UTOPIA

- A SUBJETIVAÇÃO LIBERTÁRIA NA POESIA E CRÔNICA BRASILEIRAS NO CORRER DO SÉCULO XX.


PREFÁCIO

Max Nettlau em seu livro “Bibliographie de l’Anarchie”, de 1897, afirma que: “A literatura anarquista não tem uma origem determinada, não sendo a expressão de um sistema inventado e progressivamente elaborado, porém a própria negação dos sistemas. Originou-se da necessidade de combater a arbitrariedade em todas as suas formas, as regras e deveres impostos pelos preconceitos ou pela força e dar impulso ao livre desenvolvimento da humanidade. Todo o ato que foi realizado e toda palavra que foi pronunciada com raiva contra essa coação e a favor desta liberdade são obra consciente ou inconsciente da anarquia.” Esta é a definição que usarei neste trabalho. Faço, no entanto, uma breve observação à expressão “com raiva” utilizada pelo eminente historiador pois, após a aterradora repressão aos militantes acontecida nos regimes militares mais de meio século depois da publicação da sua Bibliografia, necessitou-se, embora ainda “com raiva”, tornar-se sutil e enveredar-se por artifícios tais como a ironia (tão amarga às vezes...) para burlar a censura e continuar a divulgação desta ideologia.


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No início do século XX, com a intensa modernização que sofria São Paulo e, de certa forma, o Brasil, junto à instalação de indústrias e comércios que produziam não só suas mercadorias e as vendiam, mas, também, uma grande massa de proletários descontentes com suas vidas e condições de trabalho, viu-se o surgimento de ativos sindicatos que tentavam fazer ouvir o grito reivindicativo de todos os trabalhadores. Estes órgãos disponibilizavam em suas sedes um farto material de engajamento político, principalmente libertário, com o objetivo de tornar acessível à população este tipo de ideologia e, dessarte, conscientizando-a, fazê-la imaginar, cobrar, exigir um mundo progressivamente mais admissível. Como relatado nas Memórias de Severino Gonçalves Antunha “Havia (na Federação Operária de Santos) um salão de leituras com jornais como A Lanterna, a revista Blanca e muitos outros de São Paulo, Rio de Janeiro, Buenos Aires e Barcelona, etc. Obras como El Hombre y la Tierra, de Reclus, editado pela Escola Moderna de Francisco Ferrer, A Grande Revolução, de Kropotkin e obras de Tolstoi, Bakunin, Máximo Gorki, Sébastien Faure e outros escritores revolucionários, assim como obras sobre conhecimentos gerais, didáticos de todos os matizes e literatura em geral. Era, enfim, uma corrida sem precedentes, em busca de cultura”; juntos desta corrida, liderando-a, encontravam-se os intelectuais doutrora, muitos dos quais já empolgados pelas manifestações modernistas (na qual alcançaram, em 1922, uma grande parte da tão almejada independência cultural brasileira, ocorrida, no entanto, cem anos após o início da suposta independência política, em 1822), intelectuais que se sentiram no dever de mostrar formas de mundo justas, possibilidades de organização estrutural societária e, ainda, criticar os vícios, ainda que ínfimos, das atitudes tanto do povo quanto dos governantes e da sociedade como uma só, usando, para isso, a Arte, principalmente a Literatura, para divulgar este universo ideal.

Nas poesias e crônicas apresentadas a seguir referentes a este período turbulento e difusor dos ideais anarquistas, sente-se o berro de igualdade e liberdade ou, por vezes mais prático e menos utópico, de menos desigualdade e injustiça, saindo das profundezas do ser dos escritores – Lima Barreto e Martins Fontes – e inundando suas obras com um grito crítico de ordem urgentíssima por um mundo melhor.

Este brado perceber-se-á também nos autores posteriores a este período, ainda explícito em Mário de Andrade. Porém, com o passar do tempo, evolução das técnicas e mudança drástica nas estruturas políticas e sociais, em meio a inúmeras guerras, revoluções socialistas fracassadas e golpes militares sanguinários, Guerra Fria a dividir o orbe e completa ausência de liberdade de expressão revista pela censura prévia, houve um amordaçamento profundo nas expressões ideológicas dos intelectuais, transformando e subjetivando suas opiniões e críticas, obrigando-os a fazer às escondidas o que outrora se fazia sem receios, como se poderá perceber implicitamente tanto em Cecília quanto em Drummond.

A Anarquia como uma forma política plena deixa de ser exposta e inicia-se a busca e o uso de seus subtemas e constituintes setoriais, por exemplo, o desejo de mostrar o aumento da miséria e da desigualdade, ainda que por um viés indireto, com o objetivo de continuar a clarear a visão da população sobre as condições do calamitoso mundo contemporâneo. Ressurgem diversas abordagens que exporão situações de fundo questionadoras contra o sistema massificante.

Esta é a subjetivação que está citada no título da antologia. Com ela a grande massa da população, ignorante e conformada pelos governantes e pela Igreja, quando não pelo futebol e Carnaval, não conseguiu absorver a mensagem e a perspectiva libertária – com toda sua crítica ao governo e ao sistema, crítica à massificação de idéias, à mídia, ao clero, à burguesia, à miséria, à desigualdade gritante e persistente, às injustiças, à propriedade e com sonhos de uma sociedade perfeita – e esse imaginário foi desaparecendo até chegar à triste hodiernidade na qual se buscou reunir o presente conjunto de crônicas e poemas, em uma obra não destinada à comercialização, que abordam assuntos libertários, ímplicita ou explicitamente, e insuflam ideias as quais devem ser sempre agitadas nos meios intelectuais e à população em geral.


LUCAS ZAPAROLLI DE AGUSTINI

ORGANIZADOR


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Diário rimado


Hoje é domingo. Não saio.

Vou passar

Este primeiro de Maio

No meu lar.


Primeiro de Maio! Data

Sem rival!

Representação exata

Do ideal!


Todos terão, neste dia,

Cobertor!

Terão pão! Viva a anarquia

Meu amor!


Na Bolívia, na Inglaterra,

No Tirol,

Para todos, sobre a Terra,

Nasce o Sol!


É o dia da Humanidade!

Em que Hugo,

No Templo da Liberdade,

Comungou!


Cantando os fastos supremos,

A fremir,

Este dia imaginemos,

No porvir!


Todas as glórias da ciência

Hão de ser

Só para à nossa existência

Dar prazer!


Porque toda enfermidade,

Todo mal,

Findará na Humanidade

Ideal!


O Homem, sentindo a saúde,

Será bom;

E há de legar a virtude

Como um dom.


Religiões e preconceitos

Morrerão!

O homem só achará direitos

Na razão!


Sem rei, nem roque, liberto,

Julgajul!

Será a terra um céu aberto,

Sempre azul!


A Anarquia, Liberdade,

Que esperais,

É a ausência da autoridade,

Nada mais.


Borboleta da alegria,

Eia! Sus!

Tudo dentro da Anarquia

Será luz!


Sairá do casulo, ou vasa

Atual,

A falena, a flor com asa

Do ideal!


Neste dia a Bakunine

Hão de alçar,

Assim como a Kropotkine,

Um altar!


Sem fio, a telegrafia,

Na amplidão,

Transmita: - Viva a Anarquia

Meu irmão!


Pelos espaços profundos,

Os heróis

Brindem a Paz, que une os mundos,

Entre os sóis!


É um sonho? Pois eu suponho

Que não é.

Na verdade deste sonho

Tenho fé.


E ainda mesmo que ele o fosse,

Sem desar,

Para mim nada é mais doce

Que sonhar!


Quero que este delirante

Folhetim

Tenha o jubilo estuante

De um festim!


E, na embriaguez da folia,

Bato as mãos!

Brademos – Viva a Anarquia,

Meus irmãos!


Poeta, os sonhos da Beleza

Serão teus!

Amarás a Natureza

Como um Deus!


Nesta crônica rimada

Com paixão,

Envio um abraço a cada

Cidadão!


Abraço ao leitor. E o faço,

Por sinal,

Como quem ferra um abraço

Fraternal!


Beijo a leitora...Que dia

Criador!

Viva o Amor Livre! A Anarquia,

Mãe do Amor!


Ariel (Pseudônimo de Martins Fontes)

Primeiro de Maio de...?


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O novo manifesto


Eu também sou candidato a deputado. Nada mais justo. Primeiro: eu não pretendo fazer coisa alguma pela Pátria, pela família, pela humanidade.

Um deputado que quisesse fazer qualquer coisa dessas, ver-se-ia bambo, pois teria, certamente, os duzentos e tantos espíritos dos seus colegas contra ele.

Contra as suas idéias levantar-se-iam duas centenas de pessoas do mais profundo bom senso.

Assim, para poder fazer alguma coisa útil, não farei coisa alguma, a não ser receber o subsídio.

Eis aí em que vai consistir o máximo da minha ação parlamentar, caso o preclaro eleitorado sufrague o meu nome nas urnas.

Recebendo os três contos mensais, darei mais conforto à mulher e aos filhos, ficando mais generoso nas facadas aos amigos.

Desde que minha mulher e os meus filhos passem melhor de cama, mesa e roupas, a humanidade ganha. Ganha, porque, sendo eles parcelas da humanidade, a sua situação melhorando, essa melhoria reflete sobre o todo de que fazem parte.

Concordarão os nossos leitores e prováveis eleitores, que o meu propósito é lógico e as razões apontadas para justificar a minha candidatura são bastante ponderosas.

De resto, acresce que nada sei da história social, política e intelectual do país; que nada sei da sua geografia; que nada entendo de ciências sociais e próximas, para que o nobre eleitorado veja bem que vou dar um excelente deputado.

