Título: Cibernética Anarquista
Autor: Thomas Swann
Data: 13 de maio de 2021
Notas: Titulo Original: Anarchist Cybernetics. Tradução e Revisão por André Tunes @Nucleo de Estudos Autonomo Anarco Comunista. Ela não possui direitos autorais pode e deve ser reproduzida no todo ou em parte, além de ser liberada a sua distribuição, preservando seu conteúdo e o nome do autor.

Anarquia, Liberdade e Auto-Organização

Em comparação com o quão usado ela é, ‘cibernética’ pode ser uma das palavras menos compreendidas na língua inglesa. Todos nós estamos familiarizados com ela, ou, pelo menos, com o prefixo ‘cyber’ que é extraído dela. Os cyborgs são onipresentes na cultura pop. Costumávamos falar sobre ciberespaço e cyberpunk, e estes tinham uma conotação radical, embora bastante vaga.

Agora recebemos campanhas patronais dos governos nos pedindo para abandonar as atividades artísticas por carreiras em ‘cyber’. Cyberpunk 2077 foi um dos jogos mais aguardados dos últimos anos, e foi amplamente criticado por sua normatividade de gênero simplista, seu fetichismo de pessoas trans e sua apropriação superficial da estética anticapitalista e anarquista. Nada disso realmente nos diz o que a cibernética poderia significar, além de uma associação geral com a tecnologia. A disciplina científica da cibernética, que surgiu após a Segunda Guerra Mundial, estava profundamente preocupada com a engenharia mecânica e elétrica, e mais tarde com a tecnologia da informação e computadores. Mas a palavra em si tem uma história muito mais longa.

O filósofo Platão, escrevendo em Atenas no século IV aC, usa a palavra ‘kybernetes’, que se refere ao ato de dirigir um navio. Platão compara o comando de um navio com o governo de uma cidade (na Grécia antiga não havia realmente nações ou estados como os entendemos, e as pessoas viviam em cidades-estados, como Atenas). Nossa palavra ‘governar’ vem desta antiga palavra grega ‘kybernetes’. Em latim o k torna-se g, o y torna-se u, para nos dar ‘gubernare’. Isso ainda é usado quando se fala sobre assuntos relacionados com os governadores de estado, em ‘eleições governamentais’, por exemplo.

Se a cibernética tem sua linhagem em ideias sobre governar uma comunidade – comumente constituída como sistemas hierárquicos de governo – por que qualquer coisa disso é interessante para o anarquismo? Por que estou escrevendo sobre cibernética em uma publicação anarquista se, no seu núcleo, trata do tipo de organização centralizada, vertical associada a posições como governador? Não é ‘governador’ também o nome dado às pessoas que administram as prisões? Em um excelente livro recente sobre ajuda mútua e Covid-19, John Preston e Rhiannon Firth vinculam a cibernética ao “autoritarismo e controle de cima para baixo[1] e ao tipo de capitalismo do desastre que trata as pessoas como facilmente manipuláveis e finalmente descartáveis.

A noção de direção encontrada em Platão e da qual a cibernética toma o seu nome é, naturalmente, um ato de direção por um ou alguns no controle dos outros. Para Platão, a direção de um navio era uma metáfora de como a cidade-estado deveria ser governada. Não pela democracia, mas por um piloto esclarecido, um rei filósofo. Esta é a origem do termo ‘cibernética’.

Você pode se surpreender ao saber que em um ensaio de 1966 chamado ‘Anarquismo como uma Teoria da Organização’, o anarquista britânico Colin Ward escreveu que “A teoria cibernética com sua ênfase em sistemas auto-organizados e especulação sobre os efeitos sociais finais da automação, leva em uma direção revolucionária semelhante” como o anarquismo[2]. Por que Ward viu a cibernética como comparável ao anarquismo, a uma filosofia baseada em “grupos autônomos, ordem espontânea, controle operário, princípio federativo”?[3]

No centro dessa conexão entre anarquismo e cibernética está a ideia de auto-organização, e enquanto isso foi inicialmente desenvolvido no contexto dos sistemas técnicos, ele foi aplicado aos sistemas sociais também. Através disso, a cibernética nos dá uma estrutura para entender como as pessoas podem organizar suas vidas coletivamente e sem hierarquias estruturais de comando.

