Título: Por um movimento queer revolucionário
Autor: Louve Rose
Data: 30/10/2023
Fonte: Versão original extraída do site P!nk Bloc. Adquirido em: https://pink-bloc.info/en/2023/10/30/pour-un-mouvement-queer-revolutionnaire/. Tradução para o português extraída do acervo trans-anarquista. Adquirido em: https://transanarquismo.noblogs.org/acervo/.
Notas: tradução por acervo trans-anarquista.

Contexto atual

A situação atual das comunidades queer é, paradoxalmente, uma das melhores e uma das piores que já vimos nas sociedades ocidentais capitalistas modernas. Sessenta anos de mobilização contínua do movimento queer (e antes dele, do protoqueer, se considerarmos todos os desdobramentos dos movimentos de gays e lésbicas) levaram à legalização e à emancipação quase total de nossas comunidades dentro do sistema jurídico do estado burguês. Agora podemos, como nunca antes, existir abertamente na sociedade, mostrando nossa verdadeira face. No entanto, a violência material contra as partes mais marginalizadas de nossas comunidades só aumentou na última década; entre elas, nossos irmãos negros, indígenas, trans, sem-teto, profissionais do sexo e neurodivergentes.

Embora Montreal e o restante da província tenham sido bastiões do movimento gay hegemônico, pelo menos desde os dias dos ataques à Sex Garage (julho de 1990), também vimos o novo movimento transfóbico extremo emergente do mundo anglo-saxão criar raízes aqui. Embora não tenhamos sido relativamente afetados por esses ataques até recentemente, nossos vizinhos do sul têm sido confrontados nos últimos três anos com o surgimento de uma verdadeira política de eliminação das comunidades trans, envolvendo elementos de recriminalização, o reaparecimento de um forte discurso de demonização, uma nova onda ideológica e violência direta.

A imagem que surge é a de um fenômeno que parece se contradizer, com uma integração cada vez maior no sistema jurídico e social, ao lado de uma onda de forte reação ignorada ou até mesmo incentivada pela classe dominante.


Contexto histórico

Essa situação paradoxal de conquistas de direitos e aumento da violência nas sociedades norte-americanas não é de forma alguma inédita.

Isso já era evidente no surgimento da crise da AIDS, como resultado da usurpação da liderança dos ativistas radicais pelos assimilacionistas e pela burguesia gay. Logo após as revoltas de Stonewall (1969), as comunidades gays, cis, brancas e ricas lideraram uma campanha para expulsar membros das comunidades mais ostracizadas e revolucionárias que haviam surgido. Recordamos o tratamento dado pelo movimento gay a Sylvia Rivera (1951-2002), uma ativista revolucionária trans e racializada, geralmente considerada uma das mães dos movimentos gay, queer e transfeminista. De fato, ela foi uma das cofundadoras da Gay Liberation Front e da Street Transvestite Action Revolutionary (STAR).

“Vocês todos me dizem, vá e esconda seu rabo entre as pernas. Não vou mais tolerar essa merda. Já fui espancada. Meu nariz foi quebrado. Fui jogada na cadeia. Perdi meu emprego. Perdi meu apartamento. Pela liberação gay, e vocês me tratam dessa maneira? O que diabos há de errado com vocês? Pensem nisso!” - Sylvia Rivera, fazendo um pronunciamento durante a terceira marcha anual do “orgulho” (conhecida na época como Christopher Street Liberation Day March) após ser vaiada por uma multidão predominantemente cis e rica.

Os objetivos políticos do movimento assimilacionista gay, então constituído pelos indivíduos mais burgueses e reacionários de nossas comunidades, estavam centrados na legalização e na assimilação à sociedade cisheteropatriarcal dominante. Isso é o que caracteriza o assimilacionismo como um movimento político. Esse movimento, que é rotineiramente a principal força política em nossas comunidades, visa à aceitação na sociedade cishetero e à obtenção de um status legal semelhante ao das pessoas heterossexuais. Em um nível mais profundo, o que se revela é uma busca por uma vida heterossexual a despeito de uma sexualidade gay. Suas estratégias geralmente envolvem lobby, acumulação de capital em negócios pink [1], conscientização e eliminação de partes de nossas comunidades que possam ofender a sensibilidade dos heterossexuais.