Há ainda um poderoso motivo, que, na minha consciência, pesa para dar este cansado passo de vir solicitar dos meus compatriotas atenção para o meu obscuro nome.

Ando mal vestido e tenho uma grande vocação para elegâncias.

O subsídio, meus senhores, viria dar-me elementos para realizar essa minha velha aspiração de emparelhar-me com a deschanelescaº elegância do Senhor Carlos Peixoto.

Confesso também que, quando passo pela Rua do Passeio e outras do Catete, alta noite, a minha modesta vagabundagem é atraída para certas casas cheias de luzes, com carros e automóveis à porta, janelas com cortinas ricas, de onde jorram gargalhadas femininas, mais ou menos falsas.

Um tal espetáculo é por demais tentador para a minha imaginação; e eu desejo ser deputado para gozar esse paraíso de Maomé sem passar pela algidez da sepultura.

Razões tão ponderosas e justas, creio, até agora, nenhum candidato apresentou, e espero da clarividência dos homens livres e orientados o sufrágio do meu humilde nome, para ocupar uma cadeira de deputado, por qualquer Estado, província ou emirado, porque, nesse ponto, não faço questão alguma.

Às urnas.


Vida urbana, 16-1-1915. (Lima Barreto)


º Deschanel, Paul (1855-1922): Político francês, presidente da República de fevereiro a setembro de 1920.


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Jean Richepin fala aos famintos


O primeiro tem fome. O segundo tem fome.

O terceiro tem fome. Assim todos, milhares!

Mas em tantas legiões, que é melhor não contares

Quantos são os que a dor da miséria consome!


Um idiota qualquer, de ilustre sobrenome,

Prova, serenamente, os mais finos manjares,

E ao ver a multidão, que uiva aos seus calcanhares,

Faz um discurso à Homais, tal qual Monsieur Prudhomme.


“Mendigos, se sofreis, conforme a nossa crença,

“Deus vos guarda no céu a doce recompensa,

“Prêmio ao vosso penar, bálsamo ao vosso choro”.


E os pobres, engolindo esta peta rançosa,

Sentem o ventre a ímpar de pastéis cor de rosa,

E deliciosos pães feitos de nuvens de ouro.


(Martins Fontes)


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Clangor anarquista


Sonho escutar a tuba de ouro

Da liberdade! E ouvir, em coro,

A multidão!

Na orquestra viva do planeta

Retroar a rútila trombeta

Da redenção!


Cantai, clarins, rufai, tambores!

Sinfonizai os mil rumores,

Fundindo os sons!

A longitroar, como ciclones,

Reboe o cobre dos trombones

E dos clarons!


Claras e cálidas clarinas,

Entoai as músicas divinas,

Clangorejai!

Sonoros sinos da alegria,

Dobrai às glórias da Anarquia

Tãobadalai!


Louvai, enfim, o homem sem peias,

Sem preconceitos ou cadeias,

Liberto incréu!

Na comunhão da humanidade,

Será a vida em toda cidade,

Melhor que o céu!


A única vida, alegre ou triste,

É esta, pois outra não existe,

Outra não há.

Façamos por torná-la boa,

E ela que em nós se aperfeiçoa,

Melhor será!


Abaixo o medo e a hipocrisia!

Para os niilistas a anarquia

Supremo Ideal,

É a aspiração da Humanidade

Livre, no seio da Irmandade

Universal!


O pão e o teto para todos,

Mas sem mentiras, sem engodos,

Nem ódio algum!

Que a terra seja, a terra inteira,

A imensa, a eterna, a verdadeira

Pátria comum


E, além do pão, além do teto,

Radiosamente brilhe o afeto

Abençoador!

Para que, em suas semelhanças,

Nasçam as flores e as crianças,

Ao sol do amor!


Poetas, filósofos, artistas,

Nós todos somos anarquistas

Como Platão,

Porque a Beleza é a Liberdade,

Urânia, filha da Verdade,

Mãe da Razão!


(Martins Fontes)


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Conhecem?


Eu não sei que mania se meteu na nossa cabeça moderna de que todas as dificuldades da sociedade se podem obviar mediante a promulgação de um regulamento executado mais ou menos pela coação autoritária de representantes do governo.

Nesse caso de criados, o fato é por demais eloqüente e pernicioso.

Por que regulamentar-se o exercício da profissão de criado? Por que obrigá-los a uma inscrição dolorosa nos registros oficiais, para tornar ainda mais dolorosa a sua situação dolorosa?

Por quê?

Porque pode acontecer que sejam metidos nas casas dos ricos ladrões ou ladras; porque pode acontecer que o criado, um dado dia, não queira mais fazer o serviço e se vá embora.

Não há outras justificativas senão estas, e são bem tolas.

Os criados sempre fizeram parte da família: é concepção e sentimento que passaram de Roma para a nobreza feudal e as suas relações com os patrões só podem ser reguladas entre eles.

A Revolução, aniquilando a organização da família feudal, trouxe à tona essa questão da famulagem; mas, mesmo assim, ela não rompeu o quadro familiar de modo a impedir que os seus chefes regulem a admissão de estranhos no lar.

A obrigação do dono ou dona de casa que procura um criado, que o põe debaixo do seu teto, é saber quem ele é; o resto não passa de opressão do governo sobre os humildes, para servir à comodidade burguesa.

Querem fazer das nossas vidas, dos indivíduos, das almas, uma gaveta de fichas. Cada um tem que ter a sua e, para obtê-la, pagar emolumentos, vencer a ronha burocrática, lidar com funcionários arrogantes e invisíveis, como em geral, são os da polícia.

Imagino-me amanhã na mais dura miséria, sem parentes, sem amigos. Sonho fazer-me esquivo e bato à primeira porta. Seria aceito, mas é preciso a ficha.

Vou buscar a ficha e a ficha custa vinte ou trinta mil-réis. Como arranjá-los?

Eis aí as belezas da regulamentação, desse exagero de legislar, que é o característico da nossa época.

Toda a gente sabe a que doloroso resultado tem chegado semelhante mania.

Inscrito um tipo nisto ou naquilo, ele está condenado a não sair dali, a ficar na casta ou na classe, sem remissão nem agravo.

Deixemos esse negócio entre patrões e criados, e não estejamos aqui a sobrecarregar a vida dos desgraçados com exigências e regulamentos que os condenarão toda a sua vida à sua lamentável desgraça.

Os senhores conhecem a regulamentação da prostituição em Paris? Os senhores conhecem o caso de Mme. Comte? Oh! Meu Deus!


Vida urbana, 15-1-1915. (Lima Barreto)


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Futura


Elevação


A tristeza mais profunda

De pranto os olhos me inunda,

Afoga-me o coração:

Eu, por toda a humanidade,

Sinto uma enorme piedade,

Infinita compaixão.


À noite, às vezes insone,

Ouço ulular o ciclone

Das dores universais;

Escuto os soluços roucos

Dos miseráveis, dos loucos,

Dos velhos nos hospitais.


Uivam os gritos agudos

Dos cegos, dos surdos-mudos,

Encarcerados na dor.

Provando a horrenda amarugem

Os paralíticos rugem

Nas contorções do terror.


Que angústia! Que desespero!

E jamais esse exagero,

Essa aflição terá fim!

Por que assim penamos tanto?

E a mágoa, vencendo o pranto,

Blasfema dentro de mim.


Por que gemem as crianças?

E os doentes, sem esperanças,

Padecem tanto também?

Por que somos sepulturas,

Nós, humildes criaturas,

Que desejamos o bem?


Quem haverá que ainda creia

Nas promessas de sereia

De uma outra vida melhor?

Vê-se em tudo o preconceito,

E a ambição, no mundo estreito,

É dia a dia pior.


Viver – é sofrer apenas:

São tuas as minhas penas,

E os meus pesares são teus.

Fora da dor nada existe.

E a dor humana mais triste

Provém da idéia de Deus.


Vimos de um túmulo – o ventre,

Para que em nós se concentre

O que o túmulo contém.

Somos túmulos na vida,

E a campa, em nós resumida,

É um outro ventre também.


Viver – provir da impureza,

Provar a própria vileza,

Matar, consumir, comer,

Para depois, destruído,

Repenetrar, transfundido,

Na unidade do não-ser.


Amar! – Tortura sem nome!

Saber que é tal qual a fome

Esse sonho, esse ideal!

Reduzir a lodo a estrela!

Senti-la, adorá-la e vê-la

Apodrecer afinal!


E, além desse mal eterno,

Notar que o mundo moderno

Se tornou cruel, sem dó;

Que a vida é hoje somente

Ganância, avidez crescente,

Miséria, miséria só.


Sofro. Escancaro a janela

A noite negra regela,

O céu mudo causa horror.

Na febre que me devora

Vejo estorcer-se lá fora

A imagem da minha dor.


Mas dentro da noite escura

Diviso a miragem pura

De uma visão a brilhar;

A Musa, deusa amorosa,

Tendo na mão uma rosa,

Surge à luz de almo luar.


E, sorrindo-se, me fala.

E sua voz, que me embala,

Produz-me tanto prazer

Que sinto, ouvindo-a falar-me,

A cantilena de um carme

Que fizesse adormecer.


A Musa


Irmão, eu sou a esperança,

Sou a bem-aventurança,

Luz do próximo arrebol.

Levo a minha benção de ouro,

Até mesmo ao podredouro,

No simbolismo do sol.


Espera! Em breve, a bondade,

Pela solidariedade,

Será cada vez maior.

A dor há de ser vencida,

Tornando mais doce a vida,

O homem tornando melhor.


A sociedade futura

Que tua fé conjetura,

A todos amparará.

E essa suprema alegria,

Aurora que preludia,

Virá breve, será já.