A Ciência da Auto-Organização

Tenho certeza de que não sou a única pessoa que leu esse comentário no ensaio de 1966 de Ward, que é incluído sem muita explicação, apenas para se encontrar na toca do coelho do anarquismo e da cibernética. Há algumas outras referências dispersas à cibernética na literatura anarquista ao longo dos anos. Murray Bookchin usou o termo em vários lugares, mas principalmente em referência à alta tecnologia. Ruth Kinna discutiu brevemente o assunto em seu livro de 2005, Anarchism. A Beginner’s Guide, assim como Paul Goodman e Sam Dolgoff décadas antes. Nos Países Baixos, o filósofo Marius de Geus aprofunda-se sobre isso em um livro publicado em 1989 (o capítulo relevante foi traduzido e publicado em inglês), assim como o ativista Provo*** Roel van Duijn em seu livro Message of a Wise Kabouter.

Além de ser editor do jornal Freedom de 1947 a 1960, Ward editou o periódico Anarchy, publicado pela Freedom Press entre 1961 e 1970. É nas páginas de Anarchy, em 1963, que as conexões entre o anarquismo e a cibernética são feitas pela primeira vez. Um dos associados mais próximos de Ward na época era Nicholas Walter, um colaborador frequente do jornal Freedom. O avô de Walter, Karl Walter, participou do Congresso Internacional Anarquista em 1907 em Amsterdã e teve algum envolvimento no grupo Freedom por volta dessa época.

O filho de Karl Walter, e pai de Nicholas Walter, foi William Grey Walter. Este membro da família Walter foi um neurofisiologista e uma das pessoas que trabalharam na vanguarda da cibernética e campos relacionados a partir de 1930 até 1960. Parte do seu trabalho era sobre robótica e ele desenvolveu alguns robôs que ele chamou de ‘tartarugas’, que eram capazes de se orientar usando sensores de luz e contato.

Nicholas Walter disse de seu pai que “ele era politicamente à esquerda, um companheiro comunista-viajante antes da Segunda Guerra Mundial e um simpatizante anarquista depois dele”[4]. Em 1963, Grey Walter escreveu um artigo para a Anarchy intitulado ‘The Development and Significance of Cybernetics’ (também disponível na Libcom). Walter deu uma visão geral da ciência da cibernética, caracterizando-a como um guarda-chuva holístico que pode reunir campos díspares, tais como biologia, engenharia elétrica, psicologia e matemática.

Walter concluiu seu artigo sobre a anarquia ao observar as semelhanças entre como o cérebro é organizado e as abordagens anarquistas à organização. Ele escreveu que “não encontramos nenhum chefe no cérebro, nenhum gânglio oligarquista ou glandular Big Brother[5]. Ele passou a descrever como diferentes partes do cérebro se relacionam: “as minorias locais podem e controlam seus próprios meios de produção e expressão em relações livres e iguais com seus vizinhos. Se tivermos que identificar sistemas biológicos e políticos, nossos próprios cérebros parecem ilustrar a capacidade e as limitações de uma comunidade anarco-sindicalista[6].

Ao enfatizar a importância da autonomia local, a cibernética mostra como os sistemas podem ser eficazes e durar de um momento para o outro. Nos sistemas sociais e políticos, não é através do comando ditatorial e da restrição autoritária, mas através da liberdade e da democracia que as formas de organização podem melhor atingir seus objetivos e permanecer estáveis. Enquanto a auto-organização em sistemas mecânicos ou elétricos parece bastante diferente da auto-organização em grupos e comunidades anarquistas, Walter sugeriu que há um paralelo crucial entre eles: a tomada de decisão deve acontecer no nível mais local possível, e a coesão surge através da interação entre as partes do sistema, que são elas mesmas fundamentalmente autônomas.

A Cibernética dos Sistemas Auto-Organizados

Para ver precisamente por que é esse o caso, precisamos voltar a outro momento chave nesta obscura história do anarquismo e da cibernética.

Na edição imediatamente seguinte à que continha o artigo de Walter, a Anarchy publicou uma carta em resposta. Na carta, John D. McEwan escreveu: “Estou interessado nesta questão da abordagem cibernética à organização social e há algum tempo considero que é particularmente significativa para os anarquistas. Especialmente alguns que dizem respeito a sistemas de auto-organização e críticas a rígidos mecanismos hierárquicos de decisão[7]. Walter respondeu que “eu gostaria de ter tido tempo para trazer os tons anti-políticos um pouco mais[8], mas foi o próprio McEwan quem desenvolveu este tema mais plenamente.

McEwan é uma figura um pouco difícil de se ver nesta história. Ele enviou sua carta para a Anarchy após a publicação do artigo de Walter, e então alguns meses depois foi publicado seu próprio artigo. Sabemos pela breve biografia publicada ao lado de seu artigo que ele nasceu em 1938, formou-se em matemática na Universidade de St. Andrews na Escócia e trabalhou em programação diagnóstica para um computador eletrônico. A carta que ele enviou para o jornal foi endereçada de Manchester, no norte da Inglaterra, então presumivelmente ele viveu e trabalhou naquela cidade, talvez conectado ao Departamento de Engenharia Elétrica na Universidade de Manchester, que foi pioneira em alguns avanços importantes na computação.

