Título: A Natureza e o Destino do Governo
Data: 1849
Fonte: Adquirido em 10/11/2024 de https://www.marxists.org/reference/subject/economics/proudhon/1849/the-nature-and-destination-of-government.html
Notas: Tradução por: Samuel N. Marques.

Deve haver, diz a Sagrada Escritura, facções: Pois devem haver heresias — Terrível! Devem haver! Escreve Bossuet em profunda adoração, sem ousar procurar a razão por trás disso. Devem haver!

Um pouco de reflexão nos revelou o princípio e o significado das facções: o ponto é conhecer seu objetivo e seu fim.

Todos os homens são iguais e livres: a sociedade, por natureza e destino, é, portanto, autônoma, pode-se dizer, ingovernável. Se a esfera de atividade de cada cidadão é determinada pela divisão natural do trabalho e pela escolha que se faz de uma profissão, as funções sociais são combinadas de modo a produzir um efeito de harmonia, e a ordem resulta da ação livre de todos; não há governo. Quem põe a mão em mim para me governar é um usurpador e um tirano; eu o declaro meu inimigo.

Mas a fisiologia social não contém, a princípio, essa organização igualitária: a ideia da Providência, entre as primeiras a aparecer na sociedade, é repugnante para ela. A igualdade acontece para nós por uma sucessão de tiranias e governos, nos quais a Liberdade está continuamente em luta com o absolutismo, como Israel com Jeová. A igualdade nasce, portanto, para nós, continuamente da desigualdade. O pai da Liberdade é o Governo.

Uma vez que os primeiros homens se reuniram nas bordas das florestas para fundar as primeiras sociedades, eles não disseram uns aos outros, como acionistas de uma empresa: “Vamos organizar nossos direitos e nossos deveres de tal forma a proporcionar a cada um de nós o maior bem-estar possível, e trazer junto também nossa igualdade e nossa independência.” Tanta razão estava além do alcance dos primeiros homens, e em contradição com a teoria daqueles que pregavam a revelação. A linguagem que usamos era bem diferente: “Vamos constituir entre nós uma autoridade que nos zelará e governará, Constituamus super nos regem! Foi assim que nossos camponeses ouviram, em 10 de dezembro de 1848, quando deram seus votos a Luís Bonaparte. A voz do povo é a voz do poder, enquanto espera que se torne a voz da liberdade. Além disso, toda autoridade é por direito divino, Omnis potestas à Deo, diz São Paulo.

A Autoridade, então, eis o que foi a primeira ideia social da humanidade. E a segunda era trabalhar imediatamente pela abolição da autoridade, cada pessoa querendo fazer dela um instrumento para sua própria liberdade contra a liberdade dos outros: tal é o trabalho e o destino das Facções.

A Autoridade não foi inaugurada há muito tempo no mundo, quando se tornou o objeto da competição universal. Autoridade, Governo, Poder, Estado, — todas essas palavras designam a mesma coisa; — cada um vê nelas os meios para oprimir e explorar seus semelhantes. Absolutistas, doutrinários, demagogos e socialistas, todos incessantemente voltam sua atenção para a autoridade, como se em direção ao polo magnético compartilhado deles.

Disto vem o aforismo da facção radical, que os doutrinários e absolutistas certamente não repudiariam: A revolução social é o objetivo; a revolução política (isto é, a mudança de autoridade) é o meio. Isto significa: “Dê-nos o direito de vida e morte sobre suas pessoas e seus pertences, e nós o libertaremos!”. Por mais de seis mil anos, os reis e sacerdotes têm repetido essa frase!