Por ora, sê generoso,

Compassivo, carinhoso:

Ao pobre, ao dizer-lhe adeus,

Ao dar-lhe a esmola, agradece:

Dirigiu-te ele uma prece,

Como se foras um deus.


Mas amanhã, meu amigo,

Hão de todos ter abrigo,

Ar e luz, amor e pão,

Para que nunca mais haja

A caridade que ultraja,

Nem ninguém estenda a mão.


O teu coração de poeta,

Urna de prantos repleta,

De tanto penar, ferveu.

Bendita seja a piedade

Que extravasa da ansiedade

De um coração como o teu.

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E a voz da Musa me embala.

Consolado, ao escutá-la,

Espero a Aurora, ao Luar.

E a essa música tão doce,

Que tanto alívio me trouxe,

Desperto, para sonhar!


(Martins Fontes)


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A lei


Este caso da parteira merece sérias reflexões que tendem a interrogar sobre a serventia da lei.

Uma senhora, separada do marido, muito naturalmente quer conservar em sua companhia a filha; e muito naturalmente também não quer viver isolada e cede, por isto ou aquilo, a uma inclinação amorosa.

O caso se complica com uma gravidez e para que a lei, baseada em uma moral que já se findou, não lhe tire a filha, procura uma conhecida, sua amiga, a fim de provocar um aborto de forma a não se comprometer.

Vê-se bem que na intromissão da “curiosa” não houve nenhuma espécie de interesse subalterno, não foi questão de dinheiro. O que houve foi simplesmente camaradagem, amizade, vontade de servir a uma amiga, de livrá-la de uma terrível situação.

Aos olhos de todos, é um ato digno, porque, mais do que o amor, a amizade se impõe.

Acontece que a sua intervenção foi desastrosa e lá vem a lei, os regulamentos, a polícia, os inquéritos, os peritos, a faculdade e berram: você é uma criminosa! Você quis impedir que nascesse mais um homem para aborrecer-se com a vida!

Berram e levam a pobre mulher para os autos, para a justiça, para a chicana, para os depoimentos, para essa via-sacra da justiça, que talvez o próprio Cristo não percorresse com resignação.

A parteira, mulher humilde, temerosa das leis, que não conhecia, amedrontada com a prisão, onde nunca esperava parar, mata-se.

Reflitamos, agora; não é estúpida a lei que, para proteger uma vida provável, sacrifica duas? Sim, duas porque a outra procurou a morte para que a lei não lhe tirasse a filha. De que vale a lei?


Vida urbana, 7-4-1915. (Lima Barreto)


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Inter artes et naturam


Dia virá, dia virá,

Em que a bonança esplenderá,


Aberta em flor, tendo raízes

No coração dos infelizes!


Pela confraternização,

Todos os homens terão pão,


Carinho, paz, teto, agasalho.

Frutos benção do trabalho.


Fico, em silêncio, a idealizar

Que a terra toda é um grande lar...


E, enquanto as lágrimas estanco

Vejo, em meu sonho, tudo branco...


Vejo a água, branca, em torvelins

Cercando os bosques e os jardins


Mármores claros, esculturas

Rindo entre flores e verduras...


Mas branco tudo, alvo, tal qual

Um luar de neve lirial...


Será de alvor puro e perene

O templo erguido à Deusa Higiene...


Então o mundo será bom,

Como prediz Benoît Malon...


Ah! Não nascer eu nessa idade,

Em que a beleza e a liberdade,


Máximas crenças do porvir,

Hão de cantar, juntas sorrir!


Como na Grécia haverá rosas,

Cobrindo as frontes luminosas,


Inspiradoras, como sóis,

Dos pensadores, dos heróis!


Hão de se dar as entrevistas

Dos namorados, dos artistas,


Pelos vergéis, entre os rosais,

Em confidências fraternais!


Tudo será graça, harmonia,

Serenidade, amor, poesia!


O ar, só por si, dará prazer,

Causando o encanto de viver!


E cerro os olhos encantado,

Esqueço os males do passado,


Tanta tortura e tanto afã,

Pela ventura do amanhã.


Seja quimera, seja um sonho,

Mas é tão belo e tão risonho


O devanear que me entretém,

Que essa utopia me faz bem.


Cantai, ó poetas palinuros,

Os espetáculos futuros!


Chalrai, ó pássaros do amor,

Sob os loureiros em flor!


E ouço, vibrando, a sinfonia

Deslumbradora da Anarquia


E meu clarim de caporal

Tinir na orquestra fraternal!


(Martins Fontes)


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Problema vital


Poucas vezes se há visto nos meios literários do Brasil, uma estréia como a do Senhor Monteiro Lobato. As águias provincianas se queixam de que o Rio de Janeiro não lhes dá importância e que os homens do Rio só se preocupam com coisas do Rio e da gente dele. É um engano. O Rio de Janeiro é muito fino para não dar importância a uns sabichões de aldeia que, por terem lido alguns autores, julgam que ele não os lê também; mas, quando um estudioso, um artista, um escritor, surja onde ele surgir no Brasil, aparece no Rio, sem esses espinhos de ouriço, todo o carioca independente e autônomo de espírito está disposto a aplaudi-lo e dar-lhe o apoio da sua admiração. Não se trata aqui da barulheira da imprensa, pois essa não o faz, senão para aqueles que lhe convém, tanto assim que sistematicamente esquece autores e nomes que, com os homens dela, todo o dia e hora lidam.

O Senhor Monteiro Lobato com o seu livro Urupês veio demonstrar isso. Não há quem não o tenha lido aqui e não há quem o não admire. Não foi preciso barulho de jornais para o seu livro ser lido. Há um contágio para as boas obras que se impõem por simpatia.

O que é de admirar em tal autor e em tal obra, é que ambos tenham surgido em São Paulo, tão formalista, tão regrado que parecia não admitir nem um nem a outra.

Não digo que, aqui, não haja uma escola delambida de literatura, com uma retórica trapalhona de descrições de luares com palavras em “ll” e de tardes de trovoadas com vocábulos com “rr” dobrados: mas São Paulo, com as suas elegâncias ultraeuropeias, parecia-me ter pela literatura, senão o critério da delambida que acabo de citar, mas um outro mais exagerado.

O sucesso de Monteiro Lobato, lá, retumbante e justo, fez-me mudar de opinião.

A sua roça, as suas paisagens não são coisas de moça prendada, de menina de boa família, de pintura de discípulo ou discípula da Academia Julien; é da grande arte dos nervosos, dos criadores, daqueles cujas emoções e pensamentos saltam logo do cérebro para o papel ou para a tela. Ele começa com o pincel, pensando em todas as regras do desenho e da pintura, mas bem depressa deixa uma e outra coisa, pega a espátula, os dedos e tudo o que ele viu e sentiu sai de um só jato, repentinamente, rapidamente.

O seu livro é uma maravilha nesse sentido, mas o é também em outro, quando nos mostra o pensador dos nossos problemas sociais, quando nos revela, ao pintar a desgraça das nossas gentes roceiras, a sua grande simpatia por elas. Ele não as embeleza, ele não as falsifica; fá-las tal e qual.

Eu quereria muito me alongar sobre este seu livro de contos, Urupês, mas não posso agora. Dar-me-ia ele motivo para discorrer sobre o que penso dos problemas sociais que ele me agita; mas, são tantos que me emaranho no meu próprio pensamento e tenho medo de fazer uma coisa confusa, a menos que não faça com pausa e tempo. Vale a pena esperar.

Entretanto, eu não poderia deixar de referir-me ao seu estranho livro, quando me vejo obrigado a dar noticia de um opúsculo seu que me enviou. Trata-se do “Problema Vital”, uma coleção de artigos, publicados por ele, no Estado de S. Paulo, referentes à questão do saneamento do interior do Brasil.

Trabalhos de jovens médicos como os doutores Artur Neiva, Carlos Chagas, Belisário Pena e outros, vieram demonstrar que a população roceira do nosso país era vítima desde muito de várias moléstias que a alquebravam fisicamente. Todas elas têm uns nomes rebarbativos que me custam muito a escrever; mas Monteiro Lobato os sabe de cor e salteado e, como ele, hoje muita gente. Conheci-as, as moléstias, pelos seus nomes vulgares; papeira, opilação, febres e o mais difícil que tinha na memória era – bócio. Isto, porém, não vem ao caso e não é o importante da questão.

Os identificadores de tais endemias julgam ser necessário um trabalho sistemático para o saneamento dessas regiões afastadas e não só estas. Aqui, mesmo, nos arredores do Rio de Janeiro, o doutor Belisário Pena achou duzentos e cinquenta mil habitantes atacados de maleitas, etc. Residi, durante a minha meninice e adolescência, na Ilha do Governador, onde meu pai era administrador das Colônias de Alienados. Pelo meu testemunho, julgo que o doutor Pena tem razão. Lá todos sofriam de febres e logo que fomos, para lá, creio que em 1890 ou 1891, não havia dia em que não houvesse, na nossa casa, um de cama, tremendo com a sezão e delirando de febre. A mim, foram precisas até injeções de quinino.

Por esse lado, julgo que ele e os seus auxiliares não falsificam o estado de saúde de nossas populações campestres. Têm toda a razão. O que não concordo com eles, é com o remédio que oferecem. Pelo que leio em seus trabalhos, pelo que minha experiência pessoal pode me ensinar, me parece que há mais nisso uma questão de higiene domiciliar e de regime alimentar.

A nossa tradicional cabana de sapê e paredes de taipa é condenada e a alimentação dos roceiros é insuficiente, além do mau vestuário e do abandono do calçado.

