* Anarquismo Social ou Anarquismo de Estilo de Vida[1]

* Um abismo intransponível

Murray Bookchin

Tradução: Felipe Corrêa e Alexandre B. de Souza

Uma nota ao leitor

Esse pequeno livro foi escrito para tratar do fato de o anarquismo encontrar-se num ponto decisivo em sua longa e turbulenta história.

Num tempo em que a desconfiança popular em relação ao Estado chegou a níveis extraordinários em diversos países; em que a sociedade, nas mãos de um número bastante reduzido de corporações e indivíduos abastados, apresenta um nítido contraste, por razão do empobrecimento crescente de milhões de pessoas, em proporções jamais vistas desde a década da Grande Depressão; em que a intensidade da exploração tem forçado, cada vez mais, as pessoas a aceitarem uma semana de trabalho com duração típica do século XIX — os anarquistas não criaram um programa coerente e nem uma organização revolucionária para direcionar o descontentamento da massa que a sociedade contemporânea está criando.

Em vez disso, tal descontentamento está sendo absorvido pelos políticos reacionários e canalizado para a hostilidade contra minorias étnicas, imigrantes, pobres e marginalizados, como mães solteiras, sem-teto, idosos e até contra ambientalistas, que vêm sendo colocados como principais fontes dos problemas sociais contemporâneos.

O fracasso dos anarquistas — ou, pelo menos, de muitos autointitulados anarquistas — em conseguir um vasto grupo de apoiadores tem origem não apenas nesse senso de impotência que hoje permeia milhões de pessoas. Isso se deve, em grande medida, às mudanças ocorridas com muitos anarquistas nas últimas duas décadas. Goste-se disso ou não, milhares desses autointitulados anarquistas foram aos poucos abandonando o cerne social das ideias anarquistas, em favor de um personalismo yuppie e new age, que vem sendo disseminado em todo o mundo e que marca esta época decadente e aburguesada. Em termos muito concretos, eles não são mais socialistas — defensores de uma sociedade libertária fundamentada nas comunidades — e abstêm-se de qualquer compromisso com um confronto social organizado e programaticamente coerente contra a ordem existente. Cada vez mais, esses autointitulados anarquistas vêm seguindo uma tendência do momento, em grande medida da classe média, que aponta para um personalismo decadente, em nome de sua “autonomia” soberana; para um misticismo nauseante, em nome de um “intuicionismo”; para uma visão edênica da história, em nome do “primitivismo”. Na verdade, o próprio capitalismo vem sendo mistificado por muitos desses autointitulados anarquistas, que o colocam como uma “sociedade industrial”, abstratamente concebida. As várias opressões da sociedade vêm sendo grosseiramente atribuídas ao impacto da “tecnologia”, e não às relações sociais fundamentais entre capital e trabalho, estruturadas em torno de uma economia de mercado disseminada globalmente, que tem impregnado todas as esferas da vida, desde a cultura até as amizades e a família. A tendência de muitos anarquistas em considerar a origem dos males da sociedade a “civilização”, e não o capital e a hierarquia; a “grande máquina”, e não a mercantilização da vida; as obscuras “simulações”, e não a tirania bastante palpável das explorações e das carências materiais — essa tendência não difere da apologia burguesa do “downsizing” nas corporações modernas, como resultado de “avanços tecnológicos”, e não do insaciável apetite por lucro da burguesia.

Nas páginas seguintes, enfatizo a permanente fuga desses autointitulados anarquistas do domínio social, principal campo de atuação dos antigos anarquistas, como os anarcossindicalistas e os comunistas libertários revolucionários. Uma fuga em direção às aventuras ocasionais, que evitam qualquer compromisso organizacional ou coerência intelectual — e, ainda mais perturbador, em direção a um egoísmo brutal, que se sustenta na mais ampla decadência cultural da sociedade burguesa de nossos dias.

Os anarquistas, para ser claro, podem merecidamente celebrar o fato de estarem reivindicando, já há muito tempo, a liberdade sexual, a estetização da vida cotidiana e a libertação da humanidade dos constrangimentos psíquicos opressores, que negaram a ela sua completa liberdade física e intelectual. Como autor de “Desire and Need”, escrito uns trinta anos atrás, só posso aplaudir a exigência de Emma Goldman de não querer uma revolução a cujo som ela não pudesse dançar — e, conforme acrescentaram meus pais, membros do IWW[2], no início deste século, na qual não pudessem cantar.

No entanto, esses anarquistas ao menos insistiam em uma revolução — uma revolução social —, sem a qual esses objetivos estéticos e psicológicos não poderiam ser atingidos por toda a humanidade. E fizeram deste esforço revolucionário fundamental o centro de todas as suas esperanças e ideais. É lamentável que tal esforço revolucionário, na verdade o generoso idealismo e a magnânima consciência de classe, sobre os quais ele se apoia, tem sido cada vez menos importante para esses autointitulados anarquistas, com os quais me deparo hoje. É precisamente a perspectiva social revolucionária, tão básica na definição de um anarquismo social, com todos os seus fundamentos teóricos e organizacionais, que pretendo retomar na investigação crítica do anarquismo de estilo de vida, que ocupa as páginas que seguem. A menos que eu esteja gravemente equivocado — e espero estar — os objetivos sociais e revolucionários do anarquismo vêm sofrendo um amplo desgaste, a ponto de a palavra anarquia estar se tornando parte do elegante vocabulário burguês do século XXI — desobediente, rebelde, despreocupado, mas deliciosamente inofensivo.

12 de julho de 1995

Anarquismo Social ou Anarquismo de Estilo de Vida

Por cerca de dois séculos, o anarquismo — um corpo extremamente ecumênico de ideias antiautoritárias — desenvolveu-se com a tensão entre duas tendências contraditórias: um compromisso pessoal com a autonomia individual e um compromisso coletivo com a liberdade social. Essas tendências nunca se harmonizaram na história do pensamento libertário. Na realidade, durante boa parte do século XIX, elas simplesmente coexistiram no anarquismo, fundamentadas em uma crença minimalista de oposição ao Estado, e não em uma crença maximalista, que concebesse a nova sociedade que deveria substituí-lo.

Isso não significa dizer que as várias escolas do anarquismo não tenham defendido formas bastante específicas de organização social, ainda que, com frequência, houvesse marcadas contradições entre elas. O anarquismo, de maneira geral, desenvolveu o que Isaiah Berlin chamou de “liberdade negativa”, ou seja, uma “liberdade de”, formal, em vez de uma “liberdade para”, substantiva. Com frequência, o anarquismo celebrou seu compromisso com a liberdade negativa como prova de seu próprio pluralismo, de sua tolerância ideológica ou de sua criatividade — ou mesmo, como alguns sacerdotes pós-modernos recentes afirmaram, de sua incoerência.

O fracasso do anarquismo em resolver esta tensão — em articular a relação entre o indivíduo e o coletivo e em enunciar as circunstâncias históricas que tornariam possível uma sociedade anárquica e sem Estado — criou problemas para seu próprio pensamento; problemas que continuam até hoje sem solução. Pierre-Joseph Proudhon, mais do que muitos anarquistas de seu tempo, esforçou-se para formular uma ideia completa de sociedade libertária. Baseado em contratos, essencialmente entre pequenos produtores, cooperativas e comunas, o projeto de Proudhon continha elementos do mundo artesanal e provinciano em que ele nasceu. Porém, seu esforço em combinar uma noção de liberdade patroniste, diversas vezes patriarcal, com acordos sociais contratuais, tinha pouca profundidade. O artesão, a cooperativa e a comuna, relacionando-se entre si, em termos contratuais burgueses de equidade ou de justiça, e não em termos comunistas de capacidade e necessidade, refletiam a propensão dos artesãos à autonomia pessoal, deixando indefinido qualquer compromisso moral com o coletivo, para além das boas intenções de seus membros.

Na verdade, a famosa frase de Proudhon: “qualquer um que ponha as mãos sobre mim para me governar é um usurpador, um tirano; e eu o declaro meu inimigo”, expressa uma liberdade negativa e personalista, que ofusca sua oposição às instituições sociais opressoras e ao projeto de sociedade anarquista concebido por ele. Sua afirmação harmoniza-se, sem grandes esforços, com a declaração individualista de William Godwin: “Há apenas um poder ao qual eu posso oferecer sincera obediência; a decisão de meu próprio discernimento, os ditames de minha própria consciência”. A simpatia de Godwin pelo seu próprio discernimento e pela sua consciência, assim como a condenação de Proudhon da “mão” que ameaça restringir a sua liberdade, deu ao anarquismo um impulso bastante individualista.

Por mais atraentes que sejam — e nos Estados Unidos estas afirmações conquistaram considerável admiração da direita que vem sendo chamada de “libertária” (e que deveria ser chamada de proprietária),[3] defensora de uma economia “livre” — essas afirmações revelam um anarquismo em conflito consigo mesmo. Em diferentes termos, Mikhail Bakunin e Piotr Kropotkin defenderam perspectivas essencialmente coletivistas — no caso de Kropotkin, explicitamente comunistas. Bakunin priorizava, enfaticamente, o social sobre o indivíduo. A sociedade, escreve ele,

precede todos os indivíduos e, ao mesmo tempo, sobrevive a todo indivíduo humano, sendo, a este respeito, como a própria natureza. Ela é eterna como a natureza, ou melhor dizendo, tendo nascido sobre a nossa Terra, ela durará tanto quanto a Terra. Uma revolta radical contra a sociedade seria, portanto, tão impossível ao homem quanto uma revolta contra a natureza, sendo a sociedade humana nada mais que a última grande manifestação ou criação da natureza nesta Terra. E um indivíduo que queira rebelar-se contra a sociedade […] colocar-se-á além dos limites da existência real.[4]

Bakunin expressou muitas vezes sua oposição às tendências individualistas do liberalismo e do anarquismo, por meio de uma considerável e polêmica ênfase. Apesar de a sociedade “dever-se aos indivíduos”, escreveu ele, numa afirmação relativamente branda, a formação do indivíduo é social.

Mesmo o indivíduo mais imprestável de nossa atual sociedade não poderia existir e desenvolver-se sem os esforços sociais cumulativos de incontáveis gerações. Assim, o indivíduo, sua liberdade e sua razão são produtos da sociedade, e não o contrário: a sociedade não é o produto dos indivíduos que a compõem; quanto mais elevada e plenamente o indivíduo desenvolver-se, maior será sua liberdade — e quanto mais ele for o produto da sociedade, mais ele receberá dela e maior será sua dívida com ela.[5]

Kropotkin, por sua vez, preservou esta ênfase coletivista, com notável consistência. Naquele que foi, provavelmente, seu texto mais lido, o verbete “Anarchism” da Encyclopaedia Britannica, Kropotkin situou as concepções econômicas do anarquismo à “esquerda” de “todos os socialismos”, por reivindicarem a abolição radical da propriedade privada e do Estado, no “espírito da iniciativa local, pessoal e da livre federação, estabelecida do simples ao complexo, em vez da presente hierarquia, que vai do centro à periferia”. As obras de Kropotkin sobre a ética possuem uma crítica constante aos esforços liberais de contrapor o indivíduo à sociedade, em termos mais concretos, uma crítica à subordinação da sociedade ao indivíduo ou ao ego. Ele colocou-se, de maneira bastante precisa, como parte da tradição socialista. Seu anarcocomunismo, que se baseava nos avanços da tecnologia e no aumento de produtividade, tornou- -se uma ideologia libertária preponderante na década de 1890, abrindo caminho entre as noções coletivistas de distribuição baseadas na equidade. Os anarquistas, “assim como a maioria dos socialistas”, enfatizou Kropotkin, reconheciam a necessidade de “períodos de evolução acelerada, chamados de revoluções”, produzindo, enfim, uma sociedade baseada nas federações de “todas as municipalidades ou comunas dos grupos locais de produtores e consumidores”.[6]

Com a emergência do anarcossindicalismo e do anarcocomunismo, nos fins do século XIX e início do século XX, a necessidade de se resolver a tensão entre as tendências individualista e coletivista tornou-se obsoleta.[7] O anarcoindividualismo foi, em grande medida, marginalizado pelos movimentos operários — organizações socialistas de massas —, dos quais muitos anarquistas consideravam-se a esquerda. Em uma época de violentos confrontos sociais — marcada pelo surgimento de um movimento de massas da classe trabalhadora, que teve seu auge nos anos 1930, durante a Revolução Espanhola —, os anarcossindicalistas e os anarcocomunistas, assim como os marxistas, consideravam o anarcoindividualismo um exotismo pequeno-burguês. Atacavam-no, com frequência, de maneira bastante direta, acusando-o de ser um capricho da classe média, muito mais radicado no liberalismo do que no anarquismo.

