Percy Bisshe Sheley
A Máscara da Anarquia
A Máscara Da Anarquia
1.
Quando eu dormia na Itália
veio uma voz do Mar que fala,
e com grande poder adiante me vale a,
na visão da Poesia, acompanhá-la.
2.
O Assassínio na rua encontrei –
tinha a máscara de Castlereagh –
parecia tranquilo, mas sombrio;
sete cães de caça o seguiam:
3.
tão gordos; e tão bem estão
nesta admirável situação,
pois um a um, e dois a dois,
dá-lhes nossos corações pra comer depois
que de sua vasta capa os depôs.
4.
Logo veio o Engano, que tinha o
traje, como Eldon, de arminho;
suas lagrimonas, pois bem carpia, faziam-
-se pedra de mó quando caíam.
5.
E as criancinhas, que em volta
o pé pra lá e pra cá botam,
crendo joia cada lágrima reles,
tiveram os cérebros nocauteados por eles.
6.
Vestida com a Bíblia e com a
luz, e as noturnas sombras,
como Sidmouth, logo, a Hipocrisia
montando um crocodilo ia.
7.
E muito mais Destruições à vista
nessa mascarada sinistra,
até os olhos, disfarçados,
como bispos, nobres, espias, advogados.
8.
Por fim veio a Anarquia: montando
cavalo branco, sangue respingando;
pálida até os lábios se lhe visse,
como a Morte no Apocalipse.
9.
E uma coroa real trazia;
e a seu alcance um cetro luzia;
em sua testa esta marca enxerguei –
‘SOU DEUS, REI, E A LEI!”
10.
Num passo de altivez e destreza,
passou sobre terras inglesas,
calcando e em sangue atolando
a multidão se espantando.
11.
Em torno potente tropa vem, e
em sua marcha o chão treme,
espadas sangrentas sacodem,
a serviço de seu Lorde.
12.
E com triunfo glorioso, seguem
pela Inglaterra orgulhosos e alegres,
bêbados como em intoxicação
do vinho da desolação.
13.
Sobre campos e cidades, de mar a mar,
o Cortejo livre e ligeiro a passar,
rasga acima, e calca abaixo; onde
enfim chegam em Londres.
14.
E cada cidadão, em pânico,
sentia o terror no coração entrando
e o choro tempestuoso ouvia
do triunfo da Anarquia.
15.
Pois com pompa a vê-la vieram logo,
com armas como sangue e fogo,
assassinos de aluguel, entoando seus
‘És Rei, e Lei, e Deus.
16.
‘Temos esperado, sós e ansiosos,
por vossa vinda, Poderosos!
Nossas espadas frias, vazios os bolsos,
dai-nos glória, e sangue, e ouro.’
17.
Juristas e pastores, massa turva,
a fronte pálida à terra curva;
como má oração não tão alta,
‘– Tu és Lei e Deus –’ exaltam.
18.
Daí foi uníssono o clamor,
‘És Rei, e Deus, e Senhor;
Anarquia, a gente te adora,
seja teu nome santificado agora!’
19.
E Anarquia, o Esqueleto,
curvou-se e riu-lhes a contento,
bem como se sua educação
custasse dez milhões à nação.
20.
Pois sabia que os Palácios
dos Reis eram seus de fato;
seu cetro, coroa e globo,
e o manto tecido de ouro.
21.
Aí enviou seus escravos à frente
que o Banco e a Torre apreendem,
e estava procedendo no intento
de achar seu pensionista Parlamento.
22.
Quando uma fugiu, maníaca donzela,
e seu nome era Esperança, disse ela:
mas parecia mais Desespero,
e ao ar lançou tal berreiro:
23.
‘Meu pai Tempo é grisalho e fraco,
de melhores dias no aguardo;
veja como idiota ele para,
com as mãos paralisadas se atrapalha!
24.
‘Ele tem tido filho após filha,
e na poeira da morte empilha
cada um salvo eu só –
Miséria, Miséria, oh!’
25.
Então ela se deitou na rua,
ante as patas dos cavalos se punha,
expectante, e com olhar paciente via
Assassínio, Fraude e Anarquia.
26.
Quando entre ela e os inimigos seus
uma névoa, luz, imagem se ergueu,
pequena de início, e fraca, frágil e
tal como o vapor de um vale:
27.
até que as nuvens explodem crescendo,
gigantes coroados de torres correndo,
e luzem com raios quando voam,
e trovão sua fala ao céu reboa,
28.
já Forma encouraçada – crescente,
mais brilhante que a escama da serpente,
se elevava em asas com textura
como a luz de ensolarada chuva.
29.
Em seu elmo, se ao longe se avistava,
um planeta, tal a estrela d’alva;
e essas plumas verteram sua luz enfim
qual chuva de orvalho carmesim.
30.
Passou suave como o vento passa indo
pelas cabeças dos homens – tão rápido
que de sua presença ali sabiam,
e viam, – mas tudo era ar vazio.
31.