A cabana de sapê tem origem muito profundamente no nosso tipo de propriedade agrícola – a fazenda. Nascida sob o influxo do regime do trabalho escravo, ela se vai eternizando, sem se modificar, nas suas linhas gerais. Mesmo em terras ultimamente desbravadas e servidas por estradas de ferro, como nessa zona da Noroeste, que Monteiro Lobato deve conhecer melhor do que eu, a fazenda é a forma com que surge a propriedade territorial no Brasil. Ela passa de pais a filhos; é vendida integralmente e quase nunca, ou nunca, se divide. O interesse de seu proprietário é tê-la intacta, para não desvalorizar as suas terras. Deve ter uma parte de matas virgens, outra parte de capoeira, outra de pastagens, tantos alqueires de pés de café, casa de moradia, de colonos, currais, etc.

Para isso, todos aqueles agregados ou coisa que valha, que são admitidos a habitar no latifúndio, têm uma posse precária das terras que usufruem; e, não sei se está isto nas leis, mas nos costumes está, não podem construir casa de telha, para não adquirirem nenhum direito de locação mais estável.

Onde está o remédio, Monteiro Lobato? Creio que procurar meios e modos de fazer desaparecer a “fazenda”.

Não acha? Pelo que li no “Problema Vital”, há câmaras municipais paulistas que obrigam os fazendeiros a construir casas de telhas, para os seus colonos e agregados. Será bom? Examinemos. Os proprietários de latifúndios, tendo mais despesas com os seus miseráveis trabalhadores, esfolarão mais os seus clientes, tirando-lhes ainda mais dos seus míseros salários do que tiravam antigamente. Onde tal coisa irá repercutir? Na alimentação, no vestuário. Estamos, portanto, na mesma.

Em suma, para não me alongar. O problema, conquanto não se possa desprezar a parte médica propriamente dita, é de natureza econômica e social. Precisamos combater o regime capitalista na agricultura, dividir a propriedade agrícola, dar a propriedade da terra ao que efetivamente cava a terra e planta e não ao doutor vagabundo e parasita, que vive na “Casa Grande” ou no Rio ou em São Paulo. Já é tempo de fazermos isto e é isto que eu chamaria o “Problema Vital”.


Bagatelas, 22-2-1918. (Lima Barreto)


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Ode ao burguês


Eu insulto o burguês! O burguês-níquel,

o burguês-burguês!

A digestão bem feita de São Paulo!

O homem-curva! o homem-nádegas!

O homem que sendo francês, brasileiro, italiano,

é sempre um cauteloso pouco-a-pouco!


Eu insulto as aristocracias cautelosas!

Os barões lampeões! os condes Joões! os duques zurros!

que vivem dentro de muros sem pulos;

e gemem sangues de alguns mil-réis fracos

para dizerem que as filhas da senhora falam o francês

e tocam o "Printemps" com as unhas!


Eu insulto o burguês-funesto!

O indigesto feijão com toucinho, dono das tradições!

Fora os que algarismam os amanhãs!

Olha a vida dos nossos setembros!

Fará Sol? Choverá? Arlequinal!

Mas à chuva dos rosais

o êxtase fará sempre Sol!


Morte à gordura!

Morte às adiposidades cerebrais!

Morte ao burguês-mensal!

ao burguês-cinema! ao burguês-tílburi!

Padaria Suíssa! Morte viva ao Adriano!

"– Ai, filha, que te darei pelos teus anos?

– Um colar... – Conto e quinhentos!!!

Mas nós morremos de fome!"


Come! Come-te a ti mesmo, oh! gelatina pasma!

Oh! purée de batatas morais!

Oh! cabelos nas ventas! oh! carecas!

Ódio aos temperamentos regulares!

Ódio aos relógios musculares! Morte à infâmia!

Ódio à soma! Ódio aos secos e molhados!

Ódio aos sem desfalecimentos nem arrependimentos,

sempiternamente as mesmices convencionais!

De mãos nas costas! Marco eu o compasso! Eia!

Dois a dois! Primeira posição! Marcha!

Todos para a Central do meu rancor inebriante!


Ódio e insulto! Ódio e raiva! Ódio e mais ódio!

Morte ao burguês de giôlhos,

cheirando religião e que não crê em Deus!

Ódio vermelho! Ódio fecundo! Ódio cíclico!

Ódio fundamento, sem perdão!


Fora! Fú! Fora o bom burguês!...


(Mário de Andrade)


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País rico


Não há dúvida alguma que o Brasil é um país muito rico. Nós que nele vivemos, não nos apercebemos bem disso; e até, ao contrário, o supomos muito pobre, pois a toda hora e a todo instante, estamos vendo o governo lamentar-se que não faz isto ou não faz aquilo por falta de verba.

Nas ruas da cidade, nas mais centrais até, andam pequenos vadios, a cursar a perigosa universidade da calaçaria das sarjetas, aos quais o governo não dá destino, não os mete num asilo, num colégio profissional qualquer, porque não tem verba, não tem dinheiro. E o Brasil é um país rico...

Surgem epidemias pasmosas, a matar e a enfermar milhares de pessoas, que vêm mostrar a falta de hospitais na cidade, a má localização dos existentes. Pede-se a construção de outros bem situados; e o governo responde que não pode fazer porque não tem verba, não tem dinheiro. E o Brasil é um país rico...

Anualmente cerca de duas mil mocinhas procuram uma escola anormal ou anormalizada, para aprender disciplinas úteis. Todos observam o caso e perguntam:

- Se há tantas moças que desejam estudar, por que o governo não aumenta o número de escolas a elas destinadas?

O governo responde:

- Não aumento porque não tenho verba, não tenho dinheiro.

E o Brasil é um país rico, muito rico...

As notícias que chegam das nossas guarnições fronteiriças são desoladoras. Não há quartéis; os regimentos de cavalaria não têm cavalos, etc., etc.

- Mas que faz o governo, raciocina Brás Bocó, que não constrói quartéis e não compra cavalhadas?

O doutor Xisto Beldroegas, funcionário respeitável do governo acode logo:

- Não há verba; o governo não tem dinheiro.

E o Brasil é um país rico; e tão rico é ele, que apesar de não cuidar dessas coisas que vim enumerando, vai dar trezentos contos para alguns latagões irem ao estrangeiro divertir-se com os jogos de bola como se fossem crianças de calças curtas, a brincar nos recreios dos colégios.

O Brasil é um país rico...


Marginália, 8-5-1920. (Lima Barreto)


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I


O quê que vem fazer pelos meus olhos tantos barcos

Lenços rompendo adeuses presentinhos

Charangas na terra-roxa das estações um grito

Um grito não um gruto

Que me faz esquecer a miséria do mundo pão pão...


O quê que vem fazer na minha boca um beijo

A mulher da Bolívia agarrando

Um penacho de viúvas restritas

Restritas não restrutas

Que o papagalo repassa e põe na vida...


Ah... caminhos caminhos caminhos errados de séculos...

Me sinto o Pai Tietê. Dos meus sovacos

Saem fantasmas bonitões pelos caminhos

Penetrando o esplendor falso da América.


Dei-vos minas de ouro vós me dais mineiros!

Glória a Cícero nas vendinhas alterosas

Com a penugem dos pensamentos sutis

Feito ninho de guaxe

O passado atrapalha os meus caminhos

Não sou daqui venho de outros destinos

Não sou mais eu nunca fui eu decerto

Aos pedaços me vim – eu caio! – aos pedaços disperso

Projetado em vitrais nos joelhos nas caiçaras

Nos Pirineus em pororoca prodigiosa

Rompe a consciência nítida: EU TUDOAMO.


Ora vengam los zabumbas

Tudoamarei! Morena eu te tudoamo!

Destino pulha alma que bem cantaste

Maxixa agora samba o côco

E te enlambuza na miséria nacionar


(Mário de Andrade)


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Palavras dum simples


Nunca me meti em política, isto é, o que se chama política no Brasil. Para mim a política, conforme Bossuet, tem por fim tornar a vida cômoda e os povos felizes. Desde menino, pobre e oprimido, que vejo a "política" do Brasil ser justamente o contrário. Ela tende para tornar a vida incômoda e os povos infelizes. Todas as medidas de que os políticos lançam mão são nesse intuito. Os prefeitos, por exemplo, desta nossa leal e heróica cidade do Rio de Janeiro, são atualmente piores que os almotacés do conde de Resende. Estes tinham direito a certo número de línguas e "mãos de vaca" das reses abatidas no matadouro; os edis de hoje mandam construir hotéis de oito mil contos, para... hospedar estrangeiros. De forma que, no tempo de el-rei Nosso Senhor, as autoridades municipais se encarregavam do bem-estar do seu povo, como se dizia antigamente; hoje porém, com a nossa democracia, essas mesmas autoridades se encarregam do bem-estar dos ricaços displicentes que vêm a passeio, cheios de dinheiro, ver bobagens de uma "Exposição" de aterrado.

Por estas e outras eu sou completamente avesso a negócios de política, porque não acredito nela e muito menos nos políticos. Ultimamente, entre nós houve uma barulheira política que quase sacudiu o pais. Pus-me de parte e tive razão. Não havia nessa agitação nada de ideal, de superior. Só admito que se morra em matéria de política quando se o faça por uma ideia que interesse um grande grupo humano. No caso não havia isto e eu, aqui e ali, levei-o de troça. E outra atitude ele não merecia. Não sei os pródromos de semelhante barulheira, mas eles devem ser muito baixos e vagabundos.

A verdade, porém, é que o observador imparcial logo concluiu que nenhum dos grupos que se digladiavam falava a verdade.

A questão versava sobre uma falsificação de cartas, atribuidas ao Sr. Artur Bernardes, atualmente eleito presidente da República. Tais cartas continham insultos ao Exército e os adversários do Sr. Bernardes excitaram os brios da força armada contra ele, baseados nas referidas missivas. O intuito dos opositores à candidatura do Sr. Bernardes era mover o Exército contra esta, vetá-la e, caso fosse possível, impedir a posse do mesmo senhor pela força. Havia nisto um apelo declarado ao que se chama nas repúblicas espanholas "o pronunciamento". Toda a gente sabe que isso tem sido um flagelo, tanto para elas como para nós. O dever nosso é evitá-lo de qualquer forma.