Além disso, nada se sabe de McEwan, ou, pelo menos, nada que eu tenha sido capaz de descobrir, mas o volume mínimo de sua contribuição para o anarquismo – uma carta e um ensaio mais longo em 1963 – é mais do que compensado pela sua importância para a compreensão das conexões entre o anarquismo e a cibernética.

O artigo de McEwan foi intitulado ‘Anarchism and the Cybernetics of Self-Organising Systems’. Nos anos que se seguiram, ele foi republicado em duas coleções e felizmente disponibilizado on-line na Libcom. O artigo aprofundou as conexões entre anarquismo e cibernética, focando em particular na compreensão de Kropotkin da harmonia na natureza e como a autonomia das partes de um sistema lhe dá a capacidade de manter um equilíbrio à medida que seu ambiente muda.

Os sistemas sociais, como todos os sistemas, existem num ambiente particular (tudo o que os rodeia, que tem um impacto sobre eles e que por sua vez têm um impacto sobre). Este ambiente muda com o tempo, e para permanecer estável o sistema tem que ser capaz de se adaptar continuamente e modificar-se em linha com esta mudança. A mudança no ambiente é descrita como variedade: o ambiente tem uma variedade de estados possíveis e é a mudança de um estado para outro que qualquer sistema existente dentro desse ambiente deve enfrentar.

Um dos princípios centrais da cibernética, conhecido como a Lei de Ashby em homenagem a Ross Ashby, é que um sistema deve ser capaz de ter o mesmo nível de variedade do seu ambiente para sobreviver. Quando o ambiente muda de um estado para outro, o sistema deve ser capaz de mudar por sua vez; o sistema deve ser capaz de corresponder à variedade no ambiente. A forma como os sistemas conseguem esta variedade e adaptabilidade é através das suas partes que têm um alto nível de autonomia para agir como eles consideram adequado na sua própria parte ou nicho particular do ambiente. Esta é a característica central que Walter identificou como sendo comum tanto à cibernética quanto ao anarquismo. Se os sistemas são muito rígidos e não têm essa capacidade de mudança e variedade, eles se tornam sobrecarregados e quebram.

Para os anarquistas, esse tipo de rigidez sistêmica e falta de variedade tem outra implicação: a dominação. Os sistemas políticos e sociais anarquistas tentam resistir, e, em última análise, destruir, mostrando a falta de variedade através da coerção autoritária. Mecanismos de dominação mais ou menos explícitos – desde a brutalidade aberta da polícia e dos militares até culturas mais sutis de subserviência e conformidade – agem para restringir a variedade do sistema. Todos são forçados a se encaixar em um número limitado de possíveis papéis e comportamentos. A liberdade e autonomia para agir e pensar diferente são restringidas.

Em seu artigo na Anarchy, McEwan observou que Kropotkin tinha uma compreensão da natureza e harmonia que se alinha de forma impressionante com a cibernética. Ele descreveu a sociedade anarquista, por exemplo, como uma que “busca harmonia em um equilíbrio sempre em mudança e fugitivo entre uma infinidade de forças variadas e influências de todos os tipos, seguindo seu próprio curso[9].

McEwan desafiou a visão dominante da organização política e social, contrastando-a com a organização anarquista enraizada na autonomia e complexidade:

“A premissa básica do governamentalista – ou seja, que qualquer sociedade deve incorporar alguns mecanismos para o controle geral – é certamente verdade, se usamos ‘controle’ no sentido de ‘manter um grande número de variáveis críticas dentro dos limites da tolerância’. […] O erro do governamentalista é pensar que ‘incorporar algum mecanismo para o controle’ é sempre equivalente a ‘incluir uma unidade de controle isolável fixa à qual o resto, i.e. a maioria do sistema é subserviente’. Esta pode ser uma interpretação adequada no caso de um sistema ferroviário modelo, mas não para uma sociedade humana. O modelo alternativo é complexo e está mudando na sua busca de estabilidade diante de distúrbios imprevisíveis”[10].

A discussão de McEwan é particularmente perspicaz, e é um dos poucos lugares onde ideias cibernéticas de auto-organização, variedade e autonomia são discutidas em detalhes em relação ao anarquismo. Central para isso é como o conceito de controle é entendido. Enquanto a cibernética é focada no controle – o subtítulo do primeiro livro sobre cibernética, pelo ciberneticista americano Norbert Weiner, foi ‘Controle e Comunicação no Animal e na Máquina’ – define o controle não como algo que é feito a um sistema ou grupo de pessoas, mas como algo que um sistema ou grupo faz. Para o anarquismo, isso significa que as pessoas se auto-organizam para governarem a si mesmas.