O período mal permitiu aos individualistas, em nome de suas “unicidades”, ignorarem a necessidade de formas de organização realmente revolucionárias, com programas coerentes e persuasivos. Longe de endossar a metafísica do único [ego] de Max Stirner[8] e sua “unicidade”, os militantes anarquistas precisavam de uma literatura básica, que fosse programática, discursiva e teórica, o que foi realizado por livros como A conquista do pão, de Kropotkin (Londres, 1913); O organismo econômico da revolução, de Diego Abad de Santillán (Barcelona, 1936); e The Political Philosophy of Bakunin, de G. P. Maximoff.[9] Pelo que sei, nenhuma “união dos egoístas” stirneriana jamais chegou a ter qualquer destaque — mesmo admitindo que essa união pudesse existir e sobreviver às “unicidades” de seus egocêntricos participantes.

O anarcoindividualismo e a reação

Na verdade, o individualismo ideológico não desapareceu completamente durante esse período de grande agitação social. Diversos anarcoindividualistas, especialmente no mundo anglo-americano, alimentaram-se das ideias de John Locke e John Stuart Mill, e também das ideias do próprio Stirner. Individualistas autóctones, com diversos níveis de compromisso em relação às concepções libertárias, espalharam a confusão no horizonte anarquista. Na prática, o anarcoindividualismo atraiu indivíduos, desde Benjamin Tucker, nos Estados Unidos — partidário de uma estranha versão da livre concorrência —, até Federica Montseny, na Espanha — que, muitas vezes, honrou suas concepções stirnerianas. Apesar da confissão ideológica anarcocomunista, nietzschianos como Emma Goldman continuaram, em espírito, bem próximos dos individualistas.

Os anarcoindividualistas poucas vezes tiveram alguma influência sobre a classe operária que surgia naquele momento. Expressavam sua oposição em termos pessoais e peculiares, especialmente por meio de panfletos inflamados, comportamentos extravagantes e estilos de vida aberrantes, nos guetos culturais do fin de siècle de Nova York, Paris e Londres. Como uma crença, o anarcoindividualismo deu corpo, em grande medida, a um estilo de vida boêmio, que se evidenciou nas reivindicações de liberdade sexual (“amor livre”) e no fascínio pelas inovações na arte, no comportamento e nas roupas.

Nos tempos de grave repressão e de um imobilismo social mortal, os anarcoindividualistas tomaram a linha de frente das atividades libertárias — fundamentalmente pelo envolvimento nos atos terroristas. Na França, na Espanha e nos Estados Unidos, os anarcoindividualistas envolveram-se em atos de terrorismo que terminaram por dar ao anarquismo uma imagem de conspiração sinistra e violenta. Aqueles que se converteram ao terrorismo geralmente não eram socialistas libertários ou comunistas, mas homens e mulheres desesperados, que utilizavam armas e explosivos para protestar contra as injustiças e o obscurantismo de seu tempo, supostamente em nome da “propaganda pelo fato”. No entanto, o anarcoindividualismo expressou-se, na maior parte das vezes, por meio do comportamento cultural questionador. Foi ganhando notoriedade no anarquismo à medida que os anarquistas perdiam seu vínculo com uma esfera pública viável.

O contexto social reacionário de hoje explica bem a emergência de um fenômeno no anarquismo euro-americano, que não pode ser ignorado: a propagação do anarcoindividualismo. Nestes tempos, em que até as respeitáveis formas de socialismo fogem, desesperadamente, dos princípios que poderiam ser interpretados como radicais, as questões de estilo de vida estão, novamente, suplantando a ação social e as políticas revolucionárias anarquistas. Nos Estados Unidos e na Inglaterra, países tradicionalmente individualistas e liberais, os anos 1990 estão transbordando de autointitulados anarquistas que — desconsiderando a retórica radical e exibicionista — vêm cultivando um anarcoindividualismo moderno, que chamarei de anarquismo de estilo de vida. Suas preocupações com o ego, sua unicidade e seus conceitos polimorfos de resistência vêm, a todo momento, desgastando o caráter socialista da tradição libertária. Sem diferenças em relação ao marxismo e a outros socialismos, o anarquismo pode ser influenciado pelo ambiente burguês ao qual diz se contrapor, sendo resultado disso o crescimento do “ensimesmamento” e do narcisismo da geração yuppie, que vem deixando sua marca em muitos dos declarados radicais. Aventureirismo ad hoc, ostentação pessoal, uma aversão à teoria estranhamente similar às tendências antirracionais do pós-modernismo, celebrações de incoerência teórica (pluralismo), um compromisso apolítico e antiorganizacional com a imaginação, o desejo, o êxtase e um encantamento da vida cotidiana muito voltado a si mesmo — tudo isso reflete o estrago que a reação social causou no anarquismo euro-americano durante as últimas duas décadas.[10]

Durante os anos 1970, Katinka Matson, que organizou um pequeno tratado de técnicas para o desenvolvimento psicológico pessoal, escreve que ocorreu “uma notável mudança na forma como nos víamos no mundo. Os anos 1960”, continua ela,

encontraram a preocupação com o ativismo político, o Vietnã, a ecologia, os be-ins,[11] as comunidades alternativas, as drogas etc. Hoje, estamos nos voltando para dentro: procurando definições pessoais, aperfeiçoamentos pessoais, realizações pessoais e esclarecimentos pessoais.[12]

O pequeno e nocivo bestiário de Matson, organizado para a revista Psychology Today, cobre todas as técnicas, da acupuntura ao I Ching, do eletrochoque à reflexologia. Ela bem que poderia ter incluído o anarquismo de estilo de vida em seu tratado de soporíferos introspectivos, boa parte deles promotores da autonomia individual e não da liberdade social. A psicoterapia, em todas as suas vertentes, cultiva uma introspecção orientada para o “eu”, que busca fundar a autonomia em uma condição psicológica imóvel de autossuficiência emocional — não do “eu” socialmente envolvido, representado pela liberdade. No anarquismo de estilo de vida, assim como na psicoterapia, o ego é contraposto ao coletivo, o eu à sociedade, o pessoal ao comunal.

O ego — mais precisamente sua encarnação em vários estilos de vida — tornou-se uma ideia fixa para muitos anarquistas pós-1960, que estão desistindo da oposição organizada, coletiva e programática à ordem social existente. “Protestos” sem firmeza, traquinagens sem objetivo, afirmações dos próprios desejos e uma “recolonização” muito particular da vida cotidiana ocorrem paralelamente aos estilos de vida psicoterápicos, new age e autoorientados de baby boomers entediados e membros da Geração x. [13] Hoje, o que se passa por anarquismo nos EUA e, cada vez mais, na Europa, não é mais do que um personalismo introspectivo, que denigre o compromisso social responsável; um grupo de encontros, denominado genericamente “coletivo” ou “grupo de afinidades”; um estado de espírito, que arrogantemente ridiculariza a estrutura, a organização e o engajamento das pessoas; um parque de diversões para palhaçadas juvenis.

Conscientemente ou não, muitos anarquistas de estilo de vida citam a “insurreição pessoal” de Michel Foucault como substituta à revolução social, fundamentados em uma crítica ambígua e cósmica do poder enquanto tal, e não nas demandas de fortalecimento institucional dos oprimidos, por meio de assembleias populares, conselhos e/ou confederações. Na medida em que essa tendência exclui a possibilidade real da revolução social — colocando-a como “impossibilidade” ou “imaginário” —, ela perverte os fundamentos do anarquismo socialista ou comunista. Na realidade, Foucault sustenta que

a resistência nunca está em posição de exterioridade em relação ao poder. [...] Assim, não há um único (leia-se universal) lugar exato de grande recusa, não há espírito de revolta, fonte de todas as rebeliões, ou uma lei absoluta dos revolucionários.

Presos — como todos nós estamos, no amplexo onipresente de um poder tão cósmico que, descontados os exageros e ambiguidades de Foucault, a resistência torna-se completamente polimorfa —, flutuamos à toa entre o “solitário” e o “exuberante”.[14] Suas sinuosas ideias resumem-se à noção de que a resistência deve necessariamente ser uma guerrilha, que esteja sempre presente — e que é sempre derrotada.

O anarquismo de estilo de vida, assim como o anarcoindividualismo, despreza a teoria ao utilizar referenciais místicos e primitivistas, geralmente muito vagos, intuitivos e até antirracionais, quando imediatamente analisados. Eles são mais sintomas do que causas dessa tendência à santificação do eu, utilizada como um refúgio contra o mal-estar social existente. Entretanto, os anarquismos personalistas continuam a utilizar certas premissas teóricas nebulosas, que precisam ser criticamente investigadas.

Sua linha ideológica é basicamente liberal, fundamentada no mito do indivíduo completamente autônomo, cujas reivindicações da própria soberania valem-se de axiomáticos “direitos naturais”, “valores intrínsecos”, ou, em um nível mais sofisticado, do eu transcendental kantiano, produtor de toda a realidade cognoscível. Essas tradicionais posições evidenciam-se no “eu” ou no único [ego] de Max Stirner, que tem em comum com o existencialismo a tendência de absorver toda a realidade em si mesmo, como se o universo girasse em torno das escolhas do indivíduo auto-orientado. [15]

Trabalhos mais recentes sobre o anarquismo de estilo de vida têm evitado o “eu” que tudo abarca, o “eu” soberano de Stirner, ainda que conservem sua ênfase no egocentrismo e tendam ao existencialismo, ao situacionismo reciclado, ao budismo, ao taoísmo, ao antirracionalismo ou ao primitivismo — ou, de maneira muito ecumênica, a todos eles, em várias permutações. Seus atributos comuns, como veremos, aspiram a um retorno edênico ao ego original, muitas vezes difuso ou até petulante e infantil, que aparentemente precede a história, a civilização ou uma tecnologia sofisticada — possivelmente anterior à própria linguagem —; atributos comuns que têm alimentado mais de uma ideologia política reacionária ao longo do século XIX.

Autonomia ou liberdade [freedom]?[16]

Para não cair nas armadilhas do construcionismo, que considera todas as categorias o produto de uma determinada ordem social, somos obrigados a elaborar uma pergunta acerca da definição de “indivíduo livre”. Como a individualidade constitui-se, e sob que circunstâncias ela é livre?

Quando os anarquistas de estilo de vida reivindicam a autonomia em vez da liberdade [freedom], eles perdem as ricas implicações sociais da liberdade [freedom]. A constante e atual defesa anarquista da autonomia, em lugar da liberdade [freedom] social, não pode ser considerada um acidente, em particular no que diz respeito às tendências libertárias angloamericanas, para as quais a noção de autonomia corresponde mais à liberdade [liberty] pessoal. Suas raízes estão na tradição imperial romana da libertas, para a qual o ego desimpedido é “livre” para ter a sua propriedade pessoal — e para satisfazer seus desejos pessoais. Hoje, o indivíduo dotado de “direitos soberanos” é visto por muitos anarquistas de estilo de vida como uma antítese, não apenas ao Estado, mas também à sociedade.

Estritamente definida, a palavra grega autonomia significa “independência”, e implica um ego autogerido, independente de qualquer clientelismo ou confiança em relação aos outros para sua manutenção. Pelo que sei, ela não foi muito utilizada pelos filósofos gregos; na verdade, ela nem é mencionada no léxico histórico de F. E. Peter sobre Termos filosóficos gregos. A autonomia, como a liberdade [liberty], refere-se ao homem (ou à mulher), que Platão teria chamado, com ironia, de “senhor de si mesmo”, uma condição em “a parte superior da alma humana comanda a inferior”. Mesmo para Platão, em A república, o esforço para se atingir a autonomia por meio da autoridade sobre si mesmo constituía um paradoxo: “aquele que é senhor de si mesmo é também, acredito, escravo de si mesmo, e aquele que é escravo, é também senhor, porque ambas as expressões referem-se à mesma pessoa”. Paul Goodman, um anarquista individualista, colocou, de maneira bem característica: “para mim, o princípio essencial do anarquismo não é a liberdade [freedom], mas a autonomia: a capacidade de se iniciar uma tarefa e realizá-la da maneira desejada” — uma visão digna de um esteta, mas não de um socialista revolucionário.[17]

Enquanto a autonomia refere-se ao indivíduo supostamente soberano, a liberdade [freedom] conecta dialeticamente o indivíduo ao coletivo. A palavra liberdade [freedom] tem seu análogo na eleutheria grega e deriva da Freiheit alemã, um termo que ainda preserva uma descendência comunal ou gemeinschäftliche, na vida e no direito tribais teutônicos. Quando aplicada ao indivíduo, a liberdade [freedom] preserva uma interpretação social ou coletiva das origens e do desenvolvimento do indivíduo em si mesmo. Na “liberdade” [freedom], a individualidade não se opõe ao coletivo e nem é dissociada dele; ela é formada significativamente — e, em uma sociedade racional, ela seria realizada — por sua própria existência social. Assim, a liberdade [freedom] não inclui a liberdade [liberty] do indivíduo; ela indica sua atualização.