Qualquer modalidade de hipocrisia política, de que se revista o provimento deste ou daquele cargo de eleição, é melhor do que o assassinato e a violência. Penso assim porque estou convencido de que seja Paulo, Sancho ou Martinho que governe, esta vida será sempre uma miséria. Seria capaz de deixar-me matar, para implantar aqui o regímen maximalista; mas a favor de Fagundes ou de Brederodes não dou um pingo do meu sangue.

Tenho para mim que se deve experimentar uma "tábua rasa" no regímen social e político que nos governa; mas mudar só de nomes de governantes nada adianta para a felicidade de todos nós. Demais, há tanta incoerência nesses políticos que nos azucrinam os ouvidos com velhos tropos quando querem satisfazer as suas ambições, que vimos, nos últimos acontecimentos, sujeitos que, não há muitos anos, se insurgiram contra a intromissão, a pressão dos militares nas causas políticas, apelarem para eles, para a sua fôrça e o seu prestígio, a fim de tornar vencedora a própria causa.

Vimos em que deu a coisa. Ao menor sopro de "mazorca" foram todos pelos ares e eles todos debandaram, escafederam-se, deixando o chefe sozinho. Que este fique só, não há mal nenhum. Ele é rico ou enriquecido e pode aguentar o repuxo: mas o povo não deve ir atrás dessa gente. Os pobres-diabos que se apaixonam por essas especulações de políticos é que levam o "chanfalho" da polícia e sofrem perseguições.

São causas que nós, humildes, não devemos esposar, porque elas não representam nenhum ideal elevado, nem nada de sincero e de sério.


Hoje, 22-7-1922 (Lima Barreto)


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XIV


Vou-me embora vou-me embora

Vou-me embora pra Belém

Vou colher cravos e rosas

Volto a semana que vem


Vou-me embora paz da terra

Paz da terra repartida

Uns têm terra muita terra

Outros nem pra uma dormida


Não tenho onde cair morto

Fiz gorar a inteligência

Vou reentrar no meu povo

Reprincipiar minha ciência


Vou-me embora vou-me embora

Volto a semana que vem

Quando eu voltar minha terra

Será dela ou de ninguém.


(Mário de Andrade)


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Se fosse possível...


Os tristes anos de guerra que passamos (e terão eles passado?) geraram, entre outros males, o da desconfiança, - que separa os homens. Negros tempos, em que o inimigo pode estar em toda parte; não se olha: espreita-se; não se fala; sussurra-se; não se vai direto a nenhum assunto, como um coração em liberdade: rodeia-se. Rodeia-se e encontra-se o Curvo de Ibsen. “Nem morto nem vivo. Nevoeiro. Lama. Sem forma... o Curvo não ataca. Triunfa sem lutar.” A imagem da hipocrisia postou-se nos mais belos caminhos. Oh, o cansaço imenso da guerra não está somente nos ombros dos soldados que batalharam: está em todos que queriam viver sinceramente; está nos que não puderam fazer nada, que foram detidos e paralisados, transferidos para um dia que talvez não alcancem – e, de qualquer modo, postos fora de ação, pelas circunstâncias condenados à inércia no justo momento de construir, momento que nem sempre volta, e quando volta já não é o mesmo.

O fim da guerra, com seus desenlaces pavorosos, abriu uma válvula aos compromissos e desesperos do mundo; e assistimos a espetáculos de brutalidade que quase excedem os da própria guerra. Por ele vemos já não a atrocidade dos combates, nem os recursos demoníacos alcançados pelo homem em atacar ou defender-se – mas a perversão a que esses anos conduziram, o estado de deformação que a criatura humana atingiu, depois de tantos exercícios macabros; a facilidade com que se resvala até a mais negra baixeza, até o súbito esquecimento de toda a aprendizagem de domesticação conquistada em longos séculos pelo animal humano.

Há uma alucinação coletiva, um desequilíbrio total, explicáveis por esses anos de turbulência, de ameaça constante dirigida contra os nervos, com a sábia perversidade dos que conhecem bem o seu alvo. E depois desse arrasamento brutal da terra, não ficaram apenas campos e cidades destruídos, cadáveres e famintos: ficou uma turba transtornada, pelo que viu, pelo que sofreu e até pelo que esperou sem ter acontecido.

Como esta, na verdade, foi – segundo o seu próprio objetivo – uma guerra total, aos mais longínquos pontos do mundo propagou seus efeitos. Estamos numa era em que as notícias correm com velocidade quase absoluta, e na verdade todos estivemos presentes, todos fomos testemunhas e participantes do cataclisma. Devemos ter (...) ainda nos sobra alguma responsabilidade, depois de tão amarga existência, devemos convencer-nos de que o bom caminho para a vida é o da compreensão e o da paz. Mas que essa compreensão e essa paz não se alcançam com a assinatura de alguns tratados, porque o homem é igual ao homem, mas é diferente do homem: em sua natureza, idêntico, em sua evolução, desigual. Se, desde que se compreendeu isso, se tivesse posto em prática uma disciplina que fosse permitindo evitar os nossos naturais desacordos, e estimular as nossas coincidências, de modo a promover um bom entendimento geral, - certamente esta grande guerra já não teria ocorrido. E se continuarmos a não pôr em prática uma disciplina dessas, talvez nossos netos, talvez mesmo nossos filhos, tenham de repetir, em proporções ainda maiores, o mesmo drama que hoje arrepia os simples espectadores dos confortáveis salões de cinema...

Isto parece um pesadelo, mas não foi um pesadelo; parece uma história para aterrorizar, mas foi uma história vivida. Não é possível que a deseje repetir. E isso não impede que a repitam, porque não é só pelo platônico desejo de bem-estar e felicidade que se constrói nem um nem outro.

Os homens nem sempre têm os mesmo recursos, nem sempre falam a mesma linguagem, mas os seus objetivos são singularmente parecidos. Devíamos compreender nos outros o que compreendemos em nós. Mas de tanto pensarmos em nós, esquecemos frequentemente os outros.

Se aplicássemos o que resta de simpatia, de caridade, de altruísmo, pensando um pouco além dos nossos próprios limites, desejando verdadeiramente contribuir para melhorar o mundo, encontraríamos algum caminho, porque todos nós, sob pena de sermos verdadeiramente imprestáveis, sempre somos capazes de realizar aqui ou ali alguma coisa de utilidade geral.

A paz humana, como a felicidade de cada um, não é uma vantagem repentina, que se conquista de assalto e se mantém para sempre: é um vagaroso dever, cultivado com clarividência. Ganha-se a paz do mundo com a paz de cada indivíduo assegurada. Não adianta destruir uma fábrica de munições deixando na Terra um coração inquieto e feroz: as armas não nascem por si, elas representam materialmente o desejo e o sonho dos homens.

Mas ainda há muita loucura nos ares. E não a querem ver. E dentro dela não se pode trabalhar nem pensar!


(Cecília Meireles)


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...


Eu nem sei si vale a pena

Cantar São Paulo na lida,

Só gente muito iludida

Limpa o gosto e assopra a avena,

Esta angústia não serena,

Muita fome pouco pão,

Eu só vejo na função

Miséria, dolo, ferida,

Isso é vida?


São glórias desta cidade

Ver a arte contando história,

A religião sem memória

De quem foi Cristo em verdade,

Os chefes nossa amizade,

Os estudantes sem textos,

Jornalismo no cabresto,

Tolos cantando vitória,

Isso é glória?


Divórcio pra todo o lado,

As guampas fazem furor,

Grã-finos do despudor,

No gasogênio empestado,

Das moças do operariado

São os gozosos mistérios,

Isso de ter filho, néris,

E se ama seja o que fôr,

Isso é amor?


Mas o pior desta nação

É ter fabrica de gás

Que donos-da-vida faz

Ianques e ingleses de ação,

Tudo vem de convulsão

Enquanto se insulta o Eixo,

Lights, Tramas, Corporation,

E a gente de trás pra trás,

Isso é paz?


Pois nada vale a verdade,

Ela mesma está vendida,

A honra é uma suicida,

Nuvem a felicidade,

E entre rosas a cidade,

Muito concha e relambória,

Sem paz, sem amor, sem glória,

Se diz terra progredida,

Eu pergunto:

Isso é vida?


(Mário de Andrade)


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Tutti das famintas:


Não aguento a fome

Não aguento a fome

Deus dorme nos ares

Os chefes nas camas

Acordo no chão

Eu quero o meu pão!


Não aguento a fome

Lei no coração:

Malditos os homens

Maldito este tempo

Maldita esta vida.

Eu quero o meu pão!

Eu quero o meu pão!


Não aguento a fome

Nesta maldição

Ordens nos ouvidos

Sangue nos meus olhos

Ódio em minha boca

Eu quero o meu pão!

Eu quero o meu pão!

Eu quero o meu pão!


Os estivadores (pianíssimo, depois da orquestra se melancolizar, repetindo a mesma frase melódica final das Famintas):


– Quem pode dar pão!...


(Mário de Andrade)


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Oh! A bomba...


Oh, a bomba!...Até os rapazes que em geral só se ocupam de pingue-pongue saíram de suas nobres ocupações favoritas arriscando um palpite sobre o formidável engenho. E as damas que, para invernos imaginários se envolvem em peles da Sibéria, e não contemplam as fotografias dos campos de concentração para não terem pesadelos, até essas sensíveis senhoras se detiveram um momento – embora levemente incrédulas – divagando sobre as consequências da formidável explosão.

