tarefa, e era preciso reconstituir a categoria dos técnicos para restaurar a direção da vida industrial. Mas o reconhecimento deste erro não impediu Lênin, nem seu partido, de cometer outro. Os técnicos foram chamados em condições que aumentavam o antagonismo entre eles e o regime.

Enquanto os trabalhadores continuavam a morrer de fome, os engenheiros, os especialistas industriais, os técnicos, recebiam altos salários, privilégios especiais e os melhores alimentos. Tornaram-se empregados mimados do Estado e novos condutores das massas escravas. Estas últimas, nutridas durante anos com o falso ensinamento de que somente o músculo é necessário para uma revolução triunfante, e de que somente o trabalho físico é produtivo, e além do mais sugestionadas pela campanha de ódio que havia denunciado em cada intelectual um contra-revolucionário e um especulador, não podiam fazer a paz com aqueles que os bolcheviques tinham ensinado a detestar e odiar.

Infelizmente, a Rússia não é o único país onde prevalece esta atitude contra os intelectuais, por parte dos proletários. Em todos os lugares, os demagogos da política jogam com a ignorância das massas, ensinando-lhes que a educação e a cultura intelectual são preconceitos burgueses, que os operários podem dispensá-las, e que apenas eles, trabalhadores, são capazes de reconstruir a sociedade. A Revolução russa estabeleceu muito claramente que o músculo e o cérebro são indispensáveis na obra da regeneração social. Os trabalhadores intelectuais e manuais estão em relação tão estreita no corpo social quanto o cérebro e a mão no organismo humano. Um não pode funcionar sem o outro.

É verdade que a maioria dos intelectuais considera-se como uma classe à parte, superior aos operários; mas em todos os lugares as condições sociais fizeram rapidamente a classe intelectual descer de seu pedestal. Eles não têm esta facilidade do proletário físico, que pode juntar seus instrumentos e caminhar pelo mundo à procura de uma mudança de situação. Os intelectuais estão enraizados mais profundamente em seu meio social particular, e não podem mudar de situação ou de vida com tanta facilidade. Se o mundo ocidental quiser aproveitar as lições da Rússia, a bajulação demagógica das massas e o cego antagonismo contra a intelligentsia devem cessar. Isso não quer dizer, entretanto, que os trabalhadores devam estar completamente sob a dependência do elemento intelectual. Ao contrário, as massas devem, desde agora, começar a se preparar para a grande obra que a revolução lhes atribui. Elas deveriam adquirir os conhecimentos e as capacidades técnicas necessárias para administrar e dirigir o mecanismo complexo da estrutura industrial e social de seus respectivos países. Mas, mesmo nas melhores condições que tenham podido preparar, terão sempre necessidade da cooperação do elemento profissional e intelectual. Assim, também este último deve compreender que seus verdadeiros interesses são idênticos àqueles da massa. Uma vez que estas duas forças tenham aprendido a fazer um todo harmonioso, os aspectos trágicos da Revolução russa poderão ser eliminados.

Ninguém deveria ser fuzilado porque “adquiriu, no passado, instrução”. Os cientistas, o engenheiro, o especialista, o educador, o pesquisador e o artista, tanto quanto o carpinteiro, o maquinista ou qualquer outro trabalhador manual são todos parcelas da força coletiva que deve fazer da revolução o grande arquiteto do novo edifício social. Ao invés de ódio, unidade; ao invés de antagonismo, camaradagem; ao invés de fuzilamento, simpatia, é a lição que nos dá o desmoronamento da grande Revolução russa, lição a ser aprendida tanto pelos intelectuais quanto pelos trabalhadores manuais. Todos devem saber o valor inapreciável da ajuda mútua e da cooperação libertária. Além disso, cada um deve saber permanecer independente de seu meio e ser capaz de colocar à disposição da sociedade o melhor de si mesmo. É somente por este meio que o trabalho produtivo e o esforço intelectual exprimir-se-ão em formas continuamente mais novas e mais ricas. Para mim, este é o ensinamento de conjunto e a lição vital que a Revolução russa nos dá.

Nas páginas anteriores tentei indicar por que os princípios, os métodos e a tática bolchevistas fracassaram, e que os métodos e princípios similares aplicados em outros países, até mesmo os mais evoluídos industrialmente, deviam ter os mesmos resultados.