Mesmo assim, essas décadas de políticas liberais moderadas e até mesmo progressistas resultaram em avanços, recuperando o impulso das rebeliões de 1969 de diferentes maneiras. No final da década de 1970, a comunidade tinha mais direitos e conforto do que antes de Stonewall. No entanto, o revés conservador já estava emergindo e, quando a crise da AIDS explodiu na década de 1980, essa força homofóbica se lançou impiedosamente sobre a comunidade. A violência física, política, legislativa e midiática se intensificou até o ressurgimento de um movimento queer radical. O Act Up foi, sem dúvida, o mais conhecido. Com seus ataques simbólicos a empresas, igrejas e órgãos governamentais, esse grupo adotou uma análise sistêmica e sociopolítica da crise da AIDS. Foi na esteira das manifestações do grupo e da repolitização das reivindicações de gays e lésbicas[2] que vimos o surgimento de movimentos políticos novos e mais radicais nas décadas de 80 e 90. Foi nesse contexto que nasceu a própria noção de movimento queer. Desvinculando-se de um entendimento puramente baseado em identidade (movimento homossexual masculino e feminino) e reposicionando-se acima de tudo sobre uma opressão comum dentro do cisheteropatriarcado, o movimento queer se constituiu como uma força combativa, capaz de atacar o sistema dominante tanto quanto os fatores opressivos dentro da comunidade. Entretanto, o período de celebração após a crise da AIDS nos anos 90 e a nova proteção legal das comunidades puseram fim a essa efervescência política (também acompanhada de dissensão estratégica dentro dos movimentos) e viram a ordem assimilacionista e a liderança da burguesia gay serem restabelecidas.

As décadas de 1990 e 2000 tiveram sua parcela significativa de movimentos gays e queer radicais. Em Montreal, podemos pensar nas mobilizações que se seguiram ao ataque à Sex Garage (em 1990), às Pink Panthers (2002 a 2007), ao festival Pervers/Cité (desde 2008) ou ao primeiro P!nk Bloc (2010-2016). Esses vários movimentos estão criando um clima muito mais forte de aceitação em nossas comunidades e ancorando as questões queer como um movimento político independente no cenário do Quebec. Esses movimentos sofreram sua própria exaustão, dissensão interna e/ou se voltaram para o oportunismo burguês, carreirismo, assimilacionismo, legalismo e a exclusão de membros radicais e duplamente oprimidos. No início da década de 2020, está evidente que não há uma força queer a ser considerada no cenário político de Quebec.

Nos EUA, outro movimento importante desse período é o Queers Bash Back, que surgiu durante a campanha eleitoral de 2007. Essa rede informal de grupos queer anarquistas e antifascistas radicais criou uma tradição anarco-queer autônoma e pluriforme na América do Norte que, embora extremamente marginal, conseguiu se tornar um problema de consciência para os assimilacionistas. Funcionalmente extinto, o movimento prefigurou os movimentos radicais queer e trans de hoje de várias maneiras.

Na época da nova onda de ataques reacionários atuais, a comunidade é, portanto, amplamente dominada politicamente por empresários gays, acadêmicos e todo um movimento de burgueses e políticos que nos dizem que sua posição de poder e privilégio é a melhor coisa que já nos aconteceu coletivamente.

No entanto, há anos estamos sentindo algo rondando a juventude queer. Longe dos bairros, das competições de drags e das bichas limpinhas da televisão, nos cantos da Internet, nas ruas ou nos apartamentos e festas queer, onde os mais marginais dos marginalizados se reúnem, um movimento novo, mais raivoso, mais estranho e mais desinteressado na legalidade está tomando forma. A questão agora é como transformá-lo em uma força política real.