Essas consequências serão inúmeras. Aparecerão chapéus fatais, inspirados na preciosa bomba; os fabricantes de brinquedos irão perturbar a infância com miniaturas da novidade; as vitrinas se encherão de berloques extravagantes, da mesma inspiração; no fim do ano teremos um samba com variações sobre o tema; e então a bomba estará verdadeiramente divulgada e popularizada, e até a menina que vende lápis de noite, e os mendigos das imediações dos cassinos, e o cego mais cego perdido aí por essas moitas, saberá da existência dessa maquina espetacular.

O maravilhoso é que a bomba aparece como um símbolo, além de aparecer como uma fragorosa realidade. Vem ameaçar da destruição total a estrutura de um mundo que uma parte da humanidade tem lentamente solapado com forças imateriais. O que a bomba encontra para arrasar é o que foi ficando construído pela própria natureza, ou o que, das gerações, o tempo ainda respeita. São as casas, as ruas, as criaturas, e os pobres animais, alheios à aventura humana, e ao mesmo tempo a ela tristemente escravizados.

Mas somente isso. Porque o resto tem sido violentado, quebrado, esquecido propositadamente, disperso em todas as direções, e propagado sem limites seu tremendo poder sutil de desagregação. E o resto era muito mais importante que as casas e os arsenais. Era o nosso sentido de amor humano. Era a compreensão das criaturas – o esforço, ao menos, dessa compreensão. Era a disciplina de viver em comum na Terra, suportando-nos e melhorando-nos pacientemente. Era esse estado de benevolência total, de uso silencioso e íntimo, cujos efeitos não diminuem com seu segredo. Era o desejo de ser justo, exemplo que já nem figura nas antologias... Era a convicção no valor das forças morais. Era o pudor de ser ou parecer, sequer, maior que o seu semelhante. Era o respeito pela condição humana. A alegria de ser fraternal. A impossibilidade de se sentir feliz, só pela idéia de que algum sofrimento estivesse palpitando escondido no mundo.

Tudo isso também é humano, pois certamente algumas vezes é sentido. Mas há o lado feroz, que é oposto de tudo isso. E este é o que separa, o que desagrega, o que dispersa para um caos melancólico tudo quanto o outro consegue aproximar, reunir, harmonizar, integrar.

A bomba atômica não deve causar tanta admiração nem tanto susto. Ela é apenas a representação plástica do que uma parte da humanidade tem surdamente realizado nesses invisíveis laboratórios que também somos.

Como há criminosos distraídos, irresponsáveis, com os sentidos extraviados, talvez agora contemplem essa imagem como um fantasma em ponto grande, e o reconheçam, e lhe dêem o verdadeiro nome.

E Oxalá possam as forças do amor, tão fatigadas, realizar ainda uma vez esse milagre obscuro de arrancar da tão prodigiosa ameaça os poderes benéficos que a nossa miséria talvez já nem mereça – mas de que ainda necessita.


(Cecília Meireles)


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(Ainda sobre a bomba atômica)

***

Após a notícia dos arrasamentos, os comentaristas da bomba atômica enumeraram os longos benefícios que a humanidade recebera da utilização dos princípios em que se baseia aquele engenho. A imaginação transpõe todas as fronteiras: esquece-se o aviso prudente de que é preciso deixar passar o tempo, para que se façam possíveis tais prodígios, e começa-se a viver num mundo que já não tem mais nada a ver com o de agora, embora este seja mesmo o quinhão mesquinho que nos toque, a nós, tristes habitantes de fronteira um pouco atrasados para alcançarmos o horizonte.

Nestes últimos dias, o mundo envelheceu de uma decrepitude rápida. Compreendeu-se de repente a razão destas fadigas, destas melancolias, deste mal-estar dos mais sensíveis: assim como está, não é mais suportável o mundo. Não se trata de algum caso pessoal nem será mesmo a desordem social – é esta falta de sentido de existência humana: é o problema total, cujos fundamentos as filosofias e religiões têm explorado e entretido com uma certa piedade pelo desespero dos mais fracos, e cautela contra as agressões dos violentos. A ciência, que trabalha com modéstia e precaução, coloca de repente, na mesa em que se joga o destino humano, a carta com que talvez se ganhe o destino universal.

O sonho da pedra filosofal ficará desta vez excedido, como realidade; e os homens, que nunca pensaram nisso, terão de aprender a respeitar a imaginação, o trabalho livre do pensamento, essa operação criadora peculiar ao artista, ao sábio, ao filósofo, tão longamente desdenhados e mal-tratados. Em ocasiões como estas, compreende-se que não é uma vadiação o jogo construtivo do pensamento; que o laboratório ou o gabinete de trabalho não são as fáceis torres de marfim a que com tanto desprezo se alude; que viver retirado dos homens pode ser um modo nobre de estar a seu serviço.

Chega-se, então, a compreender a necessidade do respeito pelo estudo – num tempo em que a façanha de tomar posições de assalto se vem exercendo com esportiva felicidade fora dos campos de batalha... É um chamado de regresso à dignidade do trabalho intelectual, e ao que tem sobrevivido às maiores crises, entre os maiores equívocos: a pesquisa desinteressada, que o próprio Pasteur teve de defender certo dia – e era Pasteur! E era na França.

Mas o trabalho intelectual e a pesquisa desinteressada são funções normais das universidades. Sem elas, os Estados Unidos não seriam o que são; não fariam o que fazem; não teriam reunido os seus investigadores e os europeus nessa obra de conjunto cujos primeiros resultados agitam o mundo.

O mundo agora parece velhíssimo e agonizante, porque os seus problemas estavam todos divididos, e agora poderão ser resolvidos com uma solução talvez radical: pelo menos esses pequenos problemas diários, que são aqueles por que as pessoas gritam, clamam, se revoltam, odeiam, matam. Os grandes problemas são silenciosos. Mas, resolvidos aqueles, ter-se-á tempo de pensar nestes. E talvez se gaste muito cérebro ainda para elucidar o sentido da condição humana.

Será preciso muito cérebro, muito tempo, e algumas universidades. Universidades! Ah, como se está velho o mundo, visto daqui! – como está velho! Triste, caduco, indigente...


(Cecília Meireles)


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Reinvenção


A vida só é possível

reinventada.


Anda o sol pelas campinas

e passeia a mão dourada

pelas águas, pelas folhas...

Ah! Tudo bolhas

que vêm de fundas piscinas

de ilusionismo...– mais nada.


Mas a vida, a vida, a vida,

a vida só é possível

reinventada.


Vem a lua, vem, retira

as algemas dos meus braços.

Projeto-me por espaços

cheios da tua Figura.

Tudo mentira! Mentira

da lua, na noite escura.


Não te encontro, não te alcanço...

Só – no tempo equilibrada,

Desprendo-me do balanço

que além do tempo me leva.


Só – na treva,

fico: recebida e dada.


Porque a vida, a vida, a vida,

a vida só é possível

reinventada.


(Cecília Meireles)


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Viadutos



– Endereço do colega?

– Viaduto São Sebastião, pilastra n.º 4, lado esquerdo, na Presidente Vargas. Apareça por lá.

– Ótimo. Vou aparecer, mas agora não. Estou de mudança.

– Se não for indiscrição, pode-se saber para onde?

– Não sei ainda. Moro no viaduto de Japeri, aliás muito confortável, mas compreende, né? Um pouco longe. Procuro um na cidade.

– Já experimentou Botafogo?

– Fui eu que inaugurei. Era uma habitação deliciosa, aliás duas, com vista panorâmica, banho de mar em frente, etc. Mas sabe o que aconteceu: estragaram aquilo, botaram jardins, espelhos d’água...

– É. Estão sempre atrapalhando.

– Espelho d’água, vá lá, serve para a toalete. Mas o jardim...

– Jardim não é bom para secar a roupa?

– Em tese. Mas há sempre um guarda querendo defender as plantas, implicando com os moradores.

- Tem razão. Na vida, o essencial é paz.

- Também acho. Folgo em saber que estamos de acordo neste ponto fundamental. Mas, sabe? Os viadutos estão difíceis.

- É, ouço dizer. Mesmo havendo tantos por aí?

- Todos lotados. Dizem que onde cabem três cabe mais um. Eu discordo. Por essa teoria, onde cabem 20, 50, mil, cabe sempre mais um. E os viadutos tornam-se inabitáveis, ficam iguaizinhos aos edifícios, o que, francamente, caro colega, não é vantagem.

- Vejo que o amigo aprecia a solidão.

- Solidão a dois, a três, eu aprecio, quando os colegas sabem viver em comunidade. A gente não está nem sozinha nem com multidão. Equilibrado. Cada um cuida de si, e reina ordem no viaduto. O que eu não suporto é viaduto desorganizado. Sou muito exigente neste particular.

- Estou vendo que lá em Japeri o senhor deve ser uma espécie de síndico.

- Que síndico? Quem falou em síndico? Nós três nos autogovernamos. Eu, que atendo por Quilo-e-Meio, seu criado ( não cheguei a crescer muito, em todo caso não me chamam de Meio-Quilo), o Vai-por-Mim e a Marlene Garbo.

- Por que Marlene Garbo? Não é acumulação?

- Por que ela tem as pernas de Marlene Dietrich e o jeito da Greta Garbo. A combinação é genial, sabe? Tem vezes que a gente chama ela de Margá. Santa mulher. Já teve os tubos, viajou pela aí, não guardou nem pinta de grã-finagem.

- E o Vai-por-Mim?

- Não tenho queixa dele. Só que anda com mania de jogar na Bolsa, nosso viaduto está cheio de balancetes, prospectos, gráficos. Tenho medo que ele fique rico, daí a pouco começa a botar banca.

