Tomás Melo
Passado e futuro primitivo: a atualização de um mito
Resumo: Neste artigo o antropólogo Tomás Melo discute criticamente as vagas noções antropológicas do chamado “anarco”-primitivismo. À partir de um debate profundo em sua área e uma análise detida sobre tais teorias, o cientista social esmiúça a problemática primitivista e aponta os limites teóricos e políticos de sua confusa elaboração.
Nos últimos anos, a discussão em torno do anarco-primitivismo ou da crítica anti-civilização vem causando grande polêmica no meio anarquista. Polêmica esta que, na pior das hipóteses, nos possibilita refletir sobre novas tendências dentro do anarquismo, caminhos que se abrem, tomam visibilidade e que mesmo fora do campo político habitual, passam a ser objeto de debate, mais ou menos modesto, nos círculos anarquistas.
Antes de tudo, vale salientar que existe certa confusão no que diz respeito ao que no Brasil vem sendo chamado anarco-primitivismo. Na maioria das vezes, nos referimos ao primitivismo como um bloco unitário de teorias que na verdade são diferentes, algumas vezes até contrárias entre elas. Nesta oportunidade estarei focado em uma questão particular. Meu objetivo é tratar sobre algumas conclusões que perpassam estas diferentes tendências, especificamente, a ideia sobre o desenvolvimento da civilização e a oposição “civilizado x primitivo”que podemos encontrar em obras como “O futuro primitivo” de John Zerzan (2006), ou mesmo nos argumentos centrais das obras de Daniel Quinn (2001), seus maiores baluartes.
A crítica ao que chamaremos aqui “primitivismo” já vem sendo feita de maneira qualificada há algum tempo. Nos fóruns de discussão da ZNET, revista em que participam Noam Chomsky, Michael Albert, Howard Zinn entre outros, houve um debate entre Zerzan e Albert que se tratava, em particular, das consequências políticas do que viria ser o primitivismo. Outra crítica atual bastante potente foi formulada pelo sociólogo francês Alain Caillé em seu artigo “John Zerzan e a confusão primitiva”[1] no qual o autor faz uma leitura atenciosa de “futuro primitivo” mostrando o quão frágil e por vezes irresponsáveis são algumas afirmações e conclusões as quais chega Zerzan.
Acredito que alguns estudos clássicos e contemporâneos em Antropologia podem auxiliar a trazer outros termos para o debate acerca do primitivismo. Tentarei trazer a tona algumas destas contribuições, sem perder de vista que este ensaio não foi escrito de “especialistas para especialistas”, havendo o risco de uma ou outra generalização esquemática para fins elucidativos.
O mito da sociedade primitiva [2]
As discussões em torno disto que veio a se chamar “sociedade primitiva” se confundem com a própria história da Antropologia enquanto forma de conhecimento. Tal noção foi fundamental para se constituir a grande divisão entre “nós” (civilizados) e “eles” (primitivos) e foi responsável também por dar o estatuto de ciência à antropologia.
A teoria que primeiramente elegeu o problema sobre o “primitivo” para si foi o que conhecemos por evolucionismo. O evolucionismo em antropologia diz respeito à preocupação sobre a origem e a história da humanidade a partir de um ponto de vista científico. De maneira geral, a preocupação do evolucionismo no fim do século XIX era traçar o percurso feito pela humanidade desde um período primeiro até o moderno. Sua questão era saber como aquelas organizações sociais “primitivas” fizeram para chegar a um alto nível de desenvolvimento, ou seja, a civilização.
Foram autores como Henry Maine, Johannes Bachofen, Mc Lennan e Lewis Morgan que primeiramente se preocuparam com questões tais como o matrimônio, a família, o desenvolvimento do direito, do Estado e da propriedade, partindo de estudos de outros povos na tentativa de compreender como se desenvolveram tais instituições.
O pai fundador da antropologia britânica, Edward Burnett Tylor (1871) foi um dos principais antropólogos evolucionistas. Ele indica que, segundo algumas evidências, seria possível traçar o curso que a civilização seguiu a partir de uma noção de sobrevivência. Sua hipótese era de que algumas categorias, opiniões ou costumes permaneciam existindo em contextos sociais diferentes dos que os originaram, tal como provas da existência dos modos de vida anteriores. Desta forma, Tylor propusera um dos argumentos fundamentais para fazer sua investigação, ou seja, podemos perceber que somos herdeiros de diversos comportamentos que não inventamos, sendo nada mais que transmissores e modificadores de costumes de sociedades passadas, portanto, nosso modo de vida é bem mais que obra do acaso, eles remetem a uma história longínqua.