Como flores ao andar de maio acordem,
como estrelas do cabelo solto da Noite se sacodem,
como ondas se erguem quando ventos fortes sopram,
Ideias de cada pegada sua brotam.
32.
E a multidão prostrada a vê-los
– e com sangue nos tornozelos,
Esperança, a donzela mais serena,
caminhava com atitude amena:
33.
e Anarquia, a origem hórrida,
sobre a terra jazia terra morta;
o Cavalo da Morte sem controle voa
qual vento, e com os cascos mói à
poeira os assassinos que atrás amontoa.
34.
Luz de nuvem e esplendor que afeta, um
sentido que desperta e ainda é afeto
foi ouvido e sentido – e no seu termo
surgiram tais termos de alegria e medo
35.
como se sua própria indignada Terra
que deu à luz os filhos da Inglaterra
sentisse o sangue deles em suas cãs, e
estremecendo com as dores de ser mãe
36.
toda gota de sangue tivesse a alterá-la,
a qual sua própria face já orvalha,
em um sotaque irresistido,–
como se seu coração desse um grito:
37.
‘Ingleses, herdeiros da Glória,
heróis de não escrita história,
lactentes de uma Mãe potente,
Esperanças dela, e de seus entes;
38.
‘Ergam-se como Leões após a soneca
em número que não se vença,
lancem suas algemas à terra como o orvalho
que no sono sobre vocês derrubaram –
vocês são muitos – eles parcos.
39.
‘Que é Liberdade? – a vocês cabe
dizer o que é escravidão, bem sabem –
pois esse próprio nome cresceu
virando um eco dos seus.
40.
‘É trabalhar e ter paga para
manter só a vida diária
em seus membros, como uma cela
a tiranos fazerem uso dela,
41.
‘vocês lhes são apenas as
espadas, e teares, e arados, e pás,
com ou sem seu próprio arbítrio reles
só pra defesa e sustento deles.
42.
‘É ver seus filhos mirrando
com suas mães definhando, quando
ventos frios de inverno estão soprando,–
Tão morrendo enquanto estou contando.
43.
‘É ter fome por alimento
enquanto o rico em esbanjamento
atira aos cães gordos deitados
sob sua vista fartos;
44.
‘é deixar o Fantasma do Ouro a
levar mil vezes mais do Laboro a
substância que tanta jamais tomada fora
nas tiranias de outrora.
45.
‘Papel-moeda – esse fake
de escrituras de bens, e que
vocês tenham algo do valor
que a herança da Terra dispor.
46.
‘É ser escravo n’alma de sorte
a não ter controle forte
sobre o que se quer, mas ser
tudo que quiserem de você.
47.
‘E quando reclamarem então
com um murmúrio fraco e vão
é pra ver a tropa tirana
cavalgar sobre vocês e suas damas
sangue igual orvalho na grama.
48.
‘Então é sentir vingança
fera sedenta por barganha
de sangue por sangue – e engodo a engodo –
Ao serem fortes, não ajam desse modo.
49.
‘Repousam passarinhos, em exíguos ninhos
exaustos de alados caminhos;
bestas se alimentam, se a toca adentram
e há no ar neve e tormenta.
50.
‘Asnos, suínos, porqueira alastram
e comida digna se lhes pastam;
toda coisa tem casa, exceto uma –
tu, oh, inglês, não tem nenhuma!
51.
‘Isso é Escravidão – homens selvagens,
bestas feras em tocas não fazem
suportar como vocês suportam –
mas tais males nunca os tocam.
52.
‘Que és tu Liberdade? Ó! a tal pergunta
pudessem responder escravos de sua tumba
vivente – tiranos fugiriam como
as figuras obscuras do sonho:
53.
‘não és, como impostores falaram,
uma sombra que breve passara,
uma superstição, nome que brama
ecoando da caverna da Fama.
54.
‘Ao trabalhador pão és,
e uma mesa decente eis
que sua labuta diária dá
em limpo e feliz lar.
55.
‘És vestes, calor, e grude
à pisoteada multitude –
não – em terra que livre seja
tal miséria não esteja
como a que a Inglaterra veja.
56.
‘Ao rico és estorvo
quando seu pé está no pescoço
de sua vítima, tu pões sob a
sua pegada uma cobra.
57.
‘Tu és Justiça – a ouro jamais
sejam tuas justas leis vendidas tais
as leis na Inglaterra – igual, tu
proteges o baixo e o alto.
58.
‘És Sensatez – nunca seres Livres
sonharão que Deus lhes privem
por achar tais coisas inverdades
das quais pastores tanto ladrem.
59.
‘Tu és Paz – jamais por ti a
riqueza ou o sangue se desperdiçaria
como tiranos desperdiçam, e se aliam a
extinguir tua chama na Gália.
60.
‘E se suor e sangue inglês fluiu
à toa, mesmo igual dilúvio?
Isto servido, Oh, Liberdade, tem
pra te ofuscar, não te extinguir, porém.
61.