- Dê uns conselhos ao Vai-por-Mim.

- Dei. Ele sonha em descobrir jazida de tório em Japeri, para fundar o Banco Nacional de Habitação em Viadutos, Pontes e Congêneres. Não deu sorte na Loteca, hoje diz que o plá é investir. Eu preveni a ele: Ficando rico, a primeira coisa que vai fazer é cobrar aluguel nos viadutos.

- Os viadutos são do Estado.

- E daí? Até o Estado perceber, ele já dobrou a fortuna. O colega desculpe, mas isso é safanagem.

- Diga ao Vai-por-Mim que apareça aqui no São Sebastião, para batermos um papo.

- Vai tirar essas minhocas da cabeça dele?

- Não sei... A idéia me parece aproveitável. A socialização dos viadutos, uma cadeia nacional de Hilton dos homens e mulheres independentes...Viadutos bem funcionais, o abrigo ao alcance de todos... Um problema social que se resolve...

– Sem essa! Eu a querer salvar o Vai-por-Mim, e o colega pensando em tirar partido da loucura dele! Acabando com a paz, a relativa paz que ainda se goza nos viadutos! Não conte comigo e passe muito mal, traidor!


(Carlos Drummond de Andrade)


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Romanceiro da Inconfidência

- Romance XXIV ou

Da Bandeira da Inconfidência


Através de grossas portas,

sentem-se luzes acesas,

– e há indagações minuciosas

dentro das casas fronteiras:

olhos colados aos vidros,

mulheres e homens à espreita,

caras disformes de insônia,

vigiando as ações alheias.

Pelas gretas das janelas,

pelas frestas das esteiras,

agudas setas atiram

a inveja e a maledicência.

Palavras conjeturadas

oscilam no ar de surpresas,

como peludas aranhas

na gosma das teias densas,

rápidas e envenenadas,

engenhosas, sorrateiras.


Atrás de portas fechadas,

à luz de velas acesas,

brilham fardas e casacas,

junto com batinas pretas.

E há finas mãos pensativas,

entre galões, sedas, rendas,

e há grossas mãos vigorosas,

de unhas fortes, duras veias,

e há mãos de púlpito e altares,

de Evangelhos, cruzes, bênçãos.

Uns são reinóis, uns, mazombos;

e pensam de mil maneiras;

mas citam Vergílio e Horácio,

e refletem, e argumentam,

falam de minas e impostos,

de lavras e de fazendas,

de ministros e rainhas

e das colônias inglesas.


Atrás de portas fechadas,

à luz de velas acesas,

uns sugerem, uns recusam,

uns ouvem, uns aconselham.

Se a derrama for lançada,

há levante, com certeza.

Corre-se por essas ruas?

Corta-se alguma cabeça?

Do cimo de alguma escada,

profere-se alguma arenga?

Que bandeira se desdobra?

Com que figura ou legenda?

Coisas da Maçonaria,

do Paganismo ou da Igreja?

A Santíssima Trindade?

Um gênio a quebrar algemas?


Atrás de portas fechadas,

à luz de velas acesas,

entre sigilo e espionagem,

acontece a Inconfidência.

E diz o Vigário ao Poeta:

“Escreva-me aquela letra

do versinho de Vergílio...”

E dá-lhe o papel e a pena.

E diz o Poeta ao Vigário,

com dramática prudência:


“Tenha meus dedos cortados,

antes que tal verso escrevam...”

LIBERDADE, AINDA QUE TARDE,

ouve-se em redor da mesa.

E a bandeira já está viva,

e sobe, na noite imensa.

E os seus tristes inventores

já são réus – pois se atreveram

a falar em Liberdade

(que ninguém sabe o que seja).


Através de grossas portas,

sentem-se luzes acesas,

– e há indagações minuciosas

dentro das casas fronteiras.

“Que estão fazendo, tão tarde?

Que escrevem, conversam, pensam?

Mostram livros proibidos?

Leem notícias nas Gazetas?

Terão recebido cartas

de potências estrangeiras?”

(Antiguidades de Nimes

em Vila Rica suspensas!

Cavalo de La Fayette

saltando vastas fronteiras!

Ó vitórias, festas, flores

das lutas da Independência!

Liberdade – essa palavra

que o sonho humano alimenta:

que não há ninguém que explique,

e ninguém que não entenda!)


E a vizinhança não dorme:

murmura, imagina, inventa.

Não fica bandeira escrita,

mas fica escrita a sentença.


(Cecília Meireles)


. . .


Brasileiro cem-milhões


Telefonei para a maternidade indagando se havia nascido o bebê n.º 100.000.000, e não souberam informar-me:

- De zero hora até este momento nasceram oito, mas nenhum foi etiquetado com esse número.

É uma falha do nosso registro civil: as crianças não recebem número ao nascer. Dão-lhe apenas um nome, às vezes surrealista, que as acompanhará por toda a vida como pesadelo, quando a numeração pura e simples viria garantir identidade insofismável, poupando ainda o vexame de carregar certos antropônimos. Centenas de milhares nascem João ou José, mas o homem ou a mulher 25.786.439 seria uma única pessoa viva, muito mais fácil de cadastrar no fichário do Imposto de Renda e nos dez mil outros fichários com que é policiada a nossa existência.

Passei por baixo do viaduto, onde costumam nascer filhos do vento, e reinava uma paz de latas enferrujadas e grama sem problemas. Ninguém nascera ali depois da meia-noite. O dia 21 de agosto, marcado para o advento do brasileiro cem-milhões, transcorria sem que sinal algum, na terra ou no ar, registrasse o acontecimento.

Costumo acreditar nos bancos, principalmente nos oficiais, e se o Banco Nacional da Habitação, através do Serfhau, garantiu que nessa segunda-feira o Brasil atingiria a cifra redonda de 100 milhões de habitantes, é porque uma parturiente adrede orientada estaria de plantão para perfazer esse número.

Verdade seja que o IBGE, pelo Centro Brasileiro de Estudos Demográficos, julgou prematura a declaração, e só para o trimestre de outubro/dezembro nos promete o brasileiro em questão. Não ponho em dúvida sua autoridade técnica, mas um banco é um banco, ainda mais se agência governamental, e a esta hora deve ter recolhido nosso centésimo milionésimo compatrício em berço especial da casa própria, botando-lhe à cabeceira um cofre de caderneta de poupança.

É que me custa admitir o nascimento desse garoto, ou garota, sem o amparo de nossas leis sociais, condenado a ser menos que um número – uma dessas crianças mendicantes, que não conhecerão as almofadas da felicidade. Não queria que a televisão lhe desse um carnet e uma viagem à Grécia, nem era preciso que Manchete lhe dedicasse 10 páginas coloridas, sob o patrocínio de melhor leite em pó. Mas gostaria que viesse ao mundo com um mínimo de garantia contra as compulsões da miséria e da injustiça, e de algum modo representasse situação idêntica de milhões de outras crianças que recebessem – estou pedindo muito? – não somente o dom da vida, mas oportunidades de vivê-la.

Seria vaidade irrisória proclamar-se ele o 100.000.000.º brasileiro, membro eufórico da geração dos 100 milhões, e saber-se apenas mais um marginalizado, que só por artifício de média ganha sua fatia no bolo do Produto Interno Bruto.

Não o desejo herói de monumento nem mártir anônimo. Prefiro vê-lo como um ser capaz de fazer alguma coisa de normal numa sociedade razoavelmente suportável, em que a vida não seja obrigação estúpida, sem pausa para fruir a graça das coisas naturais e o que lhes acrescentou a imaginação humana.

Olho para esse brasileiro cem-milhões, nascido ontem ou por nascer daqui a algumas semanas, como se ele fosse meu neto... Bisneto, talvez. Pois quando me dei conta de mim, isto aí era um país de quase 20 milhões de pessoas, diluídas num território quase só mistério, que aos poucos se foi desbravando, mantendo ainda bolsões de sombra. Vi crescer a terra e lutarem os homens, entre desajustes e sofrimentos. Os maiorais que dirigiam o processo lá se foram todos. Vieram outros e outros, e encontro nesta geração o novo rosto da vida, que se interroga. Há muita ingenuidade, também muita coragem, e os problemas se multiplicaram com o crescimento desordenado. Somos mais ricos... E também mais pobres.

Meu querido e desconhecido irmão n.º 100.000.000, onde quer que estejas nascendo, fica de olho no futuro, presta atenção nas coisas para que não façam de ti subproduto de consumo, e boa viagem pelo século XXI adentro.


(Carlos Drummond de Andrade)


. . .


A flor e a náusea



Preso à minha classe e a algumas roupas,

vou de branco pela rua cinzenta.

Melancolias, mercadorias espreitam-me.

Devo seguir até o enjoo?

Posso, sem armas, revoltar-me?


Olhos sujos no relógio da torre:

Não, o tempo não chegou de completa justiça.

O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.

O tempo pobre, o poeta pobre

fundem-se no mesmo impasse.


Em vão me tento explicar, os muros são surdos.

Sob a pele das palavras há cifras e códigos.

O sol consola os doentes e não os renova.

As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase.


Vomitar esse tédio sobre a cidade.

Quarenta anos e nenhum problema

resolvido, sequer colocado.

Nenhuma carta escrita nem recebida.

Todos os homens voltam para casa.

Estão menos livres mas levam jornais

e soletram o mundo, sabendo que o perdem.


Crimes da terra, como perdoá-los?

Tomei parte em muitos, outros escondi.

Alguns achei belos, foram publicados.

Crimes suaves, que ajudam a viver.

Ração diária de erro, distribuída em casa.

Os ferozes padeiros do mal.

Os ferozes leiteiros do mal.


Pôr fogo em tudo, inclusive em mim.

Ao menino de 1918 chamavam anarquista.