Lewis Henry Morgan (1976), por outro lado, se concentra nos costumes e instituições sociais e domésticas que corroboraram para o desenvolvimento da família. O autor separa e desenvolve seu argumento evolutivamente, partindo de uma primeira etapa que se desenvolve desde as relações de promiscuidade e o casamento entre irmãos e irmãs passando por várias formas de organização do parentesco que vão dando origem à novas formas familiares. Estas etapas de desenvolvimento passam desde a suspeita de um momento em que existia uma horda promíscua, passando por interdições de casamento entre irmãos e irmãs, o aprimoramento de técnicas que levam a humanidade a outra fase ou ponto evolutivo, a transformação do casamento por pares sem coabitação exclusiva, o momento em que a humanidade começa a viver em lugares mais limitados territorialmente e fazer uso do pastoril. Deste ponto decorre a família patriarcal, que trata de uma relação de exclusividade da mulher para com o homem que fica livre para ter outras mulheres. A quinta e última fase é onde Morgan identifica o aparecimento da propriedade e de certo tipo de direito primitivo que garante a transmissão dos bens aos descendentes em linha direta. A partir daí surge à família monogâmica em que homem e mulher têm exclusividade sexual e coabitam um lugar.
Para além dos nomes e tipos familiares definidos por Morgan, o que nos é importante compreender é que o autor traça uma história evolutiva do homem baseado na suposta evolução da família. A partir do momento em que o ser humano passou a criar técnicas e novos meios de suprir sua alimentação, tal como a pesca ou mesmo começando a expandir pela terra, torna-se, mais difícil manter seu ímpeto promíscuo, assumindo o casamento como forma de defender suas mulheres, mesmo que tenham sobrado resíduos destas práticas anteriores. Desta forma,
A promiscuidade pode ser deduzida teoricamente, como condição social que necessariamente precedeu a família consanguínea; mas permanece mergulhada nas brumas dos primeiros tempos da humanidade, inacessível ao conhecimento positivo. (MORGAN, 1976, p.245).
O autor assume que foi a forma do casamento entre irmãos e irmãs carnais e colaterais no grupo que deu origem à família constituindo a raiz da instituição familiar, sendo as outras formas, derivações desta primeira. Assim, o casamento por pares e a transformação da família decorrente disto é tratada por Morgan como um passo fundamental dos “selvagens” rumo à “barbárie”, dando enfim, um passo importante rumo à civilização. Desta maneira, reduz-se a dimensão de possibilidade matrimonial e estes indivíduos começam a escolher uma de suas muitas mulheres como principal, num constructo proto patriarcal. No entanto, este acordo ainda é razoavelmente mais livre, já que ambos podem se desligar um do outro com pouca ou nenhuma represália.
É a partir do desenvolvimento técnico da humanidade que começam a ser traçadas linhas que conduziram à vida pastoral e a família patriarcal. A partir do autor, a instituição da propriedade e o progresso técnico possibilitaram produzir cada vez em maior variedade e quantidade, sendo este o principal vetor a influenciar diretamente uma nova mudança na família. "O conceito de propriedade, nebuloso a princípio, acabou por se tornar uma paixão dominante no espírito dos homens." (MORGAN, 1976, p.249) Assim, "A família monogâmica no verdadeiro sentido do termo só se tornou possível pela primeira vez na história quando os filhos do proprietário conquistaram o direito de herdar os seus bens”. (idem, p.249)
Morgan coloca a questão evolucionista reafirmando que cada um destes sistemas são na verdade antecessores de outros e também diretamente responsáveis por aqueles que o sucede. Finalizando esta discussão fazendo uma defesa de seu trabalho a partir das anteriores interpretações sobre as origens do homem que repousavam sobre a noção de degradação. O que Morgan vai defender é justamente que a partir do desenvolvimento técnico e da experiência do homem desenvolveu-se também, consequentemente a instituição familiar, tratando-se na verdade de uma questão de compreender que o ser humano precisou passar por estas "fases" para alcançar o estagio civilizado. Mas, no entanto, cabe salientar, que existem - ao falar desta parte evoluída da humanidade - segundo o autor, "boas razões para crer que antes de se diferenciarem, as tribos arianas e semíticas faziam parte da massa indistinta dos bárbaros e, mais remotamente ainda, de antepassados selvagens" (MORGAN, p.251). Um dos pontos fundamentais em Morgan que dá o tom de suas análises é precisar "a extensão do progresso humano" (MORGAN, 1976, p.243).
Por outro lado, nos primeiros capítulos de sua obra “Ancient Law”, Henry Maine (Apud, KUPER, 2008) mostra uma perspectiva diferente da questão sobre a evolução. O foco de sua crítica sustentava que as regras e normas sociais não se davam a partir de dispositivos legais que ordenavam as obediências com perigos de sofrer sanções normativas. O pano de fundo desta discussão são as condições de formação das sociedades humanas anteriores, criticando tanto a idéia de um estado de natureza belicoso em que os homens guerreavam entre si, e para colocar termos em suas disputas assumem o Estado enquanto forma de contrato, da mesma forma que criticava a possibilidade de um estado natural de indivíduos bons e livres.