A confusão entre autonomia e liberdade [freedom] é muito evidente em The Politics of Individualism (POI), de Susan Brown, uma tentativa recente de articular e elaborar um anarquismo, em grande medida individualista, ainda que preserve relações com o anarcocomunismo.[18] Se o anarquismo de estilo de vida precisa de uma legitimidade acadêmica, ela se encontrará no esforço de fusão entre Bakunin, Kropotkin e John Stuart Mill. Infelizmente, há nisso um problema que é mais do que acadêmico. O trabalho de Brown mostra o quanto os conceitos de autonomia pessoal permanecem em desacordo com os conceitos de liberdade [freedom] social. Na essência, como Goodman, ela não interpreta o anarquismo como uma filosofia da liberdade [freedom] social, mas da autonomia pessoal. Ela propõe uma noção de “individualismo existencial”, diferenciando-o categoricamente, tanto do “individualismo instrumental” (ou “individualismo [burguês] possessivo”, de C. B. Macpherson), quanto do “coletivismo” — tudo isso recheado com longas citações de Emma Goldman, que está longe de ser a pensadora mais competente do panteão libertário.

O “individualismo existencial” de Brown tem em comum com o liberalismo o “compromisso com a autonomia individual e com a autodeterminação”, escreve ela (POI p. 2). “Já que grande parte da teoria anarquista tem sido considerada comunista, tanto por anarquistas quanto por não anarquistas”, observa ela,

o que distingue o anarquismo de outras filosofias comunistas é a celebração inflexível e inexorável da autodeterminação e da autonomia individuais. Ser um anarquista — comunista, individualista, mutualista, sindicalista ou feminista — é afirmar um compromisso com a primazia da liberdade [freedom] individual.[19]

E aqui ela utiliza a palavra liberdade [freedom] com o sentido de autonomia. Ainda que a “crítica da propriedade privada” e a “defesa das relações econômicas comunais livres” (POI p. 2) coloquem o anarquismo de Brown para além do liberalismo, ele preserva, ainda assim, os direitos do indivíduo sobre — e contra — os direitos do coletivo.

“O que distingue [o individualismo existencial] da abordagem coletivista”, continua Brown, “é que os individualistas”, tanto os anarquistas quanto os liberais,

acreditam na existência de um livre arbítrio autêntico e internamente motivado, enquanto a maioria dos coletivistas entende que o indivíduo humano é formado externamente por outros — o indivíduo, para eles, é “construído” pelo coletivo.[20]

Em essência, Brown rejeita o coletivismo — não apenas o socialismo de Estado, mas o coletivismo como tal —, sustentando a falácia liberal de que uma sociedade coletivista impõe a subordinação do indivíduo ao grupo. Sua extraordinária afirmação de que “a maioria dos coletivistas” considera as pessoas individuais simples “rebotalhos e refugos humanos, que passam rapidamente no fluxo da história” (POI, p. 12) é um exemplo característico. Stalin com certeza sustentava esta opinião, assim como muitos bolcheviques, com a sua hipostasia das forças sociais sobre os desejos e as intenções individuais. Mas os coletivistas são assim? Vamos ignorar as amplas tradições do coletivismo que buscavam uma sociedade harmônica, democrática e racional — como por exemplo as posições de William Morris ou de Gustav Landauer? E Robert Owen, os fourieristas, os socialistas libertários e democráticos, os primeiros social-democratas, ou mesmo Karl Marx e Piotr Kropotkin? Não estou certo de que “a maioria dos coletivistas”, mesmo falando somente dos anarquistas, aceitaria o determinismo grosseiro que Brown atribui às interpretações sociais de Marx. Ao criar “coletivistas” fictícios, que são estritos mecanicistas, Brown retoricamente contrapõe um indivíduo constituído misteriosa e autogeneticamente a um coletivo onipresente, supostamente opressivo, ou mesmo totalitário. Brown exagera nos contrastes entre o “individualismo existencial” e as crenças da “maioria dos coletivistas” — a ponto de seus argumentos parecerem mal orientados, na melhor das hipóteses, ou mesmo maliciosos, na pior.

É elementar que, apesar da retumbante abertura de Jean-Jaques Rousseau em seu Contrato social, as pessoas definitivamente não “nascem livres”, muito menos autônomas. Pelo contrário, elas nunca nascem livres, são muito dependentes e evidentemente heterônomas. A liberdade [freedom], a independência e a autonomia que as pessoas têm em um dado período histórico são produtos de longas tradições sociais e de um desenvolvimento coletivo — o que não significa negar que os indivíduos tenham um importante papel a desempenhar nesse desenvolvimento e que, de fato, no fim das contas, sejam obrigados a fazer isso, se desejarem ser livres.[21]

O argumento de Brown conduz a uma conclusão surpreendentemente simplista. “Não é o grupo que dá forma ao indivíduo”, nos diz ela, “mas os indivíduos que dão forma e conteúdo ao grupo. Um grupo é um agrupamento de indivíduos, nem mais e nem menos; ele não tem vida ou consciência próprias” (POI, p. 12, grifos meus). Essa incrível formulação, além de se assemelhar muito à famigerada declaração de Margareth Thatcher — de que não existe sociedade, mas somente indivíduos —, comprova uma miopia social positivista e ingênua, na qual o universal é totalmente separado do concreto. Aristóteles, poder-se-ia pensar, resolveu este problema quando repreendeu Platão por ter criado um reino de “formas” inefáveis, que existiam separadas de suas “cópias” tangíveis e imperfeitas.

É verdade, ainda hoje, que os indivíduos nunca formam meros “agrupamentos” — exceto, talvez, no ciberespaço. É justamente o contrário; mesmo quando parecem atomizados e herméticos, eles são, em grande medida, definidos pelas relações que estabelecem ou que são obrigados a estabelecer com outros, em virtude de suas próprias existências reais como seres sociais. A ideia de que um coletivo — e, extrapolando, a sociedade — é meramente um “agrupamento de indivíduos, nem mais e nem menos” representa um insight sobre a natureza da associação humana que mal chega a ser liberal, e que hoje em dia é potencialmente reacionário.

Por identificar insistentemente o coletivismo com um determinismo social implacável, a própria Brown cria um “indivíduo” abstrato, que não é apenas existencial, no senso estrito e convencional da palavra. Minimamente, a existência humana pressupõe as condições materiais e sociais necessárias para a manutenção da vida, da sanidade, da inteligência e do raciocínio; além das qualidades afetivas que Brown considera essenciais para sua forma voluntária de comunismo: cuidado, preocupação e partilha. Sem a rica articulação das relações sociais, em que as pessoas estão inseridas desde o nascimento até a maturidade, um “agrupamento de indivíduos”, de acordo com o postulado de Brown, não constituiria, de forma alguma, uma sociedade. Seria literalmente um “agrupamento”, no sentido dado por Thatcher, de mônadas aproveitadoras, interesseiras e egoístas. Supostamente completas em si mesmas, elas são, por inversão dialética, em grande medida desindividualizadas, pela falta de qualquer objetivo que esteja além da satisfação de suas próprias necessidades e dos seus próprios prazeres — que hoje em dia são, em grande medida, concebidos em termos sociais.

Reconhecer que os indivíduos determinam a si mesmos e que possuem o livre arbítrio não exige recusar o coletivismo, já que se sabe que esses indivíduos também são capazes de desenvolver uma consciência das condições sociais sob as quais as potencialidades eminentemente humanas são desenvolvidas. A obtenção da liberdade [freedom] depende, em parte, de fatores biológicos (como qualquer um que tenha criado uma criança sabe), em parte, de fatores sociais (como qualquer um que vive em comunidade sabe) e, ao contrário do que dizem os construcionistas sociais, em parte, da interação com o meio e das propensões inerentes a cada pessoa, como qualquer indivíduo pensante sabe. A individualidade não surgiu do nada, a partir da existência. Como a ideia de liberdade [freedom], ela tem uma longa história social e psicológica.

Deixado a si mesmo, o indivíduo perde os indispensáveis lastros sociais que promovem aquilo que se espera que um anarquista preze na individualidade: os poderes de reflexão, que derivam em grande medida da conversa; o preparo emocional, que alimenta a indignação contra a falta de liberdade [freedom]; a sociabilidade, que motiva o desejo pela transformação radical; o senso de responsabilidade, que produz a ação social.

As teses de Brown têm implicações perturbadoras sobre a ação social. Se a “autonomia” individual suprime qualquer compromisso com uma “coletividade”, não há qualquer fundamento para a institucionalização social, para as tomadas de decisão ou mesmo para a coordenação administrativa. Cada indivíduo, autocontrolado por sua própria “autonomia”, é livre para fazer tudo aquilo que quiser — supostamente, seguindo a velha fórmula liberal, se isso não impedir a “autonomia” dos outros. Mesmo as tomadas de decisão democráticas são rejeitadas por serem autoritárias. “A regra da democracia continua a ser uma regra”, adverte Brown

Ainda que permita mais participação dos indivíduos no governo do que uma monarquia ou uma ditadura totalitária, ela continua a envolver inerentemente a repressão dos desejos de algumas pessoas. É óbvio que isso está em desacordo com o indivíduo existencial, que deve manter a integridade de seus desejos, para ser existencialmente livre.[22]

O desejo individual autônomo é tão transcendental e sagrado, na visão de Brown, que ela cita e endossa a alegação de Peter Marshall que, de acordo com os princípios anarquistas, “a maioria não tem mais o direito de impor à minoria, mesmo uma minoria composta por uma pessoa, do que a minoria tem de impor à maioria” (POI, p. 140, grifos meus). Denegrir os procedimentos racionais, argumentativos e os mecanismos da democracia direta para a tomada de decisões coletiva, colocando-os como “ditadores” e “dominadores”, significa conceder a uma minoria de um ego soberano o direito de restringir a decisão da maioria. Porém, permanece o fato de que uma sociedade livre terá de ser democrática, ou não será realmente alcançada. Na própria situação existencial de uma sociedade anarquista — uma democracia direta libertária —, as decisões seriam tomadas depois de discussões abertas. Em consequência, a minoria vencida — mesmo que fosse uma minoria de uma só pessoa — teria todas as oportunidades para apresentar argumentos visando mudar a decisão. As tomadas de decisão por consenso, por outro lado, impedem o avanço do dissenso — o importantíssimo processo de diálogo contínuo, de discordância, de objeção e de contraobjeção, sem o qual a criatividade social, assim como a criatividade individual, seria impossível.

Na melhor das hipóteses, o consenso assegura que importantes tomadas de decisão serão manipuladas por uma minoria ou fracassarão completamente. E que as decisões tomadas se darão em torno dos menores denominadores comuns entre as opiniões e constituirão o mais baixo nível de criatividade para o acordo. Eu falo com base em vários e dolorosos anos de experiência com a utilização do consenso na Aliança Clamshell, durante a década de 1970. No momento em que este movimento antinuclear quase anarquista estava no auge da luta, com milhares de militantes, ele foi destruído pela manipulação do processo de consenso, levada a cabo por uma minoria. A “tirania da falta de estrutura” [23] que a tomada de decisão por consenso produziu, permitiu que alguns poucos, que estavam bem organizados, controlassem a desajeitada, desinstitucionalizada e bastante desorganizada maioria do movimento.

Nem no meio das discussões e dos brados pelo consenso foi possível que o dissenso existisse e estimulasse, de forma criativa, a discussão, promovendo um desenvolvimento criativo das ideias que poderia trazer novas e promissoras perspectivas. Em qualquer comunidade, o dissenso — e os indivíduos dissidentes — impede que ela estagne. Palavras pejorativas como ditar e dominar referem-se ao silenciamento de dissidentes, não ao exercício da democracia; ironicamente, é o “desejo geral” pelo consenso que pode, muito bem, na memorável frase de Rousseau no Contrato social, “forçar os homens a serem livres”.

Longe de ser existencial, ainda que considerando o senso grosseiro da palavra, o “individualismo existencial” de Brown não lida com o indivíduo de maneira histórica. Ela o coloca como uma categoria transcendental, da mesma forma que, nos anos 1970, Robert K. Wolff apresentou os conceitos kantianos sobre o indivíduo, em seu dúbio Defense of Anarchism. Os fatores sociais que interagem com o indivíduo para estimular sua vontade e sua criatividade são agrupados com base em abstrações morais transcendentais que, devido à sua vida puramente intelectual, “existem” fora da história e da práxis.