Necessidade revolucionária

Agora estamos enfrentando as consequências desse processo. Nossos direitos são melhores, nossas identidades são mais aceitas, mas nossa capacidade de desafiar e atacar o poder e os reacionários diminuiu. A inclusão na estrutura legal do liberalismo burguês é acompanhada por uma forte tendência à despolitização. Privados de espaços políticos queer, radicais e revolucionários, nos afundamos no individualismo e na atomização promovidos pelos assimilacionistas. Trabalhe, consuma, chupe paus se quiser, mas mantenha sua boca fechada. A erosão de nossa capacidade coletiva de agir é ocultada pelo aumento da representação de nossas identidades na mídia: a popularidade drag na cultura convencional, o turismo no Village e nos locais queer da moda, a presença na TV e no cinema etc. Toda essa representação serve, contudo, acima de tudo, para destacar nossa identidade como queers. Toda essa representação, no entanto, serve, sobretudo, aos interesses da burguesia gay e coloca um alvo no restante de nós. Ao nos inscrever no imaginário coletivo sem abordar materialmente nenhuma de nossas questões, essa representação nos torna um alvo ideal para as forças reacionárias. Nossa existência ainda incomoda a muitos, mas essa representação dá a ilusão de uma força dentro do sistema capitalista que nos torna um inimigo ou alvo perfeito do fascismo.

A invenção do notório “lobby trans”, um espantalho no horário nobre da mídia de direita, parece emular as estratégias de conspiração antissemita do século XX. A solução, é claro, não é se opor a essas novas representações positivas de nossas comunidades, que têm sua parcela de aspectos interessantes, nem, é claro, desafiar nossos novos direitos legais, mas devemos admitir que precisamos suplantar o movimento gay moderado e integrado com um movimento queer revolucionário. Um movimento que não seja simplesmente radical, mas revolucionário, capaz de construir uma análise anticapitalista de nossas condições, construir espaços políticos sólidos e determinados e tomar todos os meios necessários para obter nossa liberação total e a de todos os oprimidos. Somente o surgimento de um movimento queer revolucionário pode romper o ciclo mencionado acima e enfrentar a atual onda de fascismo e eliminacionismo. Esse movimento deve ser revolucionário e anticapitalista porque, na sociedade capitalista, os sujeitos trans, não binários e queer são erros de reprodução da matriz de gênero. São sujeitos difíceis de integrar na estrutura familiar, que é essencial para a organização do trabalho e do consumo. São aberrações da ordem social e desestabilizadores de um dos fundamentos ideológicos e estruturais do discurso dominante. Em outras palavras, apesar das fachadas de tolerância e aceitação, apesar do trabalho de integração à organização patriarcal dos corpos, somos sempre, como último recurso, alvos a serem eliminados. Essa eliminação assume a forma de assimilação a uma identidade ou organização social que não é a nossa, de confinamento ao silêncio e à morte lenta do armário, ou de extermínio total. Não há razão para acreditar que a liberalização dos estados burgueses continuará a se espalhar e a ser sustentada; pelo contrário, seu caráter de crise constante, acentuado pela catástrofe ecológica, significa que podemos considerar a possibilidade de retrocessos reais. Nossos direitos estarão entre os primeiros a cair quando o capitalismo seguir sua tendência fascista para se manter diante de crises crescentes. Não correremos o risco de confiar em governos e classes capitalistas, gays ou não, para defender nossas vidas. Precisamos organizar a nós mesmos e a nossos aliados para garantir nossa própria sobrevivência.