A partir destas bases, para Maine é o poder do pai que determinava a natureza do parentesco. E tais relações de parentesco forneciam a base para as relações políticas. Para ele são as relações de parentesco que dão o pano de fundo para as demais relações políticas, com base no sangue que seria a única forma de base de comunidade com funções políticas. Estas relações nas sociedades antigas eram determinadas pela posição de nascimento dentro do grupo familiar, esta é a relação que ele chamou por “Status”. Nas sociedades modernas, os indivíduos estabelecem relações de poder a partir da negociação e da luta política, estas são as relações de “contrato”. Tal argumento pode ser condensado em uma famosa frase de Maine: “Podemos dizer que o movimento das sociedades em progressão tem sido até então um movimento do Status para o Contrato”, segundo Kuper, “Os radicais se enganaram. O contrato social foi uma invenção bem moderna”. (KUPER, 2008, p.74)
Maine se esforça para mostrar que a legislação e a codificação ao invés de terem sido o início da história das sociedades, elas ao contrário, marcaram o pico da evolução legal, não seu ponto de partida. Sua questão era que o despotismo patriarcal coloca os sujeitos a mercê dos caprichos no seio da família, o status era o que contava não o contrato.
As formas baseadas no Status evoluíram e estes déspotas excêntricos passaram a assumir-se como soberanos que alegavam inspiração divina para seus julgamentos. Estes foram substituídos por aristocratas e assim por diante, até chegarmos mais recentemente quando existe uma considerável variedade nestes formatos, por exemplo, uma oligarquia política ou uma casta sacerdotal.
Quando o autor discute a origem da propriedade, argumenta que na sociedade antiga, a propriedade era controle do pai. Seu filho mais velho era seu herdeiro. E estas formas só se desenvolveram a partir de longos períodos históricos, tendo um impacto muito grande nas formas de organização social. O que podemos perceber nas análises evolucionistas, além da preocupação em determinar as linhas gerais da evolução de uma forma mais simples para outra mais complexa de vida humana é que foi necessário eleger termos sobre os quais tecerem a análise, como o desenvolvimento da família, das regras de propriedade e do próprio Estado.
A reapropriação do mito
Em grande parte, a questão sobre a “sociedade primitiva” continua a ser um problema para os antropólogos, pretende-se quase que “corrigir um erro” do evolucionismo ao designar um estatuto de diferenciação entre inferiores e superiores, primitivos e civilizados, pessoas dotadas de um pensamento lógico e outros de um pensamento pré-lógico. Para simplificar um debate bastante antigo e de muitas perspectivas diferentes, irei tratar neste texto da crítica ao evolucionismo de maneira a direcionar uma crítica similar ao primitivismo. Resumidamente, atentaremos para a perspectiva histórico evolutiva que entende os grupos humanos como um bloco monolítico determinado que desenvolveu-se linearmente.
Este exercício de retorno aos evolucionistas para fazer uma crítica ao primitivismo pode ser curioso na medida em que não considero o evolucionismo como detentor de uma explicação plausível desta “história”. Pelo contrário, a partir deste debate sobre o evolucionismo em antropologia podemos perceber como o primitivismo faz um movimento similar, que pretendo demonstrar.
O que John Zerzan (2006), os primitivistas e as ideias anti-civilização fazem é atribuir uma narrativa diferenciada deste mito da sociedade primitiva para fins de legitimar suas ideias. Ao elaborar uma teoria que elogia o “primitivo” como forma avançada de vida, alteram-se os termos e mantém-se o mito da existência de atributos específicos aos homens do “Alto Paleolítico” que os fazia organizar-se de maneira mais livre e igualitária, concluindo que a humanidade viveu algo próximo a um anarquismo natural presente no seio da humanidade pela maior parte de sua história. Para os primitivistas, a civilização é o próprio produto da degeneração e deve acabar para que a existência seja novamente algo próximo à idealização pueril que podemos encontrar no Futuro Primitivo.
O exercício de Zerzan (idem) nada mais é o de virar certos argumentos evolucionistas de cabeça pra baixo. Se por muito tempo o “primitivo” era sinônimo de atraso, brutalidade e escassez, o argumento primitivista faz o movimento oposto, mas igualmente exagerado, ou seja, ver no fato da diferença de sociedades a possibilidade hipotética como demonstraremos – da existência de estruturas libertárias no Alto Paleolítico, tornando toda a questão ainda mais complexa quando sugere um posicionamento político a partir desta “constatação”.
O ponto problemático é que tanto Zerzan quanto Quinn, não fazem uma crítica ao método e à forma de perceber a história. Quando muito, Zerzan começa seu Futuro Primitivo ensaiando alguma objeção sobre a especialidade departamental das ciências, mas ele para por ai. Ao procurar os motivos pelos quais aquela forma de vida era melhor ele precisa fazer um movimento de tratar questões amplamente abertas nas áreas de estudo as quais faz referência como se fossem questões estabelecidas que fazem de sua teoria algo irrevogável.
O mito da sociedade primitiva foi largamente usado de maneira política por diversos autores, no entanto, este não foi usado exclusivamente para defender uma única posição. A ideia de um desenvolvimento evolutivo e linear que trouxe a humanidade para determinado ponto histórico serviu como fonte de explicação para séries de questões, desde as ideias dos teóricos contratualistas para explicar a existência e mesmo a necessidade do Estado até ao desenvolvimento teórico do marxismo. O que podemos perceber é uma grande falta de elementos para uma análise precisa desta questão, que resulta em uma ampla margem para as mais diversas interpretações deste mito.