McEwan descreveu o tipo de sistema de alta variedade que a cibernética diz ser necessário para lidar com um mundo complexo, e é algo que muitos anarquistas reconheceriam: “Suas características estão mudando estruturalmente, modificando-se sob feedback contínuo do ambiente […]. A aprendizagem e a tomada de decisões estão distribuídas por todo o sistema[11]. Ele citou Kropotkin sobre a organização anarquista, destacando a surpreendente semelhança: “uma associação em constante mudança que carrega em si os elementos de sua própria duração, e tomando as formas que melhor correspondem, em qualquer momento, aos múltiplos esforços de todos[12].

A organização anarquista ainda é sobre controle, mas esse controle é promulgado através do tipo de tomada de decisão democrática e participativa que tem caracterizado o anarquismo desde sua criação e que é encontrado em muitas comunidades não estatais ao longo da história. A cibernética revela a auto-organização como uma forma eficaz de controle para sistemas adaptativos, mas uma forma de controle que, na organização social, envolve-nos trabalhando coletivamente em acordo com aqueles ao nosso redor sobre como podemos melhor executar nossas vidas, como podemos ser livres e prosperar em um mundo complexo e em mudança.

Avanço da Cibernética Anarquista

O artigo de McEwan em Anarchy claramente teve um impacto, à medida que a cibernética aparece novamente na história do anarquismo a partir dos anos 1960, mas as ideias contidas nele nunca foram levadas adiante e desenvolvidas em uma teoria mais abrangente da organização anarquista. McEwan nos mostrou alguns dos princípios fundamentais por trás da cibernética que podem ser aplicados tão frutuosamente no anarquismo, mas o que isso significa na prática para a organização anarquista foi deixado inexplorado.

E se a história não tiver que parar por aqui? Em seu ensaio, McEwan se inspirou em uma das figuras mais influentes da cibernética. Essa figura era Stafford Beer. Ao dar uma olhada na vida e trabalho de Beer, e particularmente através da exploração de suas ideias sobre sistemas viáveis, podemos investigar mais profundamente as conexões entre anarquismo e cibernética.

Ao fazer isso, vamos visitar os dias turbulentos do início dos anos 1970, onde o potencial radical da cibernética se manifestou pela primeira vez na prática. Também vamos revisitar o Occupy Wall Street, para ver como funcionou um dos maiores experimentos de organização anarquista, antes de voltar para o presente e ver a ajuda mútua das bases na crise da Covid-19 através de uma lente cibernética. No final desta jornada, ficará claro como uma ideia quase esquecida das páginas de um jornal anarquista relativamente desconhecido em 1963 pode nos ajudar a remodelar como pensamos sobre a organização anarquista.

Interlúdio: Chile, 1973

Salvador Allende foi eleito presidente do Chile em 1970, com uma plataforma para implementar o que ele chamou de “o caminho chileno para o socialismo”. Em contraste com o socialismo autoritário da União Soviética, Allende tentou trazer avanços no bem-estar e na nacionalização da indústria através de governança democrática representativa. Ele rejeitou a estratégia revolucionária centralizada, de vanguarda de outros países supostamente socialistas, no entanto, seu governo foi quase imediatamente atacado por poderosos interesses financeiros, tanto dentro do Chile como no exterior.

Depois de uma série de tentativas fracassadas e prolongada guerra econômica pelos EUA, um golpe em 1973 finalmente conseguiu derrubar Allende. Sua morte, em 11 de setembro daquele ano, marcou o fim não só do caminho chileno para o socialismo, mas também da mais básica democracia representativa liberal no Chile até 1990, quando a ditadura de Pinochet deixou o poder. A junta militar apoiada pela CIA que substituiu Allende foi responsável pelas mortes e desaparecimentos de milhares, e pela tortura de muitos mais. O Chile tornou-se uma das primeiras experiências do neoliberalismo, com o grupo de economistas conhecido como os Chicago Boys a dirigir políticas que viram a mistura horrível de governança autoritária brutal e desregulamentação econômica que viria a ser a marca dessa ideologia.

Nos dias moribundos do governo socialista de Allende, estavam sendo feitos planos para instalar uma sala de controle futurista no Palácio Presidencial. A sala de controle – com suas telas de visualização, feeds de dados e cadeiras que abrigavam painéis de botões, reminiscências de algo que você poderia esperar ver na ponte da Starship Enterprise – tinha sido inicialmente construída em outro lugar em Santiago. Sua mudança para a sede do governo foi considerada vital para derrotar o desafio que Allende enfrentou. Mas era muito pouco, tarde demais, e o sistema que ajudou a impedir uma tentativa de golpe anterior em 1972 não estava funcionando a tempo.