Porém meu ódio é o melhor de mim.

Com ele me salvo

e dou a poucos uma esperança mínima.


Uma flor nasceu na rua!

Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.

Uma flor ainda desbotada

ilude a polícia, rompe o asfalto.

Façam completo silêncio, paralisem os negócios,

garanto que uma flor nasceu.


Sua cor não se percebe.

Suas pétalas não se abrem.

Seu nome não está nos livros.

É feia. Mas é realmente uma flor.


Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde

e lentamente passo a mão nessa forma insegura.

Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.

Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.

É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.


(Carlos Drummond de Andrade)


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Coração segundo


– De acrílico, de fórmica, de isopor, meticulosamente combinados, fiz meu segundo coração, para enfrentar situações a que o primeiro, o de nascença, não teria condições de resistir. Tornei-me, assim, homem de dois corações. A operação sigilosa foi ignorada pelos repórteres. Eu mesmo fabriquei meu coração novo, nos fundos da casa onde moro. Nenhum vizinho desconfiou, mesmo porque sabem que costumo fechar-me em casa, semanas inteiras, modelando bonecos de barro ou de massa, que depois ofereço às crianças. Oferecia. Meus bonecos não têm arte, representam o que eu quero. Fiz um Einstein que acharam parecido com Lampião. Para mim, era Einstein. Os garotos riam, tentando adivinhar que tipos eu interpretara. Carlito! Não era. Às vezes, não sei por que, admitia fosse Carlito. Nunca dei importância a leis de semelhança e verossimilhança, que sufocam toda espécie de criação.

Mas, como disse, fiz meu coração sem ninguém saber. E à noite, em perfeita lucidez, abrindo o peito mediante processo que não vou contar, pois minha descrição talvez horrorizasse o leitor, e eu não pretendo horrorizar ninguém – abrindo o peito, instalei lá dentro esse coração especial, regulado para não sofrer. Ao mesmo tempo, desliguei o outro. Como? Também prefiro não explicar. Possuo extrema habilidade manual aguçada à noite, e sei o que geralmente se sabe dos órgãos do corpo e suas funções e reações, depois que ficou na moda tratar dessas coisas em jornais e revistas. Além disto, minha capacidade de resistir à dor física sempre foi praticamente ilimitada. Desde criança. Mas as dores morais, as dores alheias, as dores do mundo, acima de tudo, estas sempre me vulneraram. Recompus a incisão, senti que tudo estava perfeito, e fui dormir.

Na manhã seguinte, ao ler as notícias que falavam em fome no Paquistão, guerra civil na Irlanda, soldados que se drogam no Vietname para esquecer o massacre, explosão experimental de bombas de hidrogênio, tensão permanente no Canal de Suez, golpes vitoriosos ou malogrados na América Latina, bem, não senti absolutamente nada. O coração funcionava a contento. Fui para o trabalho experimentando sensação inédita de leveza. No caminho, vi um corpo de homem e outro de mulher estraçalhados entre restos de um automóvel. Pela primeira vez pude contemplar um espetáculo desses sem me crispar e sem envenenar o meu dia. Fitei-o como a objetos de uma casa expostos na calçada, em hora de mudança. E passei um dia normal. Trabalho, refeições, sono, igualmente normais, coisa que não acontecia há anos.

Meu coração fora planejado para evitar padecimento moral, e desempenhava bem a função. Assisti impassível a cenas que antes me fariam explodir em lágrimas ou protestos. Felicitei-me pela excelência. Mas aí começou a ocorrer um fenômeno desconcertante. Eu, que não sofria com as doenças que me assaltavam, passei a sentir reflexos de moléstias inexistentes. Simples corte no dedo, sem inflamação, afligia-me como chaga aberta. Dor de cabeça que passa com um comprimido, ficava durante semanas. Meu corpo tornou-se frágil, exposto ao sofrimento. E eu não tinha nada. Consultei especialistas, fiz checkup, não se descobriu qualquer lesão ou distúrbio funcional. Eram penas imotivadas, gratuitas. Meu coração n.º 2 passava pela radiografia sem ser percebido. Irredutível à dor moral, era invisível a aparelhos de precisão.

Comecei a sofrer tanto com os meus males carnais, que a vida se tornou insuportável. A dor aparecia especialmente em horas impróprias. Em reuniões sociais. Em concertos. No escritório, ao tratar de negócios. Então fazia caretas, emitia gemidos surdos, assumindo aspecto feroz. Assustavam-se, queriam chamar ambulância, eu recusava. Tinha medo de que descobrissem o coração fabricado.

Outra coisa: as crianças começaram a achar estranhos meus bonecos, não queriam aceitá-los. Sempre gostei de crianças. E elas me repeliam. Esmerei-me na feitura de peças que pudessem cativá-las, mas em vão.

Hoje vi um homem encostado a um oiti, diante do mar. Sua expressão de angústia dava ao rosto o aspecto de chão ressecado. Tive pena dele. Surpreso, ignorando tudo ao seu respeito, mas participando de sua angústia e trazendo-a comigo para casa.

Agora à noite, decidi-me. Voltei a abrir o peito e examinei o coração segundo. Com pequena fissura no isopor, já não era perfeito. Ao tocá-lo, as partes se descolaram. Inútil restaurá-lo. Joguei fora os restos, liguei o antigo, e fechei o cavername. Talvez pela falta de uso, sinto que o coração velho está rateando. Que fazer? E vale a pena fazer? A manhã tarda a chegar, e não encontro resposta em mim.


(Carlos Drummond de Andrade)


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Coisas de graça


O anúncio dizia: “Amanhã você não vai pagar o seu cafezinho”.

Certamente era um café que se inaugurava, procurando cativar o público. Depois do famigerado Petit Prince de Saint-Exupéry, cativar tornou-se palavra de consumo geral. Como o cafezinho.

Pois não era. A casa fechava-se e, a título de despedida sentimental, não cobraria o cafezinho que fora objeto do seu comércio durante 30 anos.

O freqüentador suspirou:

- Há 20 anos que tomo café nesta casa, e logo quando ela vai acabar é que institui o fornecimento gratuito.

Acrescentou:

- Não é pelo preço do cafezinho, que eu sempre paguei sem sacrifício, e continuaria a pagar, se a casa continuasse. É pela espécie de sonho acordado que isso me provoca, sonho que dura um momento, e se esfarela: as coisas de graça. Elas só ficam sendo de graça na hora em que deixam de ser coisas.

- Mas vem cá, você queria que tudo fosse de graça a vida inteira? – perguntou o amigo.

- Queria. Por que não? Se este cafezinho me é servido de graça neste instante, e, se eu voltar daqui a cinco minutos será servido outra vez de graça, e mais cinco minutos depois, e mais cinco e mais cinco... até eu ficar entupido de café e bradar: chega, não quero mais!, por que não posso pensar que uma sociedade bem organizada serviria tudo a todos, a troco de sorriso?

O outro ia retrucar com as leis da economia, as lições do Dr. Gudin, o bom senso, etc., mas o rêveur éveillé não lhe deu folga:

– Saio daqui mal acostumado, vou ao Nino, janto uns camarões, retiro-me despreocupado, pois já não se pagam camarões no Brasil. Nisso corre o garçom ao meu encalço: “Doutor, o senhor se esqueceu da nota!” “Que nota”, respondo. “Eu sorri para você e para o restaurante, não é esse o pagamento?” Ele abana a cabeça desolado: “Continuamos cobrando em cruzeiros, doutor. E olhe que nos hotéis do Tjurs já se calcula em dólar.” Veja no que dá a ilusão do cafezinho grátis. No entanto, ao ler o anúncio, eu já estava inclinado a não cobrar de ninguém os meus serviços.

- E mudar-se para o hospício?

- Todos se mudariam para o hospício, isto é, não haveria hospício, pois ninguém mais ia enlouquecer por falta ou excesso de dinheiro. Você chama a isso de sociedade utópica, eu chamo simplesmente de sociedade, nome que anda falsificadíssimo. Societas generis humani, para gastar o meu Cícero, que nem de graça cai mais no vestibular. Repare que não estou pedindo nada de graça no sentido comum, de alguém dar a outrem um par de sapatos para sentir-se superior e tirar diploma de generoso. O que eu proponho (proponho é modo de dizer, ninguém me escutaria se eu propusesse isso ao Ministério do Planejamento ou aos fabricantes de geleia) é dar de graça as coisas, retirando valor às coisas, e valorizando o ato de se desfazer delas. Todos passariam a oferecer serviços e bens, de que todos se utilizariam sem recorrer a financiamento, pé-de-meia, desfalque, insônia, úlcera duodenal, enfarte, assalto, homicídio, etc. O trabalho deixaria de ser motivo de injustiça, e a produção deixaria de ser causa de guerra. No começo, a gente faria cara feia, depois se acostumava com esse esporte de oferecer sem cobrar, já que a outra parte, de receber sem pagar, não causaria a menor dificuldade. Como isto não é possível agora, e suspeito que não o será nos anos que possivelmente ainda terei de vida, que é que vou fazer com este cafezinho grátis de última hora?

- Beber, uai.

- Solução de mineiro, está se vendo. Nada disso. Trouxe esta garrafinha e vou derramar nela o cafezinho, para guardar como lembrança. É o sinal de um mundo como poderia ser e não é. Pode beber o seu, que o meu ficará guardado no aparador lá de casa. Levei 30 anos para conquistar este troféu. O mundo não é de graça porque não quer. Ou por burrice.

Disse, derramou, e saiu, portando com unção a garrafinha de café gratuito.


(Carlos Drummond de Andrade)


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BIBLIOGRAFIA


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_______Melhores crônicas de. Seleção de Leodegário A. de Azevedo Filho. Global Editora, 2003.