Pretendo demonstrar que categorias como as de “primitivo” e de “Alto Paleolítico” são categorias forjadas a partir de uma ideia de desenvolvimento histórico evolutivo. Portanto, qualquer discussão que se coloque nestes termos será tautológica, na medida em que uma interpretação específica deste desenvolvimento já está pressuposto desde o início.
O conceito (de sociedade primitiva) como um todo é fundamentalmente débil. Não há nenhuma via sensata na qual se pode especificar o que é uma sociedade primitiva. O termo implica algum ponto de referência histórico. Ele presumivelmente define um tipo de sociedade que antecede formas mais modernas, análogo à história evolucionária das espécies naturais. Entretanto, as sociedade humanas não podem ser traçadas retroativamente até um ponto singular de origem. Tampouco há algum meio de reconstituir formas sociais pré-históricas, ou de classificá-las e alinhá-las em uma série temporal. Não há fósseis de organização social. (KUPER, 2008, p.22)
A ideia de uma sociedade primitiva munida de determinado aparato sociotécnico o mais rudimentar tendo que lidar com os critérios mais simples e objetivos da sobrevivência em algum momento do Alto Paleolítico trata de uma tentativa de explicação de um “outro” misterioso sobre o qual pouco se sabia naquele momento, assim, o esforço dos teóricos da época era de alguma maneira observar estes povos para saber como fomos e como chegamos a ser como somos.
Um dos problemas desta perspectiva histórica defendida por Zerzan ou mesmo por Daniel Quinn é acreditar que a história pode ser traçada retroativamente por desenvolvimentos técnicos que estabelecem a organização social de maneira específica e irrefutável. Como se determinadas condições técnicas levassem irrefutavelmente a uma organização social específica. Desta forma, elege-se como “pecado original” o marco da agricultura como uma prova absoluta da ascensão da civilização e como forma de vida que desencadeia todos os problemas da humanidade. Deste entendimento decorrem duas questões: uma delas é que mesmo com poucos elementos para esta afirmação taxativa, tal relação “agricultura x civilização” não é tão mecânica como expõem os autores, em segundo, a forma produtiva não condiciona da maneira como os autores supõem a organização social, da mesma forma que sociedades que não se utilizaram da chamada “agricultura totalitária” também se organizavam de maneiras muito diferentes entre si. As organizações sociais dos ditos “primitivos” não se desenvolveram por transformações diretas, ou mesmo mecânicas que transformaram as formas de organização social da maneira como os autores fazem parecer.
É importante ressaltar que as informações que temos sobre estas sociedades decorrem em grande parte de hipóteses quase filosóficas sobre a ideia de sociedade primitiva. Estas ideias persistiram por mais de um século e continuam ainda hoje tendo relevância para a antropologia, no entanto, as pesquisas de campo feitas com povos aos quais se atribuíra este estereótipo “primitivo” é muito recentes e data em sua maioria da última década do século XIX. Portanto, usar-se destes termos para fundamentar uma ideologia política é no mínimo perigoso.
A questão do Alto Paleolítico e os !Kung
Adam Kuper (2008) quando se refere a “humanos plenamente modernos” trata dos mesmos heróis fictícios remetidos há 10.000 anos atrás num momento précivilização do qual se refere Zerzan. Se por um lado podemos sugerir, juntamente com alguns autores clássicos da antropologia, a existência de mudanças sem precedentes num momento mais ou menos perto deste, que provavelmente teve repercussões na organização social destes grupos, se mantém radicalmente difícil afirmar como eram estas sociedades do Alto Paleolítico.
O argumento de Zerzan ou de Quinn não são absolutamente descartáveis já que existe efetivamente a hipótese destes terem sido uma economia de pequena escala, baseada na caça e na coleta e com pouca estratificação social, no entanto,
(...)Nenhuma conclusão pode ser traçada sobre estes terem sido unidades domésticas; e, se o eram, quem as habitava, ou se mulheres e homens possuíam tarefas diferentes. As pessoas enterravam seus mortos, talvez uma indicação de sentimentos religiosos. Alguns acadêmicos especulam que a arte das cavernas reflete crenças em um mundo espiritual. Entretanto, pode-se dizer pouco além sobre as ideias cosmológicas correntes durante o Alto Paleolítico com segurança. (KUPER, 2008, p.23)
O mesmo problema pode ser visto também na obra “O processo civilizatório” de Darcy Ribeiro (1987), onde o desenvolvimento histórico destes povos é traçado não só evolutivamente, como também baseado fundamentalmente em suas características produtivas. Assim, as formas de acesso à reprodução econômica, ou seja, as formas produtivas constituem o principal vetor que organiza as formas culturais de entendimento do mundo e da ação social. Esta perspectiva assume indiretamente que existe um “todo” das sociedades do Alto Paleolítico que foram progressivamente desenvolvendo formas técnico-produtivas mais refinadas até chegar à civilização. No entanto, não se pode supor que estas sociedades eram um bloco monolítico de similitudes, ao contrário, a possibilidade delas variarem entre si é muito maior, tanto no que diz respeito a crenças, refinamento técnico, formas de organização do parentesco, formas de troca, divisão do trabalho, etc.