Esta sala de controle era parte de um dos primeiros sistemas de informação em rede, computadorizados do mundo, anos antes da internet se tornar amplamente utilizada. Em uma época em que os computadores ainda eram relativamente raros, a ideia de uma rede de computadores estendendo-se por um território tão grande como o Chile era utópica no extremo. Na prática, a rede que compunha o Projeto Cybersyn, como a empresa foi nomeada, era composta por máquinas de telex, mas permitia algo próximo do controle adaptativo em tempo real da indústria. O objetivo era entregar a tomada de decisões na economia aos trabalhadores, e embora isso nunca tenha sido devidamente cumprido, é o início do próximo capítulo da história da cibernética anarquista.

Cibernética Organizacional de Stafford Beer

A experiência do socialismo chileno sob Allende terá, sem dúvida, um apelo limitado aos anarquistas. Por mais sincero que fosse Allende e os que o rodeavam, eles estavam empenhados em melhorar o bem-estar e democratizar a economia, o Chile permaneceu um estado centralizado com um sistema representativo de democracia. Era uma sociedade muito mais aberta e livre do que a que a substituiu em 1973, mas ainda estava a vários passos de distância do tipo de auto-organização descentralizada que os anarquistas querem construir.

Projeto Cybersyn, no entanto, desencadeou uma radicalização de tipos em cibernética, e em particular no trabalho de um influente ciberneticista: Stafford Beer. Beer foi a inspiração para a discussão de McEwan sobre anarquismo e cibernética; ele tinha visto Beer na palestra do Salford College of Advanced Technology no Reino Unido. Após a eleição de Allende, Beer, na época um consultor de gestão, foi convidado para aconselhar tentativas de implementar a democracia no local de trabalho e o controle dos trabalhadores da indústria. O envolvimento de Beer rapidamente foi além de apenas assessoria, e o Projeto Cybersyn foi o resultado.

Para Beer, a experiência foi transformadora (ele relatou a experiência em grande parte na segunda edição de seu livro Brain of the Firm, publicado em 1981). Ele foi para o Chile como um consultor muito procurado, acostumado a uma vida luxuosa de carros Rolls Royce e viagens internacionais de primeira classe. Pouco depois da morte de Allende e do fim do socialismo no Chile, Beer virou as costas a grande parte desse estilo de vida. Ele se mudou para uma pequena casa de campo no País de Gales sem água corrente, e enquanto continuava a fazer o trabalho destinado a melhorar a eficiência na gestão empresarial, um traço decididamente político entrou em seu pensamento.

Em 1973, o sangue do golpe contra Allende ainda estava úmido, Beer deu uma série de palestras para a Canadian Broadcasting Corporation. A série foi intitulada ‘Designing Freedom’ (posteriormente publicada como livro). Nele, Beer tocou uma ampla gama de tópicos, lamentando o autoritarismo e pressagiando a vigilância e manipulação das mídias sociais. O tema geral das palestras foi a necessidade de descentralização e autonomia na organização, para facilitar a capacidade de resposta à mudança McEwan tão vigorosamente articulada em relação ao anarquismo. No final da penúltima palestra, Beer declarou:

“De acordo com a análise da centralização e descentralização com que começamos, é claro que deve haver uma grande devolução do poder. Eu acho que deveria ser aberto a uma comunidade para organizar seus serviços sociais (educação, saúde, bem-estar) exatamente como quiser, e aceitar ou rejeitar as iniciativas de inovadores locais.. [… ] Penso que os trabalhadores devem, em geral, ser livres para organizar o seu próprio trabalho e que os estudantes (até à idade da morte) devem ser livres para organizar os seus próprios estudos”.[13]

O oposto deste tipo de democracia descentralizada, para Beer, era um sistema que consagra a tomada de decisão em estruturas rígidas e top-down de comando e coerção. “Assim é a liberdade perdida”, disse na palestra final, “não por acidente, mas como resultado de um sistema projetado para restringir a liberdade. Minha mensagem é que devemos redesenhar esse sistema, para produzir liberdade como uma saída”[14]. O título ‘Designing Freedom’ pretendia transmitir a necessidade de criar práticas sociais e instituições nas quais indivíduos e grupos possam realizar sua liberdade.