Alternando entre o transcendentalismo moral e o positivismo simplista, em sua abordagem das relações entre o indivíduo e o coletivo, a exposição de Brown é tão grosseira quanto uma tentativa de adaptar o criacionismo à evolução. A rica dialética e a ampla história que demonstram como o indivíduo foi, em grande medida, formado por um desenvolvimento social e interagiu com ele, quase não aparecem em sua obra. Limitada e estritamente analítica em muitas de suas posições, abstratamente moral e até transcendental em suas interpretações, Brown elabora um excelente cenário para uma noção de autonomia que é diametralmente oposta à de liberdade [freedom] social. Com o “indivíduo existencial” de um lado, e uma sociedade que consiste em um “um agrupamento de indivíduos” do outro, o abismo entre a autonomia e a liberdade [freedom] torna-se intransponível.[24]

Anarquismo como caos

Quaisquer que possam ser as preferências de Brown, seu livro reflete e estabelece as premissas para que os anarquistas euro-americanos afastem-se do anarquismo social e aproximem-se do anarquismo individualista ou de estilo de vida. Hoje, o anarquismo de estilo de vida encontra sua principal expressão no graffiti, no niilismo pós-modernista, no antirracionalismo, no neoprimitivismo, na antitecnologia, no “terrorismo cultural” neossituacionista, no misticismo e na “prática” de encenação das “insurreições pessoais” foucaultianas.

Essas posturas modernas e vaidosas, quase todas resultado de uma moda yuppie, são individualistas principalmente por serem antitéticas ao desenvolvimento de organizações sérias, de uma política radical, de um movimento social comprometido, de coerência teórica e de relevância programática. Mais voltada à busca da “autorrealização” do que das transformações sociais fundamentais, essa tendência entre os anarquistas de estilo de vida é nociva, na medida em que seu “virar-se para dentro”, utilizando a expressão de Katinka Matson, reivindica ser política — ainda que isso se assemelhe à “política da experiência” de R. D. Laing. A bandeira negra — que os revolucionários do anarquismo social levantaram nas lutas insurrecionais na Ucrânia e na Espanha — torna-se agora um “sarongue” [25] da moda, para deleite de uma chique pequena burguesia.

Um dos exemplos mais enfadonhos do anarquismo de estilo de vida é a TAZ de Hakim Bey[26] (também conhecido como Peter Lamborn Wilson). Zona autônoma temporária é uma jóia da New Autonomy Series (a escolha do nome não é acidental), publicada pela pósmodernista Semiotext(e) / Grupo Autonomedia do Brooklin.[27] No meio de sua invocação do “caos”, do “amor louco”, das “crianças selvagens”, do “paganismo”, da “sabotagem artística”, das “utopias piratas”, da “magia negra como ação revolucionária”, do “crime” e da “bruxaria”, sem falar nos elogios ao “marxismo-stirnerianismo”, o chamado à autonomia é levado a um nível tão absurdo, que aparentemente parodia uma ideologia autoabsorvida e autoabsorvente.

TAZ apresenta-se como um estado de espírito, um humor brutalmente antirracional e anticivilizador, no qual a desorganização é compreendida como forma de arte e o graffitti toma o lugar dos projetos. Bey (seu pseudônimo é a palavra turca para “chefe” ou “príncipe”) não mede palavras em seu desprezo pela revolução social:

Por que a preocupação de confrontar um “poder” que perdeu todo seu significado e tornou-se uma completa simulação? Tais confrontações apenas resultarão em perigos e horrendos espasmos de violência. [28]

Poder entre aspas? Uma mera “simulação”? Se o que acontece na Bósnia com toda aquela potência de fogo é uma mera “simulação”, então, realmente, estamos vivendo em um mundo muito seguro e confortável! O leitor preocupado com as crescentes patologias sociais da vida moderna pode confortar-se com o pensamento olímpico de Bey, que enfatiza: “o realismo exige não apenas que desistamos de esperar a ‘revolução’, mas também que desistamos de desejá-la” (TAZ, p. 101). Essa passagem nos incita a aproveitar a serenidade do nirvana? Ou uma nova “simulação” baudrillardiana? Ou, talvez, um novo “imaginário” castoriadiano?

Ao eliminar o objetivo revolucionário clássico de transformação da sociedade, Bey zomba daqueles que outrora arriscaram tudo por isso: “O democrata, o socialista, a ideologia racional [...] são surdos para a música e carecem totalmente do senso de ritmo” (TAZ, p. 66). Será mesmo? O próprio Bey e seus coroinhas dominam a fundo os versos e a música da Marselhesa e dançam extasiados a Dança dos marinheiros russos, de Glière? Há uma fatigante arrogância no repúdio que Bey manifesta pela rica cultura criada pelos revolucionários ao longo dos últimos séculos, na realidade, por trabalhadores comuns que viveram no período pré-rock n’roll e pré-Woodstock.

Quem adentrar o mundo dos sonhos de Bey deve desistir dessa bobagem de compromisso social. “Um sonho democrático? Um sonho socialista? Impossível”, entoa Bey com arrogante certeza. “Em sonho, nada nos governa, a não ser o amor ou a feitiçaria” (TAZ, p. 64). Assim, os sonhos de um novo mundo evocados ao longo dos séculos por idealistas, e que tomaram corpo em grandes revoluções, são, de maneira magistral, reduzidos por Bey à sabedoria de seu próprio mundo de sonhos febris.

Quanto a um anarquismo “completamente coberto com o humanismo ético, o pensamento livre, o ateísmo muscular e a rude lógica cartesiana fundamentalista” (TAZ, p. 52) — esqueça! Bey não apenas desdenha da tradição iluminista, na qual o anarquismo, o socialismo e o movimento revolucionário estiveram outrora radicados, mas também mistura a “lógica cartesiana fundamentalista” com o “pensamento livre” e o “humanismo”, como se estes fossem conceitos substituíveis um pelo outro, ou que, necessariamente, um implicasse o outro.

Ainda que Bey nunca hesite em emitir pronunciamentos olímpicos e levantar polêmicas petulantes, ele diz não ter paciência para “os barulhentos ideólogos do anarquismo e do libertarianismo” (TAZ, p. 46). Proclamando que a “anarquia não conhece dogmas” (TAZ, p. 52), Bey, entretanto, faz seus leitores chafurdarem sob o peso de um severo dogma: “Anarquismo, em última análise, implica a anarquia — e a anarquia é o caos” (TAZ, p. 64). Assim disse o Senhor: “Eu sou aquele que é” — e Moisés tremeu diante da palavra!

Na realidade, em um acesso maníaco de narcisismo, Bey determina que ele é o que tudo tem, o gigantesco “eu”, o grande “eu” soberano: “cada um de nós determina nossa própria humanidade, nossa própria criação — e tudo o mais que quisermos agarrar e absorver.” Para Bey, anarquistas e reis — e também os beys — tornam-se indistinguíveis, visto que todos são autarcas.

Nossas ações são justificadas por decreto e nossas relações são moldadas por tratados estabelecidos com outros autarcas. Nós fazemos a lei para os nossos próprios domínios — e os grilhões da lei foram quebrados. No momento, talvez sobrevivamos como meros fingidores — mas, mesmo assim, podemos aproveitar alguns poucos instantes, uns poucos metros quadrados de realidade sobre a qual impomos nosso absoluto desejo, nosso royaume. L’etat, c’est moi...[29] Se somos limitados por qualquer ética ou moralidade, elas devem ter sido imaginadas por nós mesmos.[30]

L’Etat, c’est moi? Além dos beys, posso pensar em pelo menos duas outras pessoas do século XX que desfrutaram dessas ambiciosas prerrogativas: Josef Stalin e Adolf Hitler. A maioria de nós mortais, sem distinção entre ricos e pobres, como colocou uma vez Anatole France, é proibida, da mesma maneira, de dormir sob as pontes do Sena. Na realidade, se Sobre a autoridade, de Friedrich Engels, com sua defesa da hierarquia, representa uma forma burguesa de socialismo, TAZ e suas ramificações representam uma forma burguesa de anarquismo. “Não há transformação”, nos diz Bey,

não há revolução, luta, caminho; [se] você já é o seu próprio monarca — sua inviolável liberdade aguarda ser completada apenas pelo amor de outros monarcas: uma política do sonho, indispensável como o azul do céu.[31]

Palavras que poderiam ser inscritas na Bolsa de Valores de Nova York como uma crença no egoísmo e na indiferença social.

É certo que essa posição não terá muito mais objeções nas butiques da “cultura” capitalista do que as barbas, os cabelos compridos e os jeans tiveram no mundo empresarial da alta moda. Infelizmente, muitas pessoas neste mundo — e não “simulações” ou “sonhos” — não possuem nem sequer a si mesmas, como atestam, no mais concreto dos termos, os prisioneiros que são forçados a trabalhar e as prisões. Ninguém jamais pairou fora da miséria terrestre, em “uma política dos sonhos”, exceto os privilegiados pequeno-burgueses, que devem levar a sério os manifestos de Bey, em especial nos momentos de tédio.

Para Bey, mesmo as insurreições revolucionárias clássicas mostram pouco mais do que uma euforia pessoal, perfumada com as “experiências-limite” de Foucault. “Uma revolta é como uma ‘experiência máxima’”, declara ele (TAZ, p. 100). Historicamente, “alguns anarquistas [...] participaram de diversas revoltas e revoluções, mesmo naquelas comunistas e socialistas”, mas isso aconteceu

porque eles encontraram no próprio momento da insurreição o tipo de liberdade que buscavam. Assim, ao passo que o utopismo vem fracassando constantemente, os anarquistas individualistas ou existencialistas vêm tendo êxito, visto que têm conseguido (ainda que brevemente) a realização de sua vontade de poder na guerra.[32]

O levante dos trabalhadores austríacos em fevereiro de 1934 e a Guerra Civil Espanhola em 1936, posso afirmar, foram mais do que orgiásticos “momentos de insurreição”. Foram lutas severas, levadas a cabo com desesperada seriedade e magnífico ímpeto, ainda que ambas tenham sido epifanias estéticas.

Contudo, a insurreição torna-se, para Bey, pouco mais do que uma “viagem” psicodélica, e o super-homem de Nietzsche, o qual ele aprova, constitui um “espírito livre” que iria “desdenhar da perda de tempo com agitações por reformas, com protestos, com sonhos visionários e com todo tipo de ‘martírio revolucionário’”. Aparentemente, os sonhos são admissíveis, desde que não sejam “visionários” (leia-se: comprometidos socialmente). Bey tem outras preferências: “beberia vinho” e atingiria uma “epifania privada” (TAZ, p. 88), o que sugere algo não muito distinto da masturbação mental, certamente libertada da coação da lógica cartesiana.

Não nos deveria surpreender o fato de Bey endossar as ideias de Max Stirner, que “não se compromete com a metafísica, ainda que conceda ao único (ou seja, o ego) um certo poder absoluto” (TAZ, p. 68). Na verdade, Bey constata que existe um “ingrediente faltante em Stirner”: “um conceito funcional de consciência não ordinária” (TAZ, p. 68). Tudo indica que Stirner é racionalista demais para Bey.

O Oriente, o oculto, as culturas tribais possuem técnicas que podem ser “apropriadas” à verdadeira moda anarquista. [...] Precisamos de um tipo prático de “anarquismo místico”, [...] uma democratização do xamanismo, embriagado e sereno.[33]

Por isso, Bey conclama seus discípulos a tornarem-se “feiticeiros” e sugere que utilizem a “maldição malaia do djinn negro”.

O que, afinal, é uma “zona autônoma temporária”?

A TAZ é um tipo de rebelião que não confronta o Estado diretamente, uma operação de guerrilha que libera uma área (de terra, de tempo, de imaginação) e dissolve-se para se refazer, em outro lugar e outro momento, antes que o Estado possa esmagá-la.[34]

Em uma TAZ, podemos “realizar muitos dos nossos verdadeiros desejos, mesmo que apenas por uma temporada, uma breve utopia pirata, uma zona livre no velho contínuo tempo/espaço” (TAZ, p. 62). “TAZs em potencial” incluem “a ‘reunião tribal’ dos anos 60, o conclave florestal de ecossabotadores, o Beltane[35] idílico dos neopagãos, as conferências anarquistas, as festas gays”, isto sem falar nas “casas noturnas, banquetes” e nos “piqueniques dos antigos libertários” — nada menos (TAZ, 73 p. 100). Eu, como membro da Libertarian League dos anos 1960, adoraria ver Bey e seus discípulos aparecerem em um “piquenique dos antigos libertários”!

A TAZ é tão passageira, tão evanescente, tão inefável — em contraste com o Estado e com a burguesia, que são tão estáveis — de maneira que “assim que a TAZ é nomeada [... ] ela deve desaparecer, ela vai desaparecer [... ] e brotará de novo em outro lugar” (TAZ, p. 101). A TAZ, portanto, não é uma revolta, mas uma simulação, uma insurreição igualmente vivida na imaginação de um cérebro juvenil, uma retirada segura para a irrealidade. Certamente, declama Bey: “Nós a recomendamos [a TAZ], pois ela pode fornecer a qualidade do enlevamento, sem necessariamente[!] levar à violência e ao martírio” (TAZ, p. 101). Mais precisamente um happening de Andy Warhol, a TAZ é um evento passageiro, um orgasmo momentâneo, uma expressão fugaz da “força de vontade” que é, na realidade, uma evidente impotência em relação à sua capacidade de deixar qualquer marca na personalidade, na subjetividade ou mesmo na autoformação do indivíduo, impotência ainda maior para a modificação dos fatos ou da realidade.