Adam Kuper nos sugere novamente esta contingência dos argumentos deveras taxativos dos primitivistas;
Em suma, a evidência arqueológica pouco pode nos dizer sobre a natureza das sociedades do Alto Paleolítico, tampouco sobre a extensão da conformação dessas a um padrão comum. É apenas com o desenvolvimento da escrita, em torno de 7.000 anos atrás, que uma pré-história sociologicamente informada se torna possível. O próprio Darwin comparou variações entre espécies vivas a fim de fazer deduções sobre seus ancestrais comuns. Os antropólogos sempre foram tentados, em uma visão mais ingênua, a tratar populações vivas como substitutas das sociedades da Idade da Pedra. Para os antropólogos vitorianos, o povo mais próximo a Idade da Pedra eram ou os caçadores-coletores americanos ou os aborígenes australianos, mas os representantes da Idade da Pedra mais famosos na antropologia moderna são os bosquímanos !Kung do deserto Kalahari. (KUPER, 2008, p.23)
Não por acaso, os !Kung são um dos exemplos favoritos dos primitivistas. A partir de algumas questões em torno dos estudos sobre os !Kung poderemos ver o quão frágil são estes argumentos. Um dos autores utilizados por Zerzan (2006), como o antropólogo Richard Lee em seus estudos na década de 60 e 70 tentou explicitamente encontrar nestas populações equivalentes contemporâneos àquilo que mais se aproximaria dos grupos do Alto Paleolítico. Sua hipótese era que grupos como o dos !Kung seriam os que melhor representariam um suposto estado natural da humanidade.
Os pesquisadores dos !Kung conseguiram perceber uma série de questões que foram amplamente usadas por Zerzan, que se trata basicamente da relação que estes tinham com a manutenção de sua sobrevivência, tais como: pouco uso de ferramentas, poucas horas de trabalho e uma dieta adequada aos padrões nutricionais necessários para sua vida.
No entanto, a economia !Kung era baseada em certa divisão do trabalho social, com as mulheres gastando parte de suas horas com a coleta de alimentos plantados e com apenas os homens caçando. A coleta, no entanto, era mais interessante aos !Kung, já que a caça era menos confiável que a coleta e a segunda dava conta de boa parte de sua dieta. Segundo Kuper (2008), alguns teóricos argumentaram que a caça teve papel importante na evolução humana, já que a caça requer cooperação grupal, técnicas mais refinadas e planejamento, ou seja, novamente, parece demandar certa divisão do trabalho. Tendo um par “macho-fêmea” teríamos então o que seria adequado à alimentação de um grupo familiar (pai, mãe e filhos) que favoreceria a um desenvolvimento (evolução) da organização familiar.
Desta forma, os !Kung acabaram por servir como modelo de organização social do Alto Paleolítico, mas uma outra tese sobre o grupo foi desenvolvida por Edwin Wilmsem, outro estudioso do referido grupo que criou uma tese “revisionista” sobre os !Kung. Sua tese é de que os evolucionistas “tiraram” em suas interpretações os !Kung de seu contexto histórico mais amplo.
Os forrageadores do Kalahari viveram em contato íntimo com os grupos pastoris por pelo menos mil anos. Por dois séculos eles formaram parte de uma complexa sociedade do sul da áfrica, que incluía fazendeiros europeus e falantes de bantu. Eles não poderiam ser tomados para representar (em uma frase de Lee que Wilsen lançou de volta a ele) ‘os forrageadores em um mundo de forrageadores’. Os !Kung eram uma subclasse em um Estado moderno. (KUPER, 2008, p.26)
Uma outra perspectiva sobre os bosquímanos no Kalahari tratou de perceber que suas formas de vida tem relação direta com uma variedade de formas que se adaptaram às condições de vida que lhes era possível em determinado momento e condições, o que fez com que estes grupos tivessem grandes variações no tocante às suas formas de organização, linguagem, religiosidade, formas de ocupação do território e mesmo relações de parentesco. Segundo Kuper (2008), este argumento poderia ser generalizado. Se os !Kung não representam em verdade um modelo ideal de sociedade do Alto Paleolítico, tampouco qualquer outro grupo poderia representar um modelo ideal de caçador coletor, um tipo de elo perdido da história. Já que outros grupos como;
Os Hazda da Tanzânia, os pigmeus da floresta ituri no Congo, vários grupos inuit, aborígenes malasianos, caçadores-coletores amazônicos, eram exemplares igualmente plausíveis, sem mencionar os favoritos dos vitorianos, os aborígenes australianos. (KUPER, 2008, p.26)
A obra de Marshall Sahlins publicada em 1972 (Stone Age Economics) estudou muitos destes grupos que tinham este modelo de produção familiar interpretados idealmente por Zerzan. O fundamental, como defenderam Julian Steward e Elman Service (Apud KUPER), é que existem evidências consideráveis para afirmar que a organização social destes grupos não era uniforme, tampouco eram providos de instituições sociais que lhes eram únicas. Por exemplo, Alan Barnard (Apud KUPER) demonstrou que alguns destes povos bosquímanos do Kalahari tinham muito mais formas organizativas em comum com grupos pastoris vizinhos do que com os próprios bosquímanos. Ainda com Adam Kuper,
Em todo o caso, a crítica revisionista se manteve relevante, qualquer que tenha sido a sociedade forrageadora contemporânea escolhida como representante da população da Idade da Pedra. Não houve primeiros caçadores-coletores, milagrosamente sobrevivendo com suas instituições do Alto Paleolítico intactas, disponíveis para investigação, mesmo para os mais aventurosos pesquisadores de campo. Todos os caçadores-coletores viveram por gerações, algumas vezes por séculos, lado a lado com vizinhos que praticavam o pastoreio ou a agricultura. Eram todos cidadãos ou sujeitos desfavorecidos do Estado moderno. Suas formas de vida eram adaptadas a essa situação. (KUPER, 2008, p.27)
A grande questão – e este é meu argumento central - é que pouco pode ser afirmado com certeza sobre a organização das sociedades do Alto Paleolítico. Por outro lado, sabe-se que eram populações relativamente pequenas de caçadores coletores, mas não é possível afirmar de que maneira organizavam suas famílias, se eram monogâmicos ou poligâmicos, se tinham algum tipo de religião, divisão de trabalho ou chefes, assim como relações de herança.