Assim, o Governo e as facções são, reciprocamente um para o outro, Causa, Fim e Meio. Eles existem um para o outro; eles têm um destino comum: é chamar a população à emancipação a cada dia; é solicitar energicamente sua iniciativa às custas de suas faculdades; é moldar suas mentes e empurrá-las continuamente para o progresso por preconceito, por restrições e com uma resistência calculada a todas as suas ideias, a todas as suas necessidades. Você não fará isso; você se absterá daquilo: o Governo, não importa qual facção reine, nunca soube dizer outra coisa. A interdição tem sido, desde o Éden, o sistema educacional da humanidade. Mas, uma vez que o homem atinge a maioridade, o Governo e as Facções devem desaparecer. Esta conclusão chega com a mesma força lógica, a mesma tendência necessária como vimos o socialismo sair do absolutismo, a filosofia nascer da religião e a igualdade encontrar compra na própria desigualdade.

Quando, por análise filosófica, alguém quer levar em conta a autoridade, seu princípio, suas formas, seus efeitos, reconhece-se rapidamente que a constituição da autoridade, espiritual e temporalmente, não é nada mais do que um organismo preliminar, em essência parasitário e corruptível, incapaz de produzir qualquer coisa por si só, exceto tirania e miséria, qualquer forma que tome, quaisquer ideias que represente. A filosofia afirma em consequência que, ao contrário da fé, a constituição da autoridade sobre o povo é apenas um estabelecimento transitório, que o poder não sendo uma conclusão da ciência, mas um produto da espontaneidade, desintegra-se assim que é discutido, que, longe de se fortalecer e crescer com o tempo, como supõem as facções rivais que o sitiam, deve ser reduzido indefinidamente e absorvido pela organização da indústria. Em consequência, não deve ser colocado sobre, mas sob a sociedade; e, virando o aforismo dos radicais de cabeça para baixo, conclui: A revolução política, a abolição da autoridade entre os homens, é o objetivo, a revolução social é o meio.

É por esta razão, acrescenta o filósofo, que todas as facções, sem exceção, por mais que afetem o poder, são variações do absolutismo, e que não haverá liberdade para os cidadãos, ordem para as sociedades, unidade entre os trabalhadores, até que a renúncia à autoridade tenha substituído o catecismo político da fé na autoridade.

Não mais facções;

Não mais autoridade;

Liberdade absoluta para o homem e o cidadão.

Em três frases, fiz minha profissão de fé política e social.

É nesse espírito de negação governamental que um dia falei assim a um homem que, embora fosse de rara inteligência, tinha a fraqueza de querer ser ministro:

Conspire conosco pela demolição do governo. Torne-se um revolucionário pela transformação da Europa e do mundo, e continue sendo um jornalista.

(Représentant du Peuple, 5 de junho de 1848)

Ele respondeu:

Há duas maneiras de ser um revolucionário: de cima, ou seja, a revolução pela iniciativa, pela inteligência, pelo progresso, pelas ideias; — de baixo, ou seja, a revolução pela insurreição, pela força, pelo desespero, atirando pedras de calçamento.

Eu era, ainda sou um revolucionário de cima, nunca fui, nunca serei um revolucionário de baixo.

Não conte comigo para conspirar pela demolição de qualquer governo, meu espírito recusaria. Está aberto a apenas um pensamento: melhorar o governo.

— Presse, 6 de junho de 1848.

Há nessa distinção, de cima, de baixo, muita trepidação e muito pouca verdade. O Sr. de Girardin, ao se expressar assim, pensou que estava dizendo algo tão novo quanto profundo. Ele apenas reproduziu a eterna ilusão dos demagogos que, pensando que estavam avançando revoluções, com a ajuda dos que estão no poder, só conseguiram empurrá-las para trás. Examinemos o pensamento do Sr. de Girardin mais de perto.

Agrada a esse engenhoso publicista chamar uma revolução por iniciativa, inteligência, progresso e ideias, uma revolução de cima; agrada a ele chamar uma revolução por insurreição e desespero, uma revolução de baixo. É precisamente o oposto que é verdadeiro.

De cima, no pensamento do autor que cito, é evidentemente o poder; de baixo significa o povo. De um lado, a ação do governo, do outro, a iniciativa das massas. O que está em questão, então, é qual dessas duas iniciativas, a do governo e a do povo, é mais inteligente, mais progressiva, mais pacífica.