Esse movimento revolucionário deve ser construído não apenas em reação aos ataques sofridos pela comunidade, mas também em uma postura ofensiva contra o cisheteropatriarcado, o capitalismo, o imperialismo, as forças ecocidas e todos os outros poderes de opressão e exploração que, juntos, mantêm este mundo em um estado inviável. Esse movimento deve criar sua própria força de mobilização, organização, politização, educação e defesa. Uma força capaz de sair às ruas, impor linhas políticas, construir e defender espaços sociais e políticos, realizar ações antifascistas, desenvolver discursos e transformar materialmente a realidade da sociedade circundante. Por fim, esse movimento deve investir em um projeto verdadeiramente revolucionário para abolir o sistema atual e desenvolver um novo mundo, baseado na autodeterminação de indivíduos e comunidades em todos os aspectos da vida humana, da economia à cultura, da medicina à educação, do amor à ciência, do sexo à ecologia. Nossos corpos, nossas escolhas, nossa revolução. Esses projetos, que podem parecer próximos ou distantes, só podem ser alcançados por meio da aliança dos revolucionários queer e trans com o restante dos movimentos revolucionários ou libertários. Isso inclui movimentos anticoloniais, antirracistas, feministas, ambientalistas e anticapitalistas de todos os tipos. Em um sistema baseado na opressão e na exploração, temos tudo a ganhar com uma frente unida de oprimidos e nada a perder. Especialmente porque a natureza de nossas identidades significa que todas essas lutas atravessam e constituem nossas comunidades e suas lutas. Nossa unidade relativa enquanto comunidade, nossa história de luta e politização, nossos números e a vitalidade atual de nossas comunidades, combinados com o lugar central na política atual em que as forças reacionárias nos colocaram, nos dão a capacidade (e a necessidade) de nos constituirmos como uma das principais forças nessas lutas conjuntas.

Imaginando uma estratégia revolucionária queer

Admitir a necessidade de revolução é uma coisa, mas entender como criar as condições certas para a revolução, ou pelo menos para um movimento revolucionário forte, é outra bem diferente. A diversidade de condições em nossas comunidades, aqui e em outros lugares, significa que a estratégia revolucionária deve ser multiforme. Por outro lado, ao observarmos como, ao longo da história, certos grupos oprimidos aproveitaram sua condição para se constituírem como uma força política, podemos delinear certas táticas e estratégias para nossas lutas futuras.

Há uma rica história de organização revolucionária surgindo de grupos marginalizados por suas identidades, construindo sua própria defesa e adotando um lugar ofensivo nas lutas. Seria impossível fazer uma lista detalhada, e isso seria irrelevante. Aqui, mencionarei apenas quatro grupos e algumas de suas estratégias que considero particularmente interessantes. Esses grupos são o STAR (Street Transvestite Action Revolutionary), grupo trans de rua de Martha P. Johnson e Silvia Rivera, o BPP (Black Panther Party for self-defense) [Panteras Negras por autodefesa], os Young Lords e, tempos atrás, o Bund, o partido socialista judeu da Rússia czarista. O que esses quatro grupos têm em comum é o fato de terem sido criados dentro de comunidades que sofrem diretamente com a violência além da exploração capitalista: comunidades trans e de gênero não-conformes, afro-americanas, hispânicas e judaicas, respectivamente. Essas quatro organizações também se engajaram, em diferentes níveis, em formas de autodefesa da comunidade em face do estado repressivo ou de forças reacionárias, geralmente indistinguíveis umas das outras.