Não se trata, por fim, de levar o argumento para uma discussão sobre o que foi ou não o “Alto Paleolítico”, pelo contrário, sugerir esta empreitada como projeto político é se fazer valer do mito especulativo sobre um “outro” que foi inventado. Ou seja, estudar caçadores-coletores não pode servir para uma tentativa de remontar a história e idealizá-la. O que as etnografias modernas demonstram é que condições objetivas idênticas não resultam em organizações sociais idênticas. Mesmo que considerássemos a possibilidade de um alto paleolítico em que os grupos humanos tivessem condições parecidas, esta perspectiva determinista e linear de desenvolvimento ainda estaria comprometida. Não podemos, portanto, considerar como verdadeira uma pré-condição das formas de vida e organização social dos grupos, seja por fatores técnicos, ambientais ou quaisquer outros.
Um exemplo disto é que grupos que serviram como modelo de organização mais próximas ao Alto Paleolítico tem especificidades que não são determinadas pelo seu meio ou técnicas. Grupos pastoris, nômades caçadores-coletores, fazendeiros ou grupos urbanos não diferem apenas entre cada um deles, mas diferem também internamente entre si. Os índios americanos não são todos iguais por ter condições de vida mais ou menos semelhantes. Se assim fosse, uma disciplina como a antropologia simplesmente não precisaria existir.
O que a antropologia nos oferece é justamente o privilégio da dúvida, que pretendemos responsável. Se não podemos elaborar grandes respostas sobre tais organizações, temos grandes indícios para sugerir sobre como as coisas não foram. As hipóteses evolucionistas implicam um determinismo simplista que a antropologia acaba por não adotar, e na medida do possível, elaborar uma crítica e atentar para as consequências políticas destas questões.
Autores como Zerzan ou como Quinn, mesmo em toda sua radicalidade discursiva, acabam por mostrar um grande conservadorismo ao admitir a história de maneira determinista, focando suas análises no desenvolvimento tecnológico em geral para explicar de forma causal os modos de viver dos coletivos humanos. Eles tentam dar uma resposta simples e totalizante para fatos que estão longe de serem simples e sobre os quais ainda pouco se sabe.
Não podemos, em nossas análises, esquecer que os sujeitos têm agência, ou seja, fazem escolhas, lutam e negociam, ultrapassando o que poderíamos entender como uma existência focada em uma mera reprodução orgânica em que simplesmente organizariam respostas utilitárias ao mundo. Um interessante exemplo disto é o estudo do antropólogo brasileiro Carlos Fausto, em seu livro Inimigos fiéis (2001). Nesta obra o autor apresenta questões interessantes para pensarmos este problema do determinismo e do que ele chama de modelo regressivo. Segundo o autor, o modelo parakanã trata do que a literatura etnológica moderna chamou de involutivo, ou regressivo, já que eles fizeram em determinado momento, o percurso inverso: passaram da horticultura ao forrageio, do sedentarismo ao nomadismo. Existem duas interpretações mais comuns para este fato: uma delas se trata da ideia de uma involução em que se perde não só uma forma de produção e de existência quanto um modo de vida, a outra trata da questão como perda, sendo que a regressão nunca é uma escolha, mas um fato sobre o qual não há saída.
Fausto (2001) entende as narrativas sobre esta regressão como historicamente falsas já que tal explicação se baseia numa possível falta de opções do grupo em virtude de seus conflitos. O autor explica que grande parte dos conflitos em que os parakanã se envolveram coube ao grupo a iniciativa. Da mesma forma, as dificuldades sob o cultivo da mandioca-brava, como a questão da estocagem, tanto como da maturação, poderiam também ter sido um dos motivos pelos quais eles largaram à horticultura. Por fim, o autor conclui a partir de suas evidências que as transformações parakanã podem ter sido fruto das próprias escolhas possibilitadas naquele contexto, tornando algumas opções inviáveis e consequentemente, tornando outras factíveis.