Dada a evanescente qualidade de uma TAZ, os discípulos de Bey podem aproveitar o privilégio passageiro de viver uma “vida nômade”, visto que “‘não ter teto’ pode, num certo sentido, ser uma virtude, uma aventura” (TAZ, p. 130). Infelizmente, “não ter teto” pode ser uma “aventura” quando se tem um confortável lar para o qual retornar. E nesse sentido, o nomadismo é um típico luxo daqueles que podem viver sem trabalhar para seu sustento. A maioria dos sem-teto “nômades”, dos quais me lembro bem na época da Grande Depressão, tinha vidas sofridas, desesperando-se por conta da fome, das doenças e da indignidade, e morrendo diversas vezes prematuramente — como ainda hoje acontece nas ruas das cidades da América. Os poucos ciganos que parecem gostar da “vida na estrada” são, na melhor das hipóteses, idiossincráticos e, na pior, tragicamente neuróticos. Também não posso ignorar outra “insurreição” defendida por Bey: em especial, o “analfabetismo voluntário” (TAZ, p. 129). Embora ele o promova como uma revolta contra o sistema educacional, seu efeito mais desejável talvez seja, realmente, tornar suas injunções ex cathedra inacessíveis a seus leitores.

Talvez não haja descrição melhor da mensagem de TAZ do que aquela que foi publicada na Whole Earth Review, na qual o autor enfatiza que o panfleto de Bey está “rapidamente se tornando a bíblia da contracultura dos anos 1990 [...]. Ainda que muitos conceitos de Bey tenham afinidade com as doutrinas do anarquismo”, a Review declara a sua clientela de yuppies que ele

intencionalmente abandona a tradicional retórica de derrubar o governo. Em vez disso, ele prefere a natureza mercurial das “revoltas”, que proporcionariam “momentos de intensidade [que poderiam] dar forma e significado à totalidade da vida”. Esses pequenos espaços de liberdade, ou zonas autônomas temporárias, possibilitam ao indivíduo esquivar-se das esquemáticas grades do big government [36] e ocasionalmente viver em locais onde se possa experimentar, brevemente, a liberdade total. (Grifos meus) [37]

Há uma palavra iídiche intraduzível para tudo isso: nebbich! Durante os anos 1960, o grupo de afinidades Up Against the Wall Motherfuckers propagou esses mesmos elementos de confusão, desorganização e “terrorismo cultural”, e logo em seguida desapareceu da cena política. Na realidade, alguns de seus membros entraram para o mundo comercial, profissional e de classe média, que outrora desprezavam. Comportamento este que não é exclusivamente americano. Assim como um francês, “veterano” do Maio-Junho de 1968, cinicamente colocou: “Tivemos nossa diversão em 68 e agora é hora de crescer”. O mesmo ciclo mortal, com “As” circulados, repetiu-se durante uma revolta individualista de jovens de Zurich, em 1984, que terminou com a criação do Needle Park, um local para utilização de cocaína e crack estabelecido pelas autoridades municipais, permitindo que os jovens viciados destruíssem a si mesmos dentro da lei.

A burguesia realmente não tinha motivos para temer essas declamações de estilo de vida. Com a sua aversão pelas instituições, pelas organizações de massas, com sua orientação em grande medida subcultural, sua decadência moral, sua celebração da transitoriedade e sua rejeição dos programas, esse tipo de anarquismo narcisista é socialmente inócuo e, com frequência, apenas uma válvula de escape segura para o descontentamento com a ordem social dominante. Com Bey, o anarquismo de estilo de vida foge de toda militância social significativa e do firme compromisso com os projetos duradouros e criativos, dissolvendo-se nas queixas, no niilismo pós-modernista e em um confuso sentido nietzschiano de superioridade elitista.

O anarquismo pagará caro se permitir que este absurdo substitua os antigos ideais libertários. O anarquismo egocêntrico de Bey — com sua reivindicação pós-modernista da “autonomia” individual, das “experiências-limite” foucaultianas e do êxtase neossituacionista — ameaça tornar o anarquismo inofensivo, em termos políticos e sociais, transformando-o em um simples modismo para o gozo de pequeno-burgueses de todas as idades.

Anarquismo místico ou irracionalista

A TAZ de Bey não está sozinha em sua atração pela magia e até pelo misticismo. Com sua mentalidade edênica, muitos anarquistas de estilo de vida afeiçoam-se, com facilidade, ao antirracionalismo em suas formas mais atávicas. Consideremos o artigo “The Appeal of Anarchy”, que ocupa uma página inteira de um número recente da Fifth Estate (verão de 1989). “A anarquia”, lemos, reconhece “a iminência da libertação total [nada menos!] e como um sinal de sua liberdade, a nudez em seus ritos”. Entregue-se “à dança, ao canto, ao riso, aos banquetes, ao jogo”, ordenam-nos — e, exceto um pedante mumificado, quem se manifestaria contra esses deleites rabelaisianos?

Porém, infelizmente há um empecilho. A Abadia de Thélème de Rabelais,[38] que Fifth Estate parece imitar, era repleta de empregados, cozinheiros, cavalariços e artesãos, e sem seu duro trabalho os aristocratas autoindulgentes, com sua utopia claramente elitista, teriam passado fome e amontoado-se nus nas diferentes e frias salas da Abadia. Na verdade, é possível que esse “Appeal of Anarchy” da Fifth Estate tenha em mente uma versão materialmente mais simples da Abadia de Thélème: seus “banquetes” devem referir-se mais a tofu e arroz do que a perdizes recheadas e saborosas trufas. Porém, mesmo assim — sem maiores avanços tecnológicos para libertar as pessoas do trabalho árduo, ainda que seja para que tenham arroz e tofu à mesa —, como uma sociedade baseada neste tipo de anarquia espera “abolir toda autoridade”, “compartilhar coisas”, e que as pessoas banqueteiem e corram nuas, dançando e cantando?

Esta questão é particularmente relevante para o grupo da Fifth Estate. O que pode ser visto no periódico é o culto anticivilizador, antitecnológico, pré-racional e primitivista, presente na essência de seus artigos. Assim, o “Appeal” da Fifth Estate convida os anarquistas a “lançarem-se no círculo mágico, entrarem no transe do êxtase, divertirem-se na magia que dissipa todo poder” — justamente as técnicas mágicas que os xamãs (que pelo menos um de seus escritores reivindica) da sociedade tribal, sem falar nos sacerdotes das sociedades mais desenvolvidas, costumam usar há séculos para elevar-se à posição de hierarcas, contra as quais a razão teve de lutar muito para libertar a mente humana das mistificações por ela criadas. “Dissipar todo poder”? Novamente, há aqui um toque de Foucault, que, como sempre, nega a necessidade de estabelecer instituições autogeridas empoderadas, capazes de se contrapôr ao poder real das instituições capitalistas e hierárquicas — para a verdadeira criação de uma sociedade em que o desejo e o êxtase possam concretizar-se genuinamente, nos marcos de um comunismo libertário.

O louvor à “anarquia”, ilusoriamente “extático” e privado de conteúdo social, da Fifth Estate — desconsiderando toda sua retórica —, poderia, com facilidade, aparecer em um cartaz nas paredes de uma butique chique, ou no verso de um cartão de festas. Amigos que visitaram Nova York recentemente me disseram que, de fato, existe um restaurante com toalhas de linho, pratos caros e clientela yuppie, no St. Mark’s Place, Lower East Side — uma trincheira dos anos 1960 —, chamado Anarchy. Esse comedouro da pequena burguesia da cidade ostenta uma reprodução do famoso mural italiano Il Quarto Stato (1901), de Giuseppe Pellizza da Volpedo, que mostra os trabalhadores insurretos do fin de siècle marchando combativamente contra chefes, ou talvez uma delegacia de polícia, que não aparecem na gravura. O anarquismo de estilo de vida, pelo visto, pode vir a ser, cada vez mais, uma sensibilidade na escolha do consumidor. O restaurante, disseram-me, tem seguranças; deve ser para afastar do local as pessoas que aparecem estampadas na parede.

Seguro, privativo, hedonista e até mesmo aconchegante, o anarquismo de estilo de vida pode perfeitamente produzir a verborreia necessária para apimentar as vidas burguesas triviais de rabelaisianos tímidos. Como a “arte situacionista”, que o MIT exibiu para deleite da vanguarda da pequena burguesia alguns anos atrás, isso oferece pouco mais do que uma imagem terrivelmente “ruim” do anarquismo — ouso dizer, um simulacro — como todas aquelas que foram forjadas de leste a oeste nos EUA. A indústria do êxtase, no que lhe diz respeito, vai muito bem sob o capitalismo contemporâneo e poderia, facilmente, absorver as técnicas dos anarquistas de estilo de vida para evidenciar uma imagem vendável de desobediência. A contracultura, que outrora chocou a pequena burguesia com seus cabelos longos, barbas, roupas, liberdade sexual e arte, foi ofuscada há tempos por empresários burgueses cujos cafés, butiques, clubes e até campos de nudismo estão se tornando prósperos negócios, conforme testemunham os excitantes anúncios de novos “êxtases” no Village Voice[39] e nos periódicos similares.

Os sentimentos brutalmente antirracionais da Fifth Estate têm implicações muito problemáticas. Sua celebração visceral da imaginação, do êxtase e da “primalidade” evidentemente impugnam não apenas a eficiência racionalista, mas a própria razão enquanto tal. A capa da edição do outono/inverno de 1993 exibe o famoso e mal-entendido Capricho nº 43, de Francisco Goya, “El sueño de la razón produce monstruos” (O sono da razão produz monstros). A pessoa adormecida da imagem de Goya aparece debruçada em uma mesa diante de um computador Apple. A tradução para o inglês da legenda de Goya, elaborada pela Fifth Estate, coloca: “O sonho da razão produz monstros”, sugerindo que os monstros são produtos da própria razão. Na realidade, Goya quis dizer, como suas próprias notas indicam, que os monstros na gravura são produzidos pelo sono, e não pelo sonho, da razão. Como ele mesmo escreveu: “A fantasia abandonada pela razão produz monstros impossíveis; unida a ela, é a mãe das artes e a origem das maravilhas”.[40] Ao desconsiderar a razão, este incerto periódico anarquista entra em concordância com alguns dos mais sinistros aspectos da reação neoheideggeriana de hoje em dia.

Contra tecnologia e civilização

Ainda mais problemáticos são os escritos de George Bradford (também conhecido como David Watson), um dos maiores teóricos da Fifth Estate, sobre os horrores da tecnologia — aparentemente da tecnologia como tal. A tecnologia, ao que parece, determinaria as relações sociais ao invés do oposto, uma noção que se aproxima mais estritamente do marxismo do que da ecologia social. “A tecnologia não é um projeto isolado, nem mesmo uma acumulação de conhecimento técnico”, nos diz Bradford em “Stopping the Industrial Hydra” (SIH),

que é determinado por uma esfera de alguma forma separada e mais fundamental das “relações sociais”. As técnicas de massa tornaram- -se, nas palavras de Langdon Winner, “estruturas cujas condições de funcionamento exigem a reestruturação de seus ambientes”, e, deste modo, das verdadeiras relações sociais que as envolvem. As técnicas de massa — produtos de formas mais antigas e de hierarquias arcaicas — têm superado as condições que as criaram, adquirindo uma vida autônoma. [... ] Elas promovem, ou têm se tornado, um tipo de ambiente total e de sistema social, tanto em seus aspectos gerais, quanto individuais e subjetivos. [...] Em tal pirâmide mecânica [...] as relações instrumentais e sociais são a mesma coisa.[41]

Esta medíocre ideia ignora, confortavelmente, as relações capitalistas que determinam, ostensivamente, como a tecnologia será utilizada e enfatiza aquilo que a tecnologia supostamente é. Desconsiderando absolutamente as relações sociais — em vez de enfatizar o importantíssimo processo produtivo para o qual a tecnologia é utilizada —, Bradford dá às máquinas e às “técnicas de massa” uma autonomia mística e, assim como a hipostasia stalinista da tecnologia, serve para fins extremamente reacionários. A ideia de que a tecnologia tem vida própria está muito arraigada no romantismo conservador alemão do século XIX e nos escritos de Martin Heidegger e Friedrich Georg Jünger, que alimentaram a ideologia nacional-socialista, por mais que os nazistas exaltassem sua ideologia antitecnológica.