Isso é o que é mais lembrado sobre as atividades do BPP, que causou um escândalo na época por armar a comunidade negra e incentivá-la a apontar suas armas para as forças do estado. Na virada do século XX, ao se organizar dentro das comunidades judaicas de Pale, o Bund inovou nesse sentido: diante das ondas de pogroms - incentivadas especialmente pela aristocracia e pelo clero russo - a organização preparou grupos de jovens treinados e armados para defender sua comunidade em caso de ataque. Essas respostas armadas foram mais ou menos eficazes, dependendo da época e do local, mas mudaram drasticamente a dinâmica dentro do Pale[3]. Essa estratégia de defesa assumiu diferentes formas nas atividades dos Panteras Negras e dos Young Lords, que se organizaram em um contexto urbano norte-americano. Suas estratégias de autodefesa se concentravam na violência policial racista, principalmente ao organizar patrulhas armadas para seguir os policiais nos bairros da classe trabalhadora. Os Panteras Negras também enfrentaram as forças do estado ou gangues racistas em tiroteios e outras altercações violentas. Vemos nas ações desses três grupos a capacidade de organizar a violência em uma postura defensiva contra aqueles que atacam diretamente sua comunidade. Por sua vez, integrantes do STARS participaram das revoltas que expulsaram a polícia dos espaços gays de Nova York, pondo fim às agressões policiais e às agressões a gays. Diz a lenda que Riviera atirou na polícia o primeiro ou o segundo coquetel molotov (ou tijolo, dependendo da versão) no início das revoltas de Stonewall. O uso de armas e a formação de milícias seriam uma medida excessiva no contexto atual, pelo menos em “Quebec”, mas para nos constituirmos como uma verdadeira força revolucionária diante de uma onda de violência eliminatória e reacionária, parece necessário assumir a defesa de nossas comunidades. É vital desenvolver uma alternativa ao estado para nossas comunidades em face de ameaças externas.

É principalmente a nossa capacidade de enfrentar essas formas de violência e combater movimentos fascistas ou fascista, queerfóbicos e transfóbicos que nos permitirá alcançar nossos irmãos e desenvolver a legitimidade de nossa política revolucionária.

Outro aspecto importante das práticas do STARS e do BPP foi o atendimento direto, imediato e autônomo das necessidades materiais urgentes das comunidades. Durante vários anos, a STARS administrou uma casa na cidade de Nova York que lhes permitiu oferecer acomodação e espaço para pessoas trans que eram sem-teto e/ou profissionais do sexo. Isso foi ainda mais importante devido à discriminação de moradia e à extrema pobreza vivida pela comunidade trans e de gênero não-conforme. Quanto aos Panteras Negras, seu famoso programa de café da manhã lhes permitiu aliviar a insegurança alimentar de centenas de crianças negras pobres em bairros americanos da classe trabalhadora. Como o BPP fazia parte de uma lógica de luta de classes, ele também oferecia almoços a crianças brancas pobres (ou racializadas de outra forma) nos bairros onde estava organizado. Isso lhes permitiu, em vários momentos, romper a divisão racial criada pela segregação histórica. Também podemos celebrar as alianças extracomunitárias do BPP, principalmente a famosa Rainbow Coalition do BPP de Chicago, que reunia a seção local dos Young Lords e os Young Patriots, um grupo proletário branco de Appalachia.

A partir desses exemplos, podemos ver que é necessário que nossos grupos identifiquem as necessidades materiais imediatas de nossas comunidades e desenvolvam, dentro dos limites de nossas capacidades, soluções autônomas. Ajudar nossas comunidades a facilitar sua sobrevivência diária no sistema capitalista determinará, a longo prazo, nossa capacidade de nos estabelecermos firmemente como uma força política dentro delas. Não podemos esperar pela revolução para tecer solidariedades, mas devemos construí-las de modo a eliminar o capitalismo, e não mantê-lo. Em outras palavras, os grupos revolucionários queer precisam elaborar uma capacidade autônoma para atender a certas necessidades de nossas comunidades sem depender do estado ou do capital, de forma a desenvolver uma imaginação pós-capitalista. Quanto a essa questão de autonomia e solidariedade, os Young Lords possuem a interessante distinção de terem desenvolvido uma técnica de assistência médica exclusiva para ajudar sua comunidade fora da rede de assistência médica dominante. Essa técnica, chamada acupuntura Nada, foi e continua sendo usada para tratar os sintomas de dependência, TEPT e distúrbios nervosos. No contexto atual de discriminação médica e diminuição do acesso à assistência médica baseada em gênero, desenvolver a capacidade de produzir e/ou distribuir hormônios independentemente do sistema de saúde seria um grande ganho para nossos grupos, movimentos e comunidades. De modo mais geral, a criação de uma capacidade revolucionária (e extra-legal) de atendimento, com base em metodologia científica e espírito experimental, representaria um meio extraordinário de ajudar nossas comunidades e demonstraria a importância de grupos revolucionários organizados.