A ideia de escolha aponta Fausto (2001), não é o oposto simétrico a um determinismo ecológico – ou mesmo técnico, argumento que combatemos anteriormente na perspectiva dos primitivistas. Não se trata de fazer uma leitura sobre a decisão do grupo, a ideia valiosa aqui é o fato de que o modo de vida dos povos é resultado de um complexo de determinações em contextos históricos específicos a partir da agência dos sujeitos. A consequência disto é que a escolha não é, portanto, resultado de forças exógenas, sejam políticas ou ambientais, mas produto destas forças e inter-relações. A crítica ao modelo regressivo dominante se trata como desenvolvemos anteriormente, de perceber que o processo de transformação dos modos de vida das sociedades não procede de mudanças lineares ou homogêneas como nos faz acreditar este modelo histórico evolutivo tal como criticamos até aqui.
Implicações políticas
A principal crítica que tentamos tecer diz respeito tanto à forma totalizante pela qual o primitivismo utiliza os argumentos antropológicos para legitimar sua teoria, quanto à ideia perigosa de entender a história dos povos a partir de um determinismo histórico que fecha o campo de análises e compõe a ideologia de maneira pouco confiável. Mas, se o primitivismo tem complicados problemas em relação à teoria, a questão fica mais confusa ainda se remetermos à sua proposta política.
O primitivismo arrisca uma crítica à história da civilização e para chegar a seus objetivos, supõe detectar os principais elementos de exploração e dominação aos quais temos que combater politicamente. Os problemas sob os modos com os quais “reconstitui” esta história e as conclusões a que chega nos leva ao questionamento sobre, qual é, afinal, sua prática política. Em grande parte, ela supõe uma inevitabilidade da crise da civilização. Perante ela a agência humana está circunscrita a poucos movimentos, poucas escapatórias, se não a uma recusa limitada de “fazer parte do jogo” da civilização na tentativa de criar alternativas, em grande parte, individuais, ao consumo e ao modus civilizado.
Leví-Strauss (1989) nos demonstra que ao contrário do que poder-se-ia imaginar, seria impossível explicar as conquistas de todo gênero que as populações desenvolveram como mera coincidência, ou ainda, como uma acumulação ao acaso de artigos técnicos, simbólicos ou quaisquer outros. Ao contrário, o desenvolvimento destas formas decorre de muitos séculos de observação, experimentação, hipóteses, erros e acertos, que para tanto, foi necessário um verdadeiro espírito científico.
Contudo, a “versão”, se assim podemos chamar, da história feita pelo primitivismo tem reverberações diretas com relação às suspeitas de Lévi-Strauss (1996). A questão a se colocar é afinal, o que levaria uma condenação tão radical de nós mesmos? Quero dizer, dos males irreconciliáveis de nossa própria sociedade, do modo de vida civilizado? Se por um lado a crítica pode ser saudável, por outro, tal crítica, diria Lévi-Strauss, não significa “atribuirmos um prêmio de excelência a qualquer outra sociedade presente ou passada, localizada num ponto determinado do tempo e do espaço” (Idem. p.368). Pois, desta maneira, suspeita o autor, poderíamos facilmente chegar “[...] a uma condenação de qualquer estado social que seja? A glorificação de um estado natural a que a ordem social só teria levado à corrupção”.
“Numa vida onde os seres são iguais, que não é uma abstração e que se esforça para existir, eles ‘DANÇAM COM A FLORESTA, DANÇAM COM A LUA’” (ZERZAN, 2006, p.79). É com esta afirmação que Zerzan finaliza seu Futuro Primitivo. O argumento primitivista é que o sujeito “primitivo”, livre de toda dominação da civilização, como a agricultura, o sedentarismo, a tecnologia e a linguagem simbólica, é um sujeito livre, exemplo predominante na história da humanidade, muito anterior aos poucos 10.000 anos de civilização frente os milhões de anos da humanidade fora dela, que segundo seu argumento, teria vivido durante muito tempo em algo muito próximo ao anarquismo. No entanto, eu me pergunto: se estas técnicas, objeto de crítica do anarco-primitivismo foram a verdadeira “caixa de pandora” aberta pelo homem e responsável por seu malogro em termos de organização social, que tipo de liberdade é possível a este suposto homem congelado em algum lugar da pré-história? Já que do ponto de vista social é desprovido de linguagem simbólica e vive a partir de seus instintos. Mas que do ponto de vista moral pode finalmente ser livre?
Em outra passagem, Lévi-Strauss (1996) cita um argumento de Diderot que assume como sendo simplesmente absurdo: “Existia um homem natural; introduziu-se dentro desse homem um homem artificial; e eclodiu na caverna uma guerra contínua que dura a vida inteira”. Esta passagem diz muito sobre a teoria primitivista, pois para Lévi-Strauss a existência do homem está diretamente ligada à existência da linguagem e por conseguinte, da sociedade.