Beer não era anarquista, mas há uma convergência dessa linha de pensamento com quantos anarquistas, como Kropotkin, via a liberdade individual como o resultado da organização social anarquista ao invés de pré-existente. Organização anarquista pode ser vista, segue, como um sistema projetado para produzir liberdade. Nas palestras de Designing Freedom, Beer deu uma introdução geral à sua marca de cibernética organizacional. Seu principal corpo de trabalho foi focado em algo que ele chamou de ‘The Viable System Model’. É nesta conta da organização eficaz e descentralizada que a cibernética anarquista pode ser avançada.

O Modelo de Sistema Viável

O Modelo de Sistema Viável (Viable System Model) de Beer (VSM) é notoriamente difícil de resumir, mas vou tentar. A VSM na tentativa de mostrar como qualquer sistema pode lidar com a variedade e mudança, mantendo tanto a autonomia de suas partes quanto sua coerência como um sistema global. É uma maneira de expandir como pensamos sobre os princípios cibernéticos básicos da auto-organização efetiva – princípios já abordados neste artigo na discussão do Anarchy essay de McEwan – e foi introduzida por Beer especificamente com a organização social em mente.

A VSM seleciona as cinco funções diferentes que qualquer sistema social efetivo e auto-organizado incorporará. Primeiro, há as atividades primárias da organização. Estes são realizados de forma amplamente autônoma. Estas atividades e as unidades autônomas que as realizam são o objetivo da organização. Todas as outras funções existem para facilitar essas partes em seguir com as coisas como eles querem (até um ponto; eu vou voltar a isso em breve). A segunda função da organização é a comunicação entre estas partes autônomas. Para que a atividade de uma parte não prejudique a atividade de outra, elas devem ser capazes de se comunicar e compartilhar informações. Assim, é garantido um nível mínimo de coordenação.

Além disso, há as funções que reúnem essas atividades para que elas operem como uma organização e não um conjunto de atividades sem direção comum. A terceira função, então, está relacionada com o planejamento das atividades primárias da organização para que elas se unam em direção a um objetivo comum. O quarto olhar para fora da organização e para o futuro, para avaliar as mudanças no ambiente mais amplo em que a organização se encontra e garantir que aqueles envolvidos nas atividades primárias possam ajustar-se de acordo. A quinta e última função é focada na identidade ou ethos da organização, que molda todas as atividades que a organização realiza.

Os ciberneticistas Raul Espejo (que trabalhou com o Beer no Chile) e Antonia Gill chamam estas funções: Implementação – as atividades básicas da organização; Coordenação – comunicação entre atividades básicas; Controle – o planejamento que dá às atividades básicas um objetivo comum; Inteligência – integrando uma perspectiva mais ampla no planejamento; e Política – a identidade da organização que fornece seus valores e que orienta todas as outras atividades. Os anarquistas podem se irritar com a palavra ‘controle’ aqui, mas como eu mencionei na discussão do artigo de McEwan na Anarchy, o controle no trabalho aqui não é comando hierárquico. É, nas palavras da ciberneticista Allenna Leonard, “o controle de um esquiador descendo uma colina”[15]. Tem mais a ver com encontrar o equilíbrio coletivo do que com o cumprimento de uma autoridade superior, e pode ser pensado como o tipo de controle que um grupo de músicos exerce quando improvisam.

Muitas das organizações onde a VSM tem sido aplicada têm sido corporações e governos, e essas funções estão frequentemente ligadas a posições estruturais específicas na hierarquia corporativa ou política. Em seu livro Diagnosing the System for Organizations (publicado em 1985), Beer escreveu que a identificação de certas funções com posições em uma hierarquia era “simplesmente o resultado de uma aceitação geral do conceito hierárquico”[16]. Convém aos que estão no poder, e àqueles que esperam estar um dia no poder, separar as funções de planejamento como algo reservado para gestores e burocratas, especificar atividades primárias como inferiores na cadeia de comando e torná-las responsabilidade das pessoas sobre as quais podem governar.

Não era assim que Beer via as coisas. Se levarmos o VSM de volta ao básico, fica claro que essas funções não precisam ser organizadas hierarquicamente. Eles podem ser igualmente bem realizados em uma forma radicalmente democrática de organização, no tipo de organização anarquista que está empenhada na eliminação das hierarquias de comando e dominação.

Em meados da década de 1980, Jon Walker, um trabalhador da cooperativa de alimentos integrais Suma no Reino Unido, escreveu a Beer, perguntando-lhe duas perguntas: o VSM poderia ser usado em formas cooperativas de governança?; o VSM exige autoridade e obediência? Beer respondeu sim à primeira pergunta, não à segunda. No The VSM Guide, Walker escreveu: “uma estrutura organizacional eficaz pode ser baseada na liberdade individual, […] a gestão autoritária não é a única alternativa”[17].