Vista em termos da ideologia contemporânea de nosso tempo, esta bagagem ideológica é caracterizada pela reivindicação, tão comum, de que as máquinas automatizadas desenvolvidas recentemente, de várias maneiras, custam às pessoas seus empregos ou intensificam sua exploração — ambos são, sem dúvidas, fatos, mas que estão vinculados necessariamente às relações sociais da exploração capitalista, e não aos avanços tecnológicos em si mesmos. Indo direto ao ponto: as demissões hoje não estão sendo levadas a cabo pelas máquinas, mas por burgueses avarentos que utilizam as máquinas para substituir a mão de obra humana ou para explorá-la mais intensamente. [42] Na realidade, as mesmas máquinas que os burgueses utilizam para reduzir “custos do trabalho” poderiam, em uma sociedade racional, libertar os seres humanos dos trabalhos pesados e estúpidos, possibilitando as atividades criativas e pessoalmente gratificantes. Não há evidência de que Bradford esteja familiarizado com Heidegger ou Jünger; ele parece inspirar-se em Langdon Winner e Jacques Ellul, o qual é endossado por Bradford:

É a coerência tecnológica que cria a coerência social. [...] A tecnologia é, em si mesma, não só um meio, mas um universo de meios — no sentido original de Universum: tanto exclusivo como total.[43]

Em The Technological Society, seu livro mais conhecido, Ellul desenvolveu a dura tese de que o mundo e nossas formas de pensar sobre ele são moldados pelas ferramentas e máquinas (la technique). Sem qualquer explicação social de como essa “sociedade tecnológica” surgiu, o livro de Ellul conclui sem dar esperanças, e muito menos oferecer alguma abordagem que redima a humanidade de sua completa absorção pela technique. Em verdade, até um humanismo que queira dominar a tecnologia para satisfazer as necessidades humanas ficaria reduzido, do seu ponto de vista, a uma “piedosa esperança, sem qualquer chance de influenciar a evolução tecnológica”.[44] A partir dessa visão tão determinista de mundo, surge sua lógica conclusão.

Felizmente, Bradford nos dá uma solução: “começar imediatamente a desmantelar toda a máquina” (SIH, p. 10). E ele não tolera o compromisso com a civilização, repetindo todos os clichês anticivilizadores, antitecnológicos e quase místicos, que aparecem em certos cultos ambientais da new age. A civilização moderna, nos diz ele, é “uma matriz de forças”, incluindo

relações de consumo (commodity relations), comunicações de massa, urbanização e técnicas de massa, junto com [...] Estados interdependentes, rivais nucleares e cibernéticos, convergindo todos para uma “megamáquina global”.[45]

As “relações de consumo”, observa ele em seu artigo “Civilization in Bulk” (CIB), são apenas parte dessa “matriz de forças”, na qual a civilização é “uma máquina” que vem sendo um “campo de trabalho de suas origens”, uma “rígida pirâmide de hierarquias incrustadas”, “uma grade expandindo o território do inorgânico” e “uma progressão linear que vai desde o roubo do fogo de Prometeu até o Fundo Monetário Internacional”.[46] Por isso, Bradford reprova o fútil livro de Monica Sjöo e Barbara Mor, The Great Cosmic Mother: Rediscovering the Religion of the Earth — não pelo seu teísmo atávico e regressivo, mas pelo motivo de as autoras colocarem a palavra civilização entre aspas —, uma prática que “reflete a tendência deste fascinante[!] livro em querer colocar uma perspectiva contrária ou alternativa à civilização em vez de questionar suas premissas” (CIB, nota 23). Supostamente, é Prometeu que deve ser condenado, não essas duas mães Terra, cuja relação com as divindades ctônicas, por todo seu compromisso com a civilização, é “fascinante”.

Nenhuma referência à megamáquina seria de fato completa, sem citação do lamento de Lewis Mumford sobre seus efeitos sociais. Na realidade, vale notar que tais comentários normalmente conferiram um falso sentido às intenções de Mumford. Mumford não era contrário à tecnologia, assim como Bradford e outros querem nos fazer acreditar; nem era, em qualquer sentido da palavra, um místico, cujo gosto combinaria com o primitivismo anticivilização de Bradford. Sobre esse assunto, posso falar por conhecimento próprio dos pontos de vista de Mumford, quando estivemos participando de uma conferência na Universidade da Pensilvânia, por volta de 1972.

Retomando seus escritos como Technics and Civilization (TAC), o qual é citado pelo próprio Bradford, veremos que Mumford sofre para descrever favoravelmente os “instrumentos mecânicos” como “potenciais veículos de propósitos humanos racionais”. [47] Relembrando, com frequência, seu leitor de que as máquinas vêm dos seres humanos, Mumford enfatiza que a máquina é “a projeção de uma faceta particular da personalidade humana” (TAC, p. 317). Na realidade, uma de suas principais funções é dispersar o impacto da superstição na mente humana. Assim:

No passado, os aspectos irracionais e demoníacos da vida invadiram esferas às quais não pertenciam. Foi um avanço descobrir que as bactérias, e não os duendes, são responsáveis por coalhar o leite, e que o motor refrigerado era mais efetivo do que um cabo de vassoura de bruxa, para os transportes de longa distância [... ]. A ciência e a técnica fortaleceram nosso moral: por sua própria austeridade e abnegação, elas [...] desprezam os medos, as suposições e as afirmações infantis.[48]

Esta abordagem dos escritos de Mumford tem sido completamente negligenciada pelos primitivistas — em especial, sua crença de que a máquina fez a “contribuição suprema” de promover “a técnica da ação e do pensamento cooperativos”. Mumford nem hesita em louvar

a excelência estética do formato da máquina, [...] sobretudo, talvez, uma personalidade mais objetiva que ganhou vida por meio de relações mais sensíveis e compreensivas com esses novos instrumentos sociais e por meio de sua assimilação cultural deliberada. [49]

Na realidade, “a técnica de criar um mundo neutro dos fatos, distinguindo-o dos dados brutos da experiência imediata, foi a grande contribuição geral da ciência analítica moderna” (TAC, p. 361).

Longe de compartilhar com o primitivismo explícito de Bradford, Mumford criticou com ênfase aqueles que rejeitam completamente as máquinas, e considerou o “retorno ao absoluto primitivo” como uma “adaptação neurótica” à própria megamáquina (TAC, p. 302), na realidade, uma catástrofe. “Mais desastrosa do que qualquer destruição física das máquinas feita pelos bárbaros é a sua ameaça de acabar com a força motriz humana, ou mesmo de modificá-la”, observou ele no mais severo dos termos, “desencorajando os processos cooperativos de pensamento e a pesquisa desinteressada, que são responsáveis pelas nossas maiores realizações técnicas” (TAC, p. 302). E colocou: “Devemos abandonar nossos fúteis e lamentáveis embustes de resistir à máquina, buscando evitar uma volta à selvageria” (TAC, p. 319).

Seus trabalhos posteriores também não revelam qualquer evidência de que ele tenha modificado esse ponto de vista. Ironicamente, ele desdenhou das performances e das perspectivas do Living Theater, com relação ao “Outlaw Territory” das gangues de motociclistas, colocando-as como “barbarismo”, e também criticou Woodstock, colocando-o como uma “mobilização de massas da juventude” que “não oferece ameaças à atual cultura de massas, que não tem personalidade e é supercontrolada”.[50]

Em suas posições, Mumford não defende a “megamáquina” e nem o primitivismo (o “orgânico”), mas a sofisticação da tecnologia a partir de linhas democráticas e humanamente determinadas. “Nossa capacidade de ir além da máquina (para uma nova síntese) está baseada em nosso poder de assimilar a máquina”, observou ele em Technics and Civilization. “Até que tenhamos absorvido as lições da objetividade, da impessoalidade, da neutralidade e do reino mecânico, não poderemos aprofundar nosso desenvolvimento rumo ao mais magnífico orgânico e ao mais profundo humano” (TAC, p. 363, grifos meus).

A denúncia da tecnologia e da civilização, como se elas oprimissem inerentemente a humanidade, na realidade, serve para encobrir as relações sociais específicas que privilegiam os exploradores em relação aos explorados e aqueles que são hierarquicamente superiores em relação a seus subordinados. Mais do que qualquer sociedade opressora no passado, o capitalismo concebe sua exploração da humanidade sob uma máscara de “fetiches”, para utilizar a terminologia de Marx em O Capital, sobretudo, o “fetichismo da mercadoria”, que tem sido adornado diferente e superficialmente pelos situacionistas, que o consideram um “espetáculo”, e também por Baudrillard, que o considera um “simulacro”. Assim como a apropriação do valor excedente realizada pela burguesia é encoberta pela troca contratual de salário por força de trabalho, igual apenas em aparência, a fetichização da mercadoria e de seus movimentos escondem as relações sociais e econômicas soberanas do capitalismo.

Há um ponto importante, e até mesmo crucial, que deve ser colocado aqui. Esta falta de evidência das relações do capitalismo faz com que o público não perceba que a competição capitalista é a causa das crises de nosso tempo. A essas mistificações, os antitecnológicos e os anticivilizadores adicionam o mito de que a tecnologia e a civilização são inerentemente opressoras, e, com isso, encobrem ainda mais as relações sociais específicas do capitalismo — principalmente a utilização de coisas (mercadorias, valores de troca, objetos — use o termo que quiser) para mediar as relações sociais e para produzir o panorama tecnourbano de nossa época. Assim como a substituição do termo capitalismo por “sociedade industrial” encobre o papel específico e principal do capital e das relações mercantilizadas na formação da sociedade moderna, a substituição de relações pessoais por “cultura tecnourbana”, no que Bradford engaja-se abertamente, encobre o papel fundamental do mercado e da competição na formação da cultura moderna.

O anarquismo de estilo de vida, em grande medida por estar preocupado com um “estilo”, e não com a sociedade, escamoteia o papel da acumulação capitalista, a qual possui suas raízes no mercado competitivo que gera a devastação ecológica. Ele observa, transpassado, uma suposta quebra da unidade “sagrada” ou “extática” entre a humanidade e a “natureza”, e o “desencantamento do mundo” realizado pela ciência, pelo materialismo e pelo “logocentrismo”.

Dessa forma, em vez de descobrir as fontes das patologias pessoais e sociais contemporâneas, a antitecnologia substitui, ilusoriamente, o capitalismo pela tecnologia, algo que facilita a acumulação de capital e a exploração do trabalho, causas evidentes do crescimento e da destruição ecológica. A civilização, representada pela cidade como um centro de cultura, é despida de suas dimensões racionais. Como se a cidade fosse um câncer que não diminui, e não a esfera com potencial para a universalização das relações humanas, em forte contraste com as limitações paroquiais da vida que se dão nas tribos ou nas aldeias. As relações sociais básicas da exploração e da dominação capitalista são ofuscadas por generalizações metafísicas sobre o ego e a technique, confundindo o público no que diz respeito às causas fundamentais das crises sociais e ecológicas — as relações mercantilizadas que dão origem aos agentes corporativos do poder, da indústria e da riqueza.

Isso não significa negar que muitas tecnologias são dominantes em essência e ecologicamente perigosas, ou afirmar que a civilização tem sido uma bênção perfeita. Os reatores nucleares, as grandes barragens, os complexos industriais altamente centralizados, o sistema de fábricas e a indústria de armas — assim como a burocracia, a destruição causada pelas cidades e a mídia contemporânea — têm sido nocivos, quase que desde seu princípio. Porém, os séculos XVIII e XIX não precisaram da máquina a vapor, da fabricação em larga escala, das imensas cidades e das gigantescas burocracias para devastar enormes áreas da América do Norte, praticamente acabar com seus nativos e para erodir o solo de regiões inteiras. Antes das ferrovias terem chegado a todas as partes da Terra, boa parte dessa devastação já tinha sido levada a cabo, com a utilização de simples machados, mosquetes de pólvora negra, veículos puxados a cavalo e arados.

Foram estas simples tecnologias que a empresa burguesa — as dimensões bárbaras da civilização do século XIX— utilizou para transformar grande parte do vale do Ohio River em local de especulação imobiliária. No sul, os proprietários precisavam de “mãos” escravas, em grande medida, porque a maquinaria para plantar e colher não existia; na realidade, os arrendatários americanos desapareceram durante as duas últimas gerações, principalmente, por conta da introdução da nova maquinaria que visava substituir o trabalho dos meeiros negros “libertos”. No século XIX, camponeses da Europa semifeudal, seguindo rios e canais, lançaram-se na selva americana e, por meio de métodos não ecológicos, começaram a produzir os grãos, o que acabaria impulsionando o capitalismo americano para a hegemonia econômica do mundo.

Indo direto ao ponto: foi o capitalismo — a relação de mercadoria completamente expandida em termos históricos — que produziu a crise ambiental explosiva dos tempos modernos, começando com as antigas mercadorias caseiras, que eram transportadas para o mundo todo em embarcações a vela, locomovidas pela força do vento e não por motores. Para além das vilas e das cidades têxteis da Grã-Bretanha, onde a produção em massa de manufaturas teve seu histórico salto tecnológico, as máquinas mais reprováveis de hoje em dia foram criadas muito depois da ascensão do capitalismo em muitas partes da Europa e da América do Norte.