Mas, a revolução de cima é inevitavelmente — direi o motivo mais tarde — uma revolução pelo prazer caprichoso do príncipe, pela arbitrariedade de um ministro, pelo tatear hesitante de uma assembleia, pela violência de um clube; é revolução pela ditadura e pelo despotismo.

Luís XIV, Napoleão, Carlos X praticaram assim; então o Sr. Guizot, Louis Blanc, Leon Faucher querem isso. Os brancos, os azuis, os vermelhos, todos eles estão de acordo neste ponto.

A revolução pela iniciativa das massas é uma revolução por cidadãos concertados, pela experiência dos trabalhadores, pela difusão do esclarecimento — uma revolução pela liberdade. Condorcet, Turgot, Robespierre buscaram a revolução de baixo, a democracia real. Um dos homens que mais revolucionou, e que menos governou foi Saint Louis. A França, na época de Saint Louis, fez de si mesma o que é; como uma videira cresce seus brotos, ela produziu seus senhores e seus vassalos: quando o rei publicou suas famosas regras, ele não era nada além do registrador das vontades públicas.

O socialismo cedeu completamente à ilusão do radicalismo. O divino Platão, há mais de dois mil anos, é um exemplo sóbrio. Saint-Simon, Fourier, Owen, Cabet, Louis Blanc, todos partidários da organização do trabalho pelo Estado, pelo capital, por qualquer autoridade, clamam, como meu Sr. de Girardin, pela revolução de cima. Em vez de ensinar o povo a se organizar, a apelar para sua experiência e sua razão, eles exigem poder deles. De que forma eles diferem dos déspotas? Eles também são utópicos, como todos os déspotas: os últimos não podem durar, os primeiros não podem criar raízes.

A implicação é que o Governo nunca pode ser revolucionário, e pela simples razão de que é governo. Somente a sociedade, a massa do povo penetrada pela inteligência, pode se revolucionar, porque somente ela pode racionalmente empregar sua espontaneidade, analisar sua situação, explicar o mistério de seu destino e sua origem, mudar sua fé e sua filosofia; porque somente ela, em última análise, é capaz de lutar contra seu autor, para produzir seu fruto. Os governos são os flagelos de Deus, estabelecidos para disciplinar o mundo; e você quer que eles se destruam, para criar liberdade, para fazer revoluções!

Não pode ser assim. Todas as revoluções, desde a coroação do primeiro rei até a Declaração dos Direitos do Homem, foram realizadas pela espontaneidade do povo. Os governos sempre impediram , sempre suprimiram, sempre atacaram com força, nunca revolucionaram nada. Seu papel não é provocar movimento, mas retê-lo. Mesmo que tivessem a ciência revolucionária, a ciência social, à qual são avessos, não poderiam aplicá-la, não teriam o direito. Seria necessário primeiro disseminar sua ciência entre o povo, para que pudessem obter o consentimento dos cidadãos; esperar isso é entender mal a natureza da autoridade e do poder.

Os fatos vêm confirmar a teoria aqui. As nações mais livres são aquelas onde o poder tem menos iniciativa, onde seu papel é mais contido: citemos apenas os Estados Unidos da América, a Suíça, a Inglaterra, a Holanda. Pelo contrário, as nações mais subjugadas são aquelas onde o poder é o mais bem organizado e o mais forte, podemos testemunhar. E ainda assim reclamamos incessantemente por não sermos governados, exigimos sempre um poder mais forte, sempre mais forte!

Há muito tempo a igreja disse, falando como uma mãe terna: Tudo para o povo, mas tudo pelos padres.

A monarquia veio depois da igreja: Tudo para o povo, mas tudo pelo príncipe.

Os doutrinários: Tudo para o povo, mas tudo pela burguesia.

Os radicais não mudaram os princípios por terem mudado a fórmula: Tudo para o povo, mas tudo pelo estado.