‘Tu és Amor – teus pés o rico
beijou, e como aquele seguindo Cristo,
seus recursos ao livre distribuiu
e pelo mundo-cão te seguiu,
62.
‘ou fez de seu ouro armas, e impusera
guerra por teu bem contra guerra,
e ouro, e fraude – de onde
sacam poder que à presa corresponde.
63.
‘Ciência, Poesia e Pensamento são
tuas lâmpadas; tornam o quinhão
de habitantes de um barracão
sereno; não o amaldiçoam então.
64.
‘Espírito, Paciência, Gentileza,
tudo que abençoa e embeleza
és tu – que em atos, não palavras, vejam-
-se tua extraordinária beleza.
65.
‘Que grande Assembleia se avive
de destemidos e livres
em solo inglês, em algum ponto
que tenha as planícies em torno.
66.
‘Que o céu azul por cima,
a terra verde em que se caminha,
tudo que de eterno exista
tal solenidade assista.
67.
‘Dos mais longínquos nichos
dos pontos ingleses fronteiriços;
de cada barraco, vila ou cidade que tenha
alguém que viva e sofra e gema
pela miséria alheia ou sua mesma,
68.
‘de asilo e prisões que há a ver esses
pálidos tais recém-ressuscitados cadáveres,
mulheres, crianças, velhos e jovens
que gemam de dor, que de frio chorem –
69.
‘de antros da cotidiana labuta
onde se trava a cotidiana luta
com anseios e cuidados comuns que soem o
coração humano semear com joio –
70.
‘enfim de palácios donde sai
o eco do murmúrio de ais,
como som distante ouvido
de um vento em volta vivo
71.
‘desses halls de prisão de luxo e moda,
onde uns poucos sentem dó da
gente que geme, labuta e se lamuria
como seus irmãos empalideceriam –
72.
‘vocês que sofrem aflições não ditas,
ou sentem, ou fitam aflitas
seu país perdido comprado vendido
a preço de sangue e ouro reduzido –
73.
‘façam assembleia ampla
e com solenidade tanta
declarem em palavras medidas que vocês
são livres como Deus os fez –
74.
‘sejam suas fortes e simples palavras
agudas pra ferir igual afiadas espadas,
que vastas como tarjas sejam,
e com sua sombra os protejam.
75.
‘Deixa tiranos saírem vertendo
com um som ligeiro e horrendo,
como de um mar que se solta,
armada brasonaria às tropas.
76.
‘Deixa a artilharia pesada mover-
-se até que o ar morto pareça viver
com o estrondo de rodas troando,
e o casco de cavalos trotando.
77.
‘Deixa brilhar a fixa baioneta
com desejo intenso que umedeça
em sangue inglês sua ponta luzida
aflita como alguém por comida.
78.
‘Deixa rolar e luzir as cimitarras dos
cavaleiros, como astros desesferados
sedentos por eclipsar seu ardor
num mar de morte e dor.
79.
‘Pare a gente calma e resoluta,
como floresta cerrada e muda,
braços cruzados e olhares que são
de guerra não derrotada um canhão,
80.
‘e deixa o Pânico, que ultrapassa o
passo de corcéis armados,
passar; sombra ignorável
por sua falange imperturbável.
81.
‘Deixa que em sua terra há leis,
boas ou más, estão entre vocês
mão a mão, e pé a pé,
árbitros da disputa, pois é,
82.
‘as velhas leis inglesas –
já grisalhas reverendas cabeças,
filhas de tempos de mais sapiência;
e cuja voz solene há de
ser teu próprio eco – Liberdade!
83.
‘Sobre os que primeiro violarem
tais arautos sagrados paire
o sangue que deve acontecer,
e não paire sobre você.
84.
‘E se aí os tiranos se atrevem
a ir entre vocês, deixá-los devem,
rasgar, aleijar, decepar, fender,
o que gostam, deixa-os fazer.
85.
‘Braços cruzados, no olhar firmeza,
e pouco medo, e menos surpresa,
vejam-lhes enquanto assassinam
até que suas fúrias se extingam.
86.
‘Daí voltarão com vergonha
ao lugar que os disponha,
e vai falar o sangue que despejam
no ardor rubor de suas bochechas.
87.
‘Apontar-lhes-ão as mulheres
onde quer que estiverem –
mal ousarão dar à sua
conhecida um oi na rua.
88.
‘E os verdadeiros guerreiros, ariscos
que em guerras abraçaram riscos
virarão aos que queriam ser livres,
com vergonha dos vis com quem convivem.
89.
‘E esse massacre à Nação
vai se condensar como inspiração,
eloquente, oracular;
vulcão distante a troar.
90.
‘E tais termos se tornarão
destruição estrondosa da Opressão
rangendo em cada cérebro e coração,
ouvida de novo – de novo – de novo – então
91.
‘Ergam-se como Leões após a soneca
em número que não se vença –
lancem suas algemas à terra como o orvalho
que no sono sobre vocês derrubaram –
vocês são muitos – eles parcos.’