Apesar do atual movimento pendular, que vai desde a glorificação da civilização europeia até sua indiscriminada depreciação, seria importante relembrar o significado do surgimento do secularismo moderno, do conhecimento científico, do universalismo, da razão e das tecnologias que potencialmente oferecem a possibilidade de um encaminhamento racional e emancipatório das questões sociais, visando a completa realização dos desejos e do êxtase, sem, no entanto, os muitos empregados e artesãos que saciavam os apetites de seus “chefes” aristocratas na Abadia de Thélème de Rabelais. Ironicamente, os anarquistas anticivilizadores, que hoje denunciam a civilização, estão entre aqueles que gozam de seus frutos culturais e que promovem as demonstrações mais individualistas de liberdade, sem qualquer noção dos excruciantes desenvolvimentos na história europeia que os tornaram possíveis. Kropotkin, por exemplo, deu ênfase ao “progresso das técnicas modernas, que simplificam maravilhosamente a produção de todas as necessidades da vida.”[51] Para aqueles que não têm senso do contexto histórico, as percepções arrogantes saem barato.

Mistificando o primitivo

O corolário da antitecnologia e da anticivilização é o primitivismo, uma glorificação edênica da pré-história e o desejo de algum tipo de retorno à sua suposta inocência.[52] Anarquistas de estilo de vida como Bradford buscam inspiração nos povos aborígines e nos mitos de uma pré-história edênica. Os povos primitivos, diz ele, “recusavam a tecnologia” — “minimizavam a importância das técnicas instrumentais ou práticas e aumentavam a importância das [...] técnicas extáticas”. Era assim, porque os povos aborígines, com suas crenças animistas, estavam cheios de “amor” pela vida animal e pela selva — para eles, “animais, plantas e objetos naturais” eram “pessoas, ou mesmo parentes” (CIB, p. 11).

Neste sentido, Bradford opõe-se à visão “oficial”, a qual sustenta que as vidas nas culturas pré-históricas dos coletores eram “terríveis, animalescas e nômades, envolvendo uma sangrenta luta pela existência”. Ele glorifica o “mundo primitivo”, considerando-o uma “próspera sociedade original”, conforme as palavras de Marshall Sahlins;

próspera, pois suas necessidades são poucas, todos seus desejos são facilmente realizáveis. Seu conjunto de ferramentas é elegante e leve, sua língua complexa e conceitualmente profunda, ainda que seja simples e acessível a todos. Sua cultura é expansiva e extática. Sem propriedade e comunal, igualitária e cooperativa [...]. É anárquica, [...] livre de trabalho [...]. É uma sociedade dançante, uma sociedade cantante, uma sociedade festiva, uma sociedade sonhadora. [53]

Habitantes do “mundo primitivo”, de acordo com Bradford, viviam em harmonia com o mundo natural e desfrutavam de todos os benefícios da prosperidade, incluindo muito tempo de ócio. A sociedade primitiva, enfatiza ele, estava “livre do trabalho”, já que a caça e a colheita exigiam muito menos esforço do que as pessoas têm hoje com um dia de oito horas de trabalho. Ele reconhece que a sociedade primitiva era “capaz de experimentar eventualmente a fome”. Esta “fome”, no entanto, era sem dúvida simbólica e autoimposta, veja você, porque os povos primitivos “algumas vezes [escolhiam] a fome para aumentar a inter-relação, para brincar ou para ter visões” (CIB, p. 10).

Seria necessário um artigo inteiro para decodificar ou mesmo para contestar esse palavrório absurdo, no qual algumas poucas verdades estão misturadas com fantasias ou encobertas por elas. Bradford baseia sua opinião, até onde sei, em um “grande acesso às posições dos povos primitivos e de seus descendentes nativos”, produzido por “uma antropologia [...] mais crítica” (CIB, p. 10). Na realidade, muito desta “antropologia crítica” parece derivar das ideias propostas no simpósio Man the Hunter, realizado em abril de 1966, na Universidade de Chicago.[54] Apesar do imenso valor de muitos dos papers escritos para este simpósio, alguns deles sustentavam uma ingênua mistificação do “primitivismo”, que foi influente durante a contracultura dos anos 1960 — e que se estende até hoje. A cultura hippie, que influenciou diversos antropólogos da época, comprovava que povos caçadores-coletores daquela época vinham sendo ignorados pelas forças econômicas e sociais vigentes no resto do mundo, e continuavam vivendo em estado de pureza, como remanescentes isolados do modo de vida do Neolítico e do Paleolítico. Além disso, como caçadores-coletores, suas vidas eram saudáveis e calmas; viviam como que em uma ampla e natural dádiva.

Richard B. Lee, co-editor das conferências, considerava que o consumo calórico dos povos primitivos era bastante alto e seu estoque de alimentos abundante, sustentando um tipo de “prosperidade” virginal, na qual as pessoas tinham necessidade de buscar alimentos apenas algumas horas por dia. “A vida em estado de natureza não é necessariamente desagradável, brutal e curta”, escreveu Lee. O habitat dos aborígines Kung do deserto do Kalahari, por exemplo, “é abundante em comidas que são encontradas naturalmente”. Os aborígines de Dobe, que, segundo ele, estavam ainda nos umbrais do Neolítico

vivem bem hoje, das plantas silvestres e da carne, apesar de estarem reduzidos às áreas menos produtivas, considerando os locais onde os povos aborígines eram outrora encontrados. É provável que um fundamento de subsistência, ainda mais substancial, tenha sido característico desses caçadores-coletores no passado, quando eles tinham os melhores habitats da África para escolher. [55]

Não é assim! Conforme veremos brevemente.

É muito comum entre aqueles que divagam sobre a “vida primitiva” misturar milênios de pré-história, como se espécies humanas e hominídeos significativamente distintos tivessem vivido em um mesmo tipo de organização social. A palavra pré-história é profundamente ambígua. Visto que o gênero humano incluía diversas espécies diferentes, dificilmente podemos comparar a “perspectiva” dos forrageadores aurignacianos e magdalenianos (Homo sapiens sapiens) de uns trinta mil anos atrás, com a do Homo sapiens neanderthalensis ou mesmo do Homo erectus, cujo conjunto de ferramentas, habilidades artísticas e capacidade de fala era muito diferente.

Outro importante aspecto é saber em que medida os caçadores-coletores pré-históricos ou forrageadores, nas várias épocas, viveram em sociedades não hierárquicas. Se os sepultamentos em Sungir (na contemporânea Europa do Leste), uns 25 mil anos atrás, permitem qualquer especulação (e não há um povo paleolítico próximo que possa nos falar sobre sua vida), a coleção extraordinariamente rica de joias, lanças, armas de marfim e roupas enfeitadas encontradas nos túmulos de dois adolescentes sugerem a existência de linhagens familiares de status elevado, bem antes dos seres humanos cultivarem alimentos. A maioria das culturas do Paleolítico era, provavelmente, mais ou menos igualitária, mas a hierarquia parece ter existido até mesmo no final do Paleolítico, com marcadas variações de grau, de tipo e de escopo de dominação — o que não permite elogiar o igualitarismo paleolítico.

Um outro aspecto que surge é a variação — nos primeiros casos, a ausência — da habilidade comunicativa nas diferentes épocas. Apesar da linguagem escrita só aparecer mais tarde, nos tempos históricos, as línguas do antigo Homo sapiens sapiens eram “profundas conceitualmente”. Os pictogramas, os hieróglifos e, sobretudo, o material memorizado sobre o qual povos “primitivos” baseavam seu conhecimento do passado possui óbvias limitações culturais. Sem uma literatura escrita, que registre o saber cumulativo de diferentes gerações, a memória histórica, independente dos pensamentos “profundos conceitualmente”, é difícil ser mantida; perde-se no tempo ou sofre distorções.

Por impossibilitar uma crítica exigente, a história oral torna-se, com facilidade, uma ferramenta para “videntes” da elite e xamãs que, longe de serem “protopoetas”, como Bradford os chama, parecem usar seu “conhecimento” para servir a seus próprios interesses sociais. [56]

Fato que nos leva, inevitavelmente, a John Zerzan, o primitivista anticivilização por excelência. Para Zerzan, um dos principais nomes de Anarchy: A Journal of Desire Armed, a ausência de fala, de língua e de escrita é uma vantagem. Outro contemporâneo do Man the Hunter, Zerzan sustenta em seu livro Futuro primitivo (FP), que “a vida antes da domesticação/agricultura foi, em grande medida, uma vida de prazeres, de intimidade com a natureza, de sabedoria sensual, de igualdade sexual e de saúde”[57] — com a diferença de que a visão de Zerzan da “primalidade” aproxima-se mais de uma animalidade quadrúpede. Na verdade, na paleoantropologia zerzaniana, as distinções anatômicas entre o Homo sapiens de um lado, e o Homo habilis, o Homo erectus e os “malditos” Neandertais de outro, são dúbias; todas as primeiras espécies de Homo, segundo ele, possuíam as mesmas capacidades mentais e físicas do Homo sapiens e, além disso, viveram num paraíso primal por mais de dois milhões de anos.

Se esses hominídeos fossem tão inteligentes quanto os humanos modernos, poderíamos ingenuamente perguntar, por que eles não realizaram transformações tecnológicas. “Parece- -me bastante plausível”, conjectura brilhantemente Zerzan,

que a inteligência, baseada no sucesso e na satisfação de uma existência de coletor-caçador, é o próprio motivo da clara ausência de “progresso”. Divisão de trabalho, domesticação, cultura simbólica — foram evidentemente[!] recusadas até muito recentemente.

A espécie Homo “há muito tempo escolheu a natureza em vez da cultura”, e com cultura, aqui, Zerzan quer dizer “a manipulação das formas simbólicas mais básicas” (grifos meus) — um estorvo alienante. De fato, continua ele,

o tempo reificado, a língua (escrita, por certo, e provavelmente falada durante todo ou quase todo esse período), os números e a arte não existiam, apesar de uma inteligência totalmente capaz de criá-los. [58]

Em suma, hominídeos com capacidades de fala, de escrita e simbólica, deliberadamente não as desenvolveu, uma vez que podiam entender uns aos outros e seu próprio meio pelos instintos, sem precisar recorrer a esses recursos. Assim, Zerzan concorda completamente com um antropólogo que pondera o seguinte: “A comunhão dos San (aborígines) com a natureza” atingiu “um nível de experiência que se poderia ‘praticamente chamar de místico. Por exemplo, eles pareciam saber como era sentir-se um elefante, um leão, um antílope’”, até mesmo um baobá (FP, pp. 33–34).

A “decisão” consciente de recusar a língua, as ferramentas sofisticadas, a temporalidade e a divisão do trabalho (é provável que eles tenham pensado nisso e rosnado: “Bah!”) foi tomada, ainda segundo Zerzan, pelo Homo habilis, que, devo ressaltar, tinha menos da metade do tamanho do cérebro dos humanos modernos e provavelmente não tinha a capacidade anatômica nem para articular sílabas. No entanto, sabemos, por meio da autoridade suprema de Zerzan, que os habilis (e possivelmente até o Australopithecus afarensis, que esteve por aí há uns “dois milhões de anos”) possuíam “uma inteligência plenamente capaz” — nada menos! — para desempenhar tais funções, mas se recusaram a isso. Segundo a paleoantropologia zerzaniana, os primeiros hominídeos ou humanos podiam adotar ou recusar traços culturais vitais como a fala, valendo-se de uma sabedoria sublime, como monges que fazem voto de silêncio.

Porém, assim que o voto de silêncio foi rompido, tudo deu errado! Por razões que só Deus e Zerzan conhecem,

a emergência da cultura simbólica, com sua vontade inerente de manipular e controlar, logo abriu as portas para a domesticação da natureza. Depois de dois milhões de anos de vida humana nos limites da natureza, em comparação com outras espécies selvagens, a agricultura alterou nosso estilo de vida, nossa forma de adaptação, de maneira nunca antes vista. Jamais houve uma transformação tão radical, tão definitiva e rápida, de uma espécie. A autodomesticação por meio da linguagem, do ritual e da arte inspirou o controle das plantas e dos animais, que veio em seguida. [59]

Há um certo esplendor nessa armadilha que é cativante. Épocas muito diferentes, hominídeos e/ou espécies humanas e situações ecológicas e tecnológicas; tudo isso é misturado numa vida compartilhada “dentro dos limites da natureza”. A simplificação feita por Zerzan da dialética muito complexa entre humanos e não humanos revela uma mentalidade tão reducionista e simplista que deixa qualquer um pasmo e perplexo.

É certo que há muito o que aprender com as culturas pré-literárias — sociedades orgânicas, como eu as chamo em The Ecology of Freedom —, especialmente sobre a mutabilidade do que se costuma chamar de “natureza humana”. Seu espírito de cooperação grupal e, às vezes, até sua visão igualitária, são admiráveis — e socialmente necessários, tendo em vista o mundo precário em que viviam —, e fornecem provas claras da maleabilidade do comportamento humano, que contrapõe o mito de que a competitividade e a ganância são atributos humanos inatos. Realmente, suas práticas de usufruto e a desigualdade dos iguais são de grande relevância para uma sociedade ecológica.