Mostrei que não foi apenas o bolchevismo que fracassou, mas também o próprio marxismo. Significa dizer que a Ideia Estado, o princípio autoritário, provaram sua total bancarrota na experiência da Revolução russa. Se eu tivesse de resumir minha argumentação em uma fórmula, diria: a tendência, inerente ao Estado, é de concentrar, estreitar, monopolizar todas as atividades sociais; a natureza da revolução, ao contrário, é desenvolver-se, ampliar-se, disseminar a si própria em círculos cada vez maiores. Em outros termos, o Estado é conservador e estático, a revolução é progressista e dinâmica. Estas duas tendências são incompatíveis e tendem a se destruir mutuamente. A ideia estatista matou a Revolução russa e este será o mesmo resultado para todas as outras revoluções, a menos que o ideal libertário se imponha.

Devo ir ainda mais longe. Não são apenas o bolchevismo, o marxismo, e o estatismo que são fatais à revolução e ao progresso humano. A principal causa da derrota da revolução é mais profunda. Encontra-se na concepção socialista da própria revolução.

A ideia revolucionária que domina, em geral, e de modo particular a ideia socialista, é que a revolução é uma violenta transformação das condições sociais, pela qual uma classe social, o proletariado, torna-se mais poderoso do que outra classe, a classe capitalista. É a concepção de uma mudança puramente física, e, como tal, necessita apenas de reorganização das instituições e da cena política. A ditadura burguesa é substituída pela “ditadura do proletariado” ou pela da “vanguarda”, o partido comunista. Lênin toma o lugar dos Romanov, o Gabinete imperial é rebatizado de Soviete dos Comissários do Povo, Trotsky é nomeado Ministro da Guerra, e um operário torna-se o governador militar geral de Moscou. Eis, em sua essência, a concepção bolchevique da revolução que é atualmente posta em prática. E, com algumas diferenças mínimas, é também a ideia da revolução que fazem todos os outros partidos socialistas.

Esta concepção é completamente falsa. A revolução é, com efeito, um processo violento. Mas, se tem como único resultado uma mudança de ditadura através da substituição das personalidades políticas, ela não tem então nenhum valor. Não vale, com toda certeza, a perda de vidas humanas e de valores intelectuais que resultam de cada revolução. Mesmo que tal revolução trouxesse um bem-estar social maior (o que não foi o caso na Rússia), ainda assim não valeria o terrível preço que custa: uma simples reforma pode ser obtida sem revolução sangrenta. Não são paliativos ou reformas o verdadeiro objetivo de uma revolução como eu a concebo.

Na minha opinião, mil vezes fortalecida pela experiência russa, a grande missão da revolução, “a revolução social”, é a reclassificação, não apenas dos valores sociais, mas dos valores humanos. Estes últimos são até mesmo mais importantes, pois são as bases dos valores sociais. Nossas instituições e nossas condições de existência repousam sobre idéias profundamente enraizadas. Querer mudar estas condições e, ao mesmo tempo, deixar estas idéias e valores em sua situação de fundações sociais, representa simplesmente uma transformação superficial, que não pode durar nem trazer real melhora. É simples mudança de forma, ou de substância, como se viu de modo tão trágico na Rússia.

Foi ao mesmo tempo, o grande erro e a grande tragédia da Revolução russa o de tentar (pela direção do partido político governante) mudar apenas as instituições e as condições de vida, ignorando totalmente os valores sociais e humanos incluídos na Revolução.

Pior ainda, em sua louca paixão pelo poder, o Estado comunista até mesmo trabalhou para fortalecer as ideias e as concepções que a Revolução tinha tentado destruir. Ele encorajou todas as piores qualidades anti-sociais e destruiu de maneira sistemática a concepção já clara dos novos valores revolucionários.