Não arriscaria assumir qualquer hierarquia para afirmar que tal ou qual sociedade é mais ou menos livre, me parece que o problema simplesmente não é este. A agricultura totalitária, o simbolismo, o sedentarismo, o pecado original ou tantas outras ideias podem nos servir para explicar os motivos pelos quais estamos ferrados. Podemos encontrar qualquer bode expiatório e colocar nele a culpa de nossa impotência, podemos achar bons motivos para a inoperância de nossas ações ou mesmo uma desculpa para não fazermos nada ou acabar com o constrangimento de nos limitarmos a nossos pequenos grupos de afinidade, piqueniques, shows, intervenções e demais lugares onde tudo corre como programado. Onde não precisaremos lidar com nossos próprios problemas, nossas próprias intolerâncias, com as senhoras religiosas, com os senhores reacionários ou com nossos adversários políticos.
As ideias de civilização e de primitivo são mitos tão bem fundamentados e serviram tão bem como paradigma explicativo de outrora, que não seria duvidoso que pudesse nos servir novamente para explicarmos o nosso atual fracasso. Novamente, acabamos em um beco sem saída, mas desta vez, de cabeça para baixo: a culpa é da civilização, contra ela, nada podemos fazer!
Ao efetuarmos este movimento, esquecemos do fundamental, que nos recorda Lévi-Strauss (1996, p.371). Não se trata de reconhecer em outras sociedades um modelo para os problemas da nossa. Trata-se de nos aproximarmos das outras, conhecê-las melhor para daí então ganharmos um meio de distanciar-nos das nossas próprias formas sociais. Não por elas serem inerentemente más, ao contrário, é porque a nossa sociedade é a única da qual nós precisamos efetivamente nos libertar.
Acredito que o anarquismo é uma destas armas criadas pelas pessoas, desenvolvidas em contextos a partir dos problemas mais cotidianos de quem sofre mais duramente os impactos desta organização social, portanto, nada mais lúcido do que continuarmos nosso caminho. Afinal, de nada adianta remetermos todos nossos problemas a supostos erros de 10.000 anos atrás, sob os quais não podemos intervir, senão, para inventá-lo e atribuir a ele a culpa pelas condições do presente.
Enquanto anarquista, não duvido que as instituições que o primitivismo critica sejam efetivamente instituições perigosas. A questão é que de nada nos vale fazer a crítica de todas instituições burguesas, civilizadas, ou como queiram, se esta crítica não nos inspira para uma proposta de ação. Recusá-las discursivamente não impedirá que elas avancem. Por isto, continuo vendo no anarquismo clássico uma proposta cabível de crítica radical e inspiração para a prática política. Ou seja, o anarquismo é o reconhecimento de estruturas de dominação e exploração a fim de combatê-las sistematicamente no chão da luta de classes. Este entendimento faz do anarquismo aquilo que ele sempre foi: um meio. Um caminho para se construir, não um fim idealizado em qualquer outra sociedade do tempo e espaço, como este que acredita ter identificado o primitivismo. Em que todas estas categorias temíveis – e acredito que elas são em muito maior número do que pode identificar o primitivismo – estariam, ao mesmo tempo, idealmente superadas.
Por isto, eu prefiro o exemplo dos parakanã ou de tantos outros povos que muito tem a nos ensinar. Não porque suas vidas no passado possam ter sido melhores ou mais desejáveis, mas porque mesmo em meio a conflitos interétnicos, problemas de subsistência, epidemias e genocídios, eles não estão simplesmente lamentando o passado como fonte de toda perdição, pelo contrário, continuam até hoje se transformando, vivendo e resistindo. Tal é também, a vitalidade do anarquismo.
Referências:
FAUSTO, Carlos. Inimigos fiéis: História, guerra e xamanismo na Amazônia. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2001.
GRAEBER, David. Fragments of an Anarchist Anthropology. Prickly Paradigm, Chicago, 2004. KUPER, Adam. A reinvenção da sociedade primitiva. Ed. Universitária da UFPE, Recife, 2008.
LÉVI-STRAUSS, Claude. O pensamento selvagem. Campinas/SP : Papirus, 1989.
LÉVI-STRAUSS, Claude. Tristes trópicos. São Paulo: Companhia das letras, 1996.
MORGAN, Lewis H. A sociedade primitiva II. Lisboa: Editorial Presença, 1976.
QUINN, Daniel. Além da Civilização. Peirópolis: São Paulo, 2001.
RIBEIRO, Darcy. O processo Civilizatório: Etapas da Evolução Sócio-Cultural. 10º ed., Petrópolis: Vozes, 1987.
SAHLINS, Marshall. Stone age economics. Chicago: Aldine, 1972.
TYLOR, E.B. (1871).“A Ciência da Cultura”In Castro, C. Evolucionismo Cultural – Textos de Morgan, Tylor e Frazer. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005. p. 67-99.
ZERZAN, John. Futuro primitivo. Editora Deriva, 2006.
[1] O texto de Caillé está disponível nesta edição.
[2] A discussão a seguir pode ser encontrada de forma mais detalhada no livro “A reinvenção da sociedade primitiva” de Adam Kuper (2008).