Através da deliberação democrática e da tomada de decisão coletiva, cada uma das funções do VSM pode ser replicada sem recorrer a estruturas hierárquicas de governança. Pessoas e grupos envolvidos nas atividades básicas de uma organização podem se comunicar de forma descentralizada e em rede, formal ou informalmente, para coordenar o que fazem. Estas atividades podem ser reunidas sob um conjunto comum de objetivos, mediante acordo de todos os envolvidos. A tarefa de planejar o futuro e lidar com mudanças quando elas acontecem, todos na organização podem desempenhar um papel, seja diretamente ou através de delegados. E a identidade da organização e os princípios que ajudam a definir seus objetivos podem ser uma questão de tomada de decisão participativa ou processos como o desenho constitucional em que todos os membros de uma organização têm voz. Walker escreveu como nas cooperativas de trabalhadores, a operação (atividades primárias) e as funções do metasistema (coordenação, planejamento, ethos) podem ser atualizadas pelas mesmas pessoas entrando em diferentes papéis “quando o trabalho estava sendo feito eles eram Operação, quando o planejamento era necessário eles articularam o Metasistema. O princípio fundamental da autogestão significa que não existe uma divisão clara dos papéis das pessoas que trabalham no grupo”[18].

Alguns dos trabalhos de ciberneticistas como Walker – ao lado de Angela Espinosa e outros – têm feito nas últimas décadas apontando nesta direção e nos leva um pouco do caminho rumo ao desenho da liberdade que Beer defendeu em 1973. Não é uma liberdade irrestrita, uma liberdade sem restrições. Os envolvidos nas atividades básicas da organização são limitados em sua autonomia. Eles são parte de uma organização abrangente com metas e planos, no entanto eles são definidos. Mas esses limites, essas metas, esses planos, não são definidos por gerentes, chefes ou burocratas mais acima no organograma. São limites estabelecidos por acordo democrático participativo e baseados no consentimento, não na subserviência.

Importante, o VSM não é um modelo para como as organizações devem ser estruturadas. É uma ferramenta que as organizações podem usar para ajudar a entender as dinâmicas e padrões de organização e comunicação que tornam suas organizações eficazes. Como Beer colocou em Diagnosing the System for Organizations, não se trata de um modelo de organização que seja verdadeiro ou falso. É uma forma de pensar os problemas organizacionais que é mais ou menos útil. Como tal, pode ser usado para ajudar a diagnosticar problemas à medida que estes surgem, como tem sido muito recentemente, por exemplo, na cooperativa de trabalhadores Pagkaki na Grécia, bem como em várias cooperativas em que Walker esteve envolvido.

Cibernética Dentro e Além da Crise Atual

O VSM também pode ser utilizado para pensar como e por que certos exemplos de organização anarquista funcionam, ou não, conforme o caso. Occupy Wall Street, em sua forma mais efetiva, era um sistema no qual cada grupo de trabalho tinha um nível de autonomia, coordenado através da comunicação formal e informal com outros grupos de trabalho. Mas os grupos de trabalho também eram vinculados por decisões tomadas na Assembleia Geral ou no Conselho de Representantes. Essas instituições não eram um corpo ou poder acima dos grupos de trabalho, mas fóruns para acordos e negociações consensuais em que todos poderiam participar, diretamente na Assembleia Geral ou através de delegados no Conselho Spokes.

Embora o VSM não tenha sido usado por ativistas do Occupy Wall Street, que o Conselho de Grupos Diretos foi criado devido à incapacidade da Assembleia Geral para fazer o tipo de planejamento exigido do campo fala da capacidade do VSM de refletir insights que aqueles intimamente envolvidos nas práticas de auto-organização muitas vezes virão a si mesmos. Mais uma vez, a VSM não é um modelo. É uma forma de compreender e nomear algumas verdades fundamentais da auto-organização eficaz. Como qualquer verdade deste tipo, elas podem ser preenchidas de diferentes maneiras. O Occupy foi uma dessas formas.

Como muitos de nós nos envolvemos em grupos de ajuda mútua desde o início do ano passado – algo que certamente continuará à medida que a crise social e política se aprofunda, mesmo quando a crise médica passa – talvez a VSM não seja também uma ferramenta que usamos para diagnosticar os problemas que encontramos? O que a imposição da dinâmica de caridade e cooptação por burocratas do governo local significa não só para a agenda política dos grupos de ajuda mútua, mas também para sua capacidade de responder efetivamente a uma situação complexa e em rápida mudança? As hierarquias que se desenvolvem e a lentidão e distância associadas à tomada de decisão ameaçam a própria capacidade dos grupos de ajuda mútua para fazer o que foram criados: responder rapidamente às necessidades dos envolvidos? Como muitos anarquistas sabem muito bem, a ajuda mútua funciona melhor quando é descentralizada, autônoma e altamente adaptável. O VSM dá-nos uma forma de articular isso e apontar com precisão os bloqueios de comunicação e tomada de decisão que surgem.