O sentimento de justiça e igualdade, o amor à liberdade e à fraternidade humana – estes fundamentos de toda verdadeira regeneração social -, o Estado comunista suprimiu-os, exterminou-os. O sentimento instintivo do homem pela igualdade foi marcado como uma fraqueza sentimental; a dignidade humana e a liberdade tornaram-se superstições burguesas; o respeito pela vida humana, que é a própria essência da reconstituição social, foi condenado como contra-revolucionário. Esta terrível perversão dos valores fundamentais trazia nela própria o germe da destruição. Com esta concepção de que a Revolução era somente um meio de assegurar o poder político, foi inevitável que todos os valores revolucionários se tornassem subordinados às necessidades do Estado socialista; ou que fossem explorados para firmar a segurança do poder governamental recém-adquirida. A “Razão de Estado”, disfarçada sob a máscara dos “Interesses da Revolução e do Povo”, tornou-se o único critério de ação, e mesmo de sentimento. A violência, esta coisa inevitável nos movimentos revolucionários, foi admitida como costume estabelecido, como um hábito, e é agora glorificada como a instituição mais poderosa e ideal. Não foi o próprio Zinoviev quem canonizou Dzerjinsky, o chefe da sangrenta Tcheka, com o título de “Santo da Revolução”? Não é verdade que as maiores honrarias públicas foram concedidas a Uritsky, o fundador e chefe cruelmente sádico da Tcheka de Petrogrado?

Esta perversão dos valores morais cristalizou-se em pouco tempo nesta super fórmula do partido comunista: o fim justifica os meios. No passado, igualmente, os jesuítas da Inquisição fizeram sua esta fórmula, e subordinaram-lhe toda moralidade. Ela se vingou dos jesuítas, da mesma forma que se vinga da Revolução russa. À evocação dessa palavra de ordem, surgem a mentira, a falsidade, a hipocrisia, a traição, o assassinato público ou oculto. Seria de grande interesse para os estudantes de psicologia social estabelecer que dois movimentos, tão separados pelo tempo e pelas ideias quanto o jesuitismo e o bolchevismo, produziram os mesmos resultados na evolução do princípio de que o fim justifica os meios. O paralelo histórico, quase completamente ignorado, contém uma importante lição para todas as revoluções a ocorrer e para o futuro da humanidade.

Não há maior erro do que esta crença que consiste em considerar objetivos e projetos como uma coisa, e métodos e táticas como outra. Esta concepção é uma ameaça latente para a regeneração social. Toda a experiência humana ensina que métodos e meios não podem ser separados dos objetivos perseguidos. Os meios empregados tornam-se, através do hábito individual e da prática social, parte do objetivo final; eles o influenciam, modificam-no, e em pouco tempo objetivos e meios tornam-se idênticos. No dia em que coloquei meus pés na Rússia, senti, vagamente no inicio, e de forma mais clara, posteriormente. Os grandes objetivos da Revolução tornaram-se tão nebulosos e obscurecidos pelos métodos utilizados pelo poder político que em pouco tempo foi difícil distinguir o que era meio temporário ou objetivo final. Psicológica e socialmente, os meios influenciam, obrigatoriamente, e alteram os objetivos. Toda a história do homem é uma prova continua de que separar os métodos das concepções morais resulta em uma queda nas profundezas da desmoralização. Nisto reside a verdadeira tragédia da Revolução russa. Possa esta lição não ter sido dada em vão.

Uma revolução só pode resultar em fator de libertação se os meios utilizados forem idênticos aos objetivos buscados. A revolução é a negação do que existe, é um violento protesto contra a desumanidade do homem para com o homem, com as mil e uma escravidões que ela comporta. É a destruição dos valores dominantes em um sistema complicado de injustiça, de opressão, e do mal que foi criado pela ignorância e pela brutalidade. É a anunciadora dos novos valores, precipitando-se para a transformação das relações humanas, não apenas para nova distribuição do bem-estar social. É tudo isso, e ainda mais, muito mais. É, de início e acima de tudo, o reclassificador, o portador, dos novos valores. É o grande professor da nova moral, inspirando os homens com nova concepção da vida e de suas manifestações nas relações sociais. É o regenerador mental e espiritual.

Seu primeiro preceito moral está na identidade dos meios empregados e dos objetivos buscados. O fim último de toda mudança social revolucionária é o de estabelecer o respeito à vida, à dignidade humana, o direito de cada ser humano à liberdade e ao bem-estar.

Se este não é o objetivo essencial da revolução, as transformações sociais violentas não têm nenhuma justificativa.