É sempre o mesmo governismo, o mesmo comunismo.

Quem ousaria dizer finalmente: Tudo para o povo, até mesmo o governo? — Tudo para o povo: Agricultura, comércio, indústria, filosofia, religião, polícia, etc. Tudo pelo povo: o governo, religião, tanto quanto agricultura e comércio.

A democracia é a abolição de todos os poderes, espirituais e temporais, legislativos, executivos, judiciários, proprietários. Sem dúvida, não é a Bíblia que a revela, mas a lógica das sociedades, a reação em cadeia de atos revolucionários; é tudo filosofia moderna.

Seguindo o Sr. de Lamartine, concordando com isso com o Sr. de Genoude, cabe ao governo dizer Eu quero. O país tem apenas que responder Eu concordo.

E séculos de experiência respondem a eles, dizendo que os melhores governos são aqueles que são mais bem-sucedidos em se tornarem inúteis. Precisamos de parasitas para trabalhar e padres para falar com Deus? Não precisamos mais dos funcionários eleitos que nos governam.

A exploração do homem pelo homem, alguém disse, é roubo. Bem, então! O governo do homem pelo homem é servidão. E toda religião positiva, encontrando seu ponto final no dogma da infalibilidade papal, nada mais é do que a adoração do homem pelo homem — idolatria.

O absolutismo, fundando, de uma só vez, o poder do altar, do trono e do banco, multiplicou a rede de correntes sobre a humanidade. Após a exploração do homem pelo homem, após o governo do homem pelo homem, após a adoração do homem pelo homem, ainda temos:

O julgamento do homem pelo homem,

A condenação do homem pelo homem,

E para terminar a série, a punição do homem pelo homem.

Essas instituições religiosas, políticas e judiciárias, das quais tanto nos orgulhamos, devemos respeitar e obedecer até que, com o passar do tempo, elas murchem e caiam, como a fruta cai durante sua estação. Elas são os instrumentos de nosso aprendizado, sinais visíveis do governo do Instinto sobre a humanidade, os restos enfraquecidos, mas não desfigurados, dos costumes sangrentos que sinalizam nossa idade vil. A antropofagia desapareceu há muito tempo, mas não sem a resistência da autoridade, com seus ritos atrozes: a antropofagia subsiste em todos os lugares no espírito de nossas instituições, eu a atesto no sacramento da Eucaristia e no código penal.

A razão filosófica repudia esse simbolismo dos selvagens. Ela proscreve essas formas exageradas de respeito humano. E, no entanto, não afirma, com os radicais e os doutrinários, que podemos empreender essa reforma pela autoridade legislativa; não concede que alguém tenha o direito de perseguir o bem do povo, apesar do povo, ou que seja lícito libertar uma nação que quer ser governada. A filosofia só deposita sua confiança em reformas vindas do livre arbítrio das sociedades: as únicas revoluções que ela admite são aquelas que precedem da iniciativa das massas: ela nega, da maneira mais absoluta, a competência revolucionária dos governos.

Em resumo:

Se consultarmos apenas a fé, a cisma da sociedade aparece como o efeito terrível da queda original do homem. É o que a mitologia grega expressou pela fábula dos guerreiros nascidos dos dentes da serpente que se mataram todos ao nascer. Deus, segundo esse mito, deixou o governo da humanidade nas mãos de facções antagônicas, de modo que a discórdia estabelecesse seu reinado na terra, e que o homem aprendesse, sob tirania perpétua, a voltar seu pensamento para outro plano de existência.

Antes da razão, governos e facções nada mais são do que a encenação dos conceitos fundamentais da sociedade, uma realização de abstrações, uma pantomima metafísica cujo significado é LIBERDADE.

Fiz minha profissão de fé. Você conhece os personagens que, neste relato da minha vida política, devem desempenhar os papéis principais. Você sabe qual sujeito eles representam. Esteja atente ao que agora vou lhe contar.