Além dessas estratégias de desenvolvimento autônomo, esses grupos, como a maioria dos grupos revolucionários, também garantiram a sua presença nas ruas por meio de manifestações, ações e mobilizações múltiplas. Como mencionei anteriormente, nossos movimentos precisam ser capazes de ir às ruas e inscrever nossas causas nelas. Isso pode ser feito de várias maneiras, mas é necessário que os movimentos revolucionários queer assumam um papel de liderança nas mobilizações. Sem buscar controlar o discurso ou combater outros tipos de iniciativas, não podemos nos dar ao luxo de esperar que as organizações e os movimentos institucionalizados tracem caminhos e finalmente se movimentem para agir. Temos que assumir a responsabilidade de criar momentos de luta, pontos de convergência e presença pública política. Ao criar nossas próprias manifestações, contra-manifestações, ações, bloqueios e protestos, damos um dinamismo importante às lutas e demonstramos aos nossos irmãos sua capacidade de agir.

Nossos movimentos também devem criar de forma autônoma plataformas para disseminar nosso discurso e estratégia. Essas plataformas, seja no formato impresso, virtual ou presencial (festival, treinamento, debate etc.), devem ser preenchidas com uma riqueza de pensamentos e palavras que possam inspirar e orientar nossas comunidades nas lutas que estão por vir. Nossa capacidade de promover nossos ideais e de colocá-los em contato com as várias realidades imediatas de nossas comunidades determinará nossa capacidade de permanecermos relevantes e de mantermos um relacionamento orgânico com elas.

Em suma, o que eu levo da história desses grupos e de suas práticas para o nosso movimento é a necessidade de construir um movimento pluriforme e organizado; um movimento capaz de defender nossas comunidades, participar e instigar várias lutas e mobilizações e garantir uma capacidade autônoma de solidariedade e ajuda mútua.

Considerações finais

A necessidade de criar um movimento revolucionário em nossas comunidades deve ser, de muitas maneiras, evidente para muitos de meus irmãos queer e trans. A eterna luta que enfrentamos neste mundo capitalista nos faz perceber sua imperfeição, sua crueldade. Essa constatação nos coloca diante de um enorme desafio: o trabalho a ser feito parece interminável, e nossos recursos, ridículos. E, no entanto, todas as grandes mudanças sociais começam em algum lugar, por meio da ação e do trabalho de determinados grupos de indivíduos. É difícil imaginar como derrubar um sistema inteiro, mas é fácil começar! Encontre pessoas ao seu redor que compartilhem seus valores e sentimentos. Forme um grupo organizado e comece a agir em sua própria escala (postando contra a transfobia, criando e divulgando conteúdo, marcando presença em manifestações, encontrando outros grupos com os quais colaborar, organizando eventos públicos etc.). Ao encarnar a si mesmo no espaço público, você permite que outras pessoas se identifiquem com suas ações, entendam e se juntem a você. Desenvolva seu próprio poder de ação, desenvolva suas próprias estratégias e maneiras de fazer as coisas e estude as dos outros. Um punhado de pessoas coordenadas e prontas para agir pode formar a base de um coletivo poderoso que, em relação a outros, pode criar um movimento forte.

Love and Raige [Amor e Raiva]

tradução por acervo trans-anarquista

[1] Nota do tradutor: refere-se a negócios organizados por pessoas gays, como pink money.

[2] Naquela época, estávamos falando sobre o movimento de gays e lésbicas, a noção do movimento queer nascendo naqueles anos e o movimento trans tendo sido amplamente apagado ou suplantado naquele período.

[3] O Bund não foi a única força judaica de esquerda a organizar tais esforços, mas foi de longe a mais significativa.