Assim, quase sessenta anos depois, podemos começar a dar os próximos passos lógicos do artigo de John McEwan em Anarchy e imaginar uma cibernética anarquista. É uma cibernética que se baseia nos princípios fundamentais da complexidade e adaptabilidade, na compreensão científica da auto-organização em sistemas, na demanda fundamental de autonomia e descentralização, sobre o reconhecimento da importância da coordenação organizacional. Mais do que isso, é uma cibernética que não faz saltos infundados em sua forma de pensar sobre a organização, da autonomia à hierarquia, da descentralização a uma estrutura corporativa ou governamental top-down.

Com crescente interesse nas articulações radicais da cibernética nos últimos anos (no trabalho de marxistas libertários como o General Intellect Unit e Jeremy Gross, bem como leituras anarquistas como as de John Duda, Aurora Apolito e Serendipity Tektological), agora é talvez um melhor momento do que qualquer outro para olhar para trás através desta tradição muitas vezes mal interpretada e mal caracterizada e retirar os elementos que podem avançar a nossa compreensão teórica e prática de auto-organização.

Este ensaio começou a falar sobre as origens da palavra ‘cibernética’ na metáfora de Platão do navio. Platão comparou o capitão do navio ao indivíduo que exerce poder autocrático em uma cidade-estado. Leo Tolstoy usou uma metáfora semelhante. Na Guerra e Paz, Tolstói escreveu: “parece a cada administrador que é apenas pelos seus esforços que toda a população sob seu governo é mantida em movimento. [… ] Enquanto o mar da história permanece calmo o governante-administrador em seu latido frágil, segurando com um gancho de barco para o navio do povo e ele mesmo movendo-se, naturalmente imagina que seus esforços movem o navio que está segurando”[19]. Mas quando a tempestade atinge, nas palavras de Ruth Kinna, “o capitão é revelado tanto para si mesmo como para a tripulação como fraco e inútil diante da crise”[20]. Se juntarmos a cibernética e o anarquismo, podemos revelar à luz não só a loucura dos capitães do Estado, mas também os mecanismos de auto-organização que podem nos ajudar a traçar um curso diferente.

[1] John Preston and Rhiannon Firth, Coronavirus, Class, and Mutual Aid in the United Kingdom (Cham: Palgrave Macmillan, 2020), 61.

[2] Colin Ward, “Anarchism as a Theory of Organisation”, The Anarchist Library, accessed May 9, 2021, theanarchistlibrary.org/library/colin-ward-anarchism-as-a-theory-of-organization. A tradução desse artigo você encontra aqui: https://bibliotecaanarquista.org/library/colin-ward-anarquismo-como-teoria-da-organizacao N.T.

[3] Ward, “Anarchism as a Theory of Organization”.

[4]W. Grey Walter. A Short Biography,” Brain & Mind, accessed May 9, 2021, cerebromente.org.br/n09/historia/greywalter_i.htm.

[5] William Grey Walter, “The Development and Significance of Cybernetics”, Anarchy 25 (March 1963), 89.

[6] Ibid. 89

[7] John D. McEwan and Willian Grey Walter, “Cybernetics, Errors and Anarchism”, Anarchy 26 (April 1963), 111.

[8] Ibid. 111

[9] Piotr Kropotkin, “Anarchism: Its Philosophy and Ideal”, The Anarchist Library, accessed May 9 2021,

[10] John D. McEwan, “Anarchism and the Cybernetics of Self-organising Systems”, Anarchy 31 (September 1963), 282.

[11] Ibid. 278

[12] Ibid.

[13] Stafford Beer, Designing Freedom (Toronto: Anansi (1974) 1993), 78–79.

[14] Ibid. 99

[15] Allenna Leonard, “Viable Systems Model Revisited. A Conversation with Dr Allenna Leonard”, The System Excellence Group.

[16] Stafford Beer, Diagnosing the System for Organizations (Chichester: John Wiley & Sons, 1985), 92.

[17] Jon Walker, “The VSM Guide,” accessed May 9 2021, esrad.org.uk/resources/vsmg_3.

[18] Ibid.

[19] Leo Tolstoy, “War and Peace”, The Anarchist Library, accessed May 9 2021, theanarchistlibrary.org.

[20] Ruth Kinna, “The Transformative Power of Crisis”, IAI News, accessed May 9 2021, iai.tv/articles/the-transformative-power-of-crisis-auid-1772.