No entanto, dizer que povos “primais” ou pré-históricos “reverenciavam” a natureza não humana é, no mínimo, enganoso, e, no máximo, completamente insincero. Na ausência de ambientes “não naturais” como aldeias, vilas e cidades, a própria noção de “natureza”, como algo diferente de habitat, precisa ainda ser conceituada — uma experiência alienante, na visão de Zerzan. Tampouco é provável que nossos ancestrais remotos vissem o mundo natural de maneira menos instrumental que os povos das culturas históricas. Considerando seus próprios interesses materiais — sobrevivência e bem-estar —, os povos pré-históricos aparentemente caçavam o quanto podiam, e, se em imaginação povoavam o mundo animal de atributos antropomórficos, como com certeza faziam, era no intuito de comunicar-se com os animais para manipulá-los e não para simplesmente reverenciá-los.

Com esses fins instrumentais em mente, esses povos evocavam animais “falantes”, “tribos” de animais (muitas vezes segundo o padrão das próprias estruturas sociais) e “espíritos” animais capazes de interação. É compreensível que, dada a limitação de seu conhecimento, eles acreditassem na realidade dos sonhos, na qual humanos poderiam voar e os animais poderiam falar — um mundo de sonhos inexplicável e muitas vezes assustador, o qual tomavam como realidade. Para controlar animais de caça, usar o habitat para sobrevivência, lidar com as vicissitudes do clima e outros elementos, os povos pré- -históricos tiveram de personificar esses fenômenos e “falar” com eles, direta, ritualística ou metaforicamente.

Aparentemente, os povos pré-históricos intervieram com a maior resolução possível em seu ambiente. Quando o Homo erectus ou outras espécies posteriores aprenderam a usar o fogo, por exemplo, devem ter incendiado florestas, provavelmente encurralaram animais de caça em penhascos ou em emboscadas naturais, onde podiam melhor abatê-los. A “reverência pela vida” dos povos pré-históricos reflete, dessa maneira, uma preocupação muito pragmática de melhoria e de controle da alimentação, e não de um amor pelos animais, pelas florestas e montanhas (as quais eles deviam temer, imaginando que fossem a morada das divindades, tanto das demoníacas quanto das benignas). [60]

O “amor à natureza” que Bradford atribui à “sociedade primal” tampouco descreve com precisão os povos nômades coletores de hoje em dia, que muitas vezes lidam de forma bastante brusca com seus animais de carga e de caça; os pigmeus da floresta de Ituri, por exemplo, torturam suas presas com altas doses de sadismo, e entre os esquimós são comuns os maus-tratos contra huskies.[61] Quanto aos americanos nativos que viviam nestas terras antes do contato com os europeus, eles alteraram profundamente o continente usando o fogo, com o objetivo limpar o terreno para suas hortas e possibilitar melhor visibilidade para as caçadas, a ponto de o “paraíso” encontrado pelos europeus ter sido “claramente humanizado”. [62]

Muitas tribos indígenas parecem ter exaurido os animais de caça, tendo de migrar para novos territórios visando obter os meios de vida material. Seria realmente surpreendente se elas não tivessem entrado em guerra para expulsar aqueles que, originalmente, ocupavam esses territórios. Seus ancestrais remotos podem muito bem ter contribuído com a extinção de alguns dos maiores mamíferos da América do Norte da última era glacial (em especial mamutes, mastodontes, bisões, cavalos e camelos). Pilhas espessas de ossos de bisão são visíveis em alguns locais, sugerindo que houve assassinatos em massa e “filas” para o abate, em diversos arroios americanos. [63]

Entre os povos que praticavam a agricultura, a terra não era necessariamente usada de maneira ecologicamente correta. Ao redor do lago Pátzcuaro, no planalto central mexicano, antes da conquista espanhola, “o manejo da terra na pré-história não era conservacionista na prática”, escreve Karl W. Butzer, causando altos índices de erosão do solo. Na realidade, as práticas agrícolas aborígines “podiam ser tão nocivas quanto qualquer utilização pré-industrial da terra no Velho Mundo”. [64] Outros estudos mostram que a destruição excessiva de florestas e o fracasso da agricultura de subsistência exauriu a sociedade maia e contribuiu para o seu colapso. [65]

Jamais teremos como saber se os modos de vida dos povos nômades coletores de hoje em dia refletem com precisão os modos de vida do passado ancestral.[66] As culturas aborígines modernas desenvolveram-se ao longo de milhares de anos e transformaram-se significativamente pelos inúmeros contatos com outras culturas, antes de terem sido estudadas pelos pesquisadores ocidentais. De fato, como observou acidamente Clifford Geertz, existe pouca, se é que existe alguma, pureza nas culturas aborígines que os modernos primitivistas associam à primeira humanidade. “A percepção de que [a pureza primal dos aborígines atuais] não era exatamente assim foi dolorosa e tardia; nem entre os pigmeus e nem entre os esquimós”, observa Geertz,

sendo que esses povos são, na verdade, produtos de processos de transformações sociais de larga escala, responsáveis por fazer deles aquilo que eles são — fato que levou a uma espécie de choque e também a uma crise no campo da etnografia.[67]

Os grupos de povos “primais”, assim como as florestas habitadas por eles, não eram mais “virginais” no contato com os europeus do que os índios Lakota, na época da Guerra Civil Americana, independente do que sustenta Dança com lobos. Muitos dos tão estudados sistemas de crenças “primais” dos aborígines de hoje em dia remetem claramente às influências cristãs. Black Elk,[68] por exemplo, era um católico fervoroso[69] e a Dança fantasma dos paiutes e lakotas, do final do século XIX, era profundamente influenciada pelo milenarismo evangélico cristão.

Em pesquisas antropológicas sérias, a noção de um caçador puro, “extático”, não sobreviveu trinta anos, depois da publicação do simpósio Man the Hunter. A maioria das sociedades “prósperas de caçadores”, citadas pelos devotos do mito da “prosperidade primitiva”, literalmente evoluiu — muito provavelmente contra sua vontade — a partir de sistemas sociais da horticultura. O povo San do Kalahari, sabe-se hoje, era composto de jardineiros, que depois foram levados para viver no deserto. Centenas de anos atrás, de acordo com Edwin Wilmsen, os povos de língua San pastoreavam e cultivavam a terra, sem falar no comércio das terras dos chefes vizinhos agricultores, por meio de uma rede que se estendia até o Oceano Índico. Por volta do ano 1000, demonstram as escavações, sua área, Dobe, era habitada por povos que faziam cerâmica, trabalhavam o ferro, e criavam gado, exportando sua produção para a Europa, na década de 1840, junto com imensas quantidades de marfim — boa parte dele oriundo de elefantes caçados pelo próprio povo San que, sem dúvida, levava a cabo essas matanças de seus “irmãos” paquidermes com toda aquela sensibilidade que Zerzan atribui a ele. O nomadismo marginal do povo San, que tanto encantou as pessoas nos anos 1960 era, na verdade, resultado de mudanças econômicas do final do século XIX: “as raízes remotas imaginadas por observadores externos [...] não eram nativas, e foram criadas pelo colapso do capital mercantil”.[70] Assim, “a atual situação dos povos de língua San, habitantes de uma faixa rural da economia africana”, indica Wilmsen,

pode ser compreendida apenas nos termos das políticas sociais e econômicas da era colonial e suas consequências. Seu surgimento como nômades coletores é uma decorrência desses povos terem sido relegados a uma classe inferior no processo histórico que se iniciou antes do segundo milênio e que culminou nas primeiras décadas do século XX. [71]

Os Yuquí da Amazônia, também, podem facilmente ter servido de exemplo para a sociedade pura de nômades coletores, enaltecida nos anos 1960. Ignorados pelos europeus até a década de 1950, estes povos dispunham de um conjunto de ferramentas que consistia em pouco mais do que uma mandíbula de porco do mato, arcos e flechas. “Além de não saberem fazer fogo”, escreve Allyn M. Stearman, que os estudou, “não possuíam embarcações, animais domésticos (nem mesmo cachorros), qualquer pedra ou especialista em rituais, contando apenas com uma cosmologia rudimentar. Viviam suas vidas como nômades, percorrendo as florestas das terras baixas da Bolívia em busca de caça e outros alimentos que conseguiam coletar.” [72] Não tinham roças e não eram familiarizados com o uso do anzol e da linha para a pesca.

No entanto, longe de serem igualitários, os Yuquí mantiveram a instituição da escravidão hereditária, dividindo sua sociedade entre uma elite privilegiada e um grupo de trabalhadores escravos desprestigiados. Tal aspecto hoje é visto como vestígio de um modo de vida que foi, outrora, hortícola. Os Yuquí, ao que parece, descendiam de uma sociedade pré-colombiana na qual havia escravidão, e

com o tempo, foram experimentando a aculturação, perdendo sua herança cultural, com a necessidade de permanecerem nômades e viverem da terra. Mas, embora muitos elementos de sua cultura tenham se perdido, outros resistiram. A escravidão, evidentemente, foi um desses elementos.[73]

Wilmsen e seus associados não só acabaram com o mito do coletor “puro”, mas colocaram em xeque os dados de Richard Lee sobre a ingestão calórica dos “prósperos” coletores.[74] O povo Kung tinha uma expectativa média de vida de cerca de trinta anos. A mortalidade infantil era alta e, de acordo com Wilmsen (calma, Bradford!), as pessoas eram acometidas por doenças e fome durante as secas. (O próprio Lee reviu suas posições sobre esse assunto depois dos anos 1960.)

Como era de se esperar, as vidas de nossos ancestrais eram tudo, menos um mar de rosas. Na verdade, a vida deles era bastante dura, em geral curta e muito difícil do ponto de vista material. Exames anatômicos sobre a longevidade mostram que quase a metade deles morria na infância ou antes dos vinte anos, e eram poucos os que viviam mais de cinquenta anos.[75] Eram mais necrófagos do que caçadores-coletores e provavelmente 101 foram vítimas de leopardos e hienas. [76]

Com os membros de seus bandos, tribos ou clãs, os povos pré-históricos e outros coletores posteriores eram geralmente cooperativos e pacíficos; mas com membros de outros bandos, tribos ou clãs, eles eram muitas vezes beligerantes, às vezes até genocidas, nas tentativas de expropriar os outros e apropriar-se de sua terra. O mais bem-aventurado de nossos ancestrais humanos (como querem os primitivistas), o Homo erectus, deixou para trás de si um rastro de matanças inter-humanas, segundo os dados colhidos por Paul Janssens.[77] Sugeriu-se que muitos indivíduos na China e em Java teriam sido mortos por erupções vulcânicas, mas essa explicação perde muito de sua plausibilidade diante dos restos de quarenta indivíduos encontrados, cujas cabeças com lesões fatais haviam sido decapitadas — “dificilmente obra de um vulcão”, observa Corine Shear Wood.[78] A propósito dos coletores nômades modernos, os conflitos entre tribos de nativos americanos são numerosos demais para citar — como testemunham os Anasazi e seus vizinhos do sudoeste, tribos que acabaram formando a Confederação dos Iroqueses (a própria sobrevivência da confederação já seria uma questão, se eles mesmos não tivessem exterminado uns aos outros), que quase levou ao extermínio e à fuga das últimas comunidades Huron.

Se os “desejos” dos povos pré-históricos “eram facilmente saciados”, como alega Bradford, isto se devia ao fato de suas condições materiais de vida — e, portanto, de seus desejos — serem realmente muito singelas. O mesmo se pode esperar de qualquer forma de vida que mais se adapta do que inova, que mais se conforma ao habitat do que o altera, para que ele que conforme as suas necessidades. Pode-se afirmar com segurança que os primeiros povos possuíam uma maravilhosa compreensão do habitat onde viviam; eram, afinal, seres bastante inteligentes e imaginativos. No entanto, sua cultura “extática” era muito marcada não só pela alegria de seus “cantos, [...] celebrações, [...] e sonhos”, mas também pela superstição e por temores facilmente manipuláveis.

Nossos remotos ancestrais e os aborígines atuais não poderiam ter sobrevivido se tivessem sido absorvidos pelas ideias das Disneylândias encantadas, sugeridas pelos atuais primitivistas. Com certeza, os europeus não ofereceram tratamentos sociais magníficos aos aborígines. Muito pelo contrário: os imperialistas submeteram os povos nativos à brutal exploração, ao franco genocídio, às doenças contra as quais não eram imunes e à desavergonhada pilhagem. Nenhum feitiço animista pode ou poderia ter evitado esse ataque, como no caso da tragédia de Wounded Knee, em 1890, quando o mito das camisas espirituais impenetráveis às balas foi dolorosamente desmentido.

Crucial é que a regressão do primitivismo dos anarquistas de estilo de vida nega o mais destacado atributo da humanidade enquanto espécie e os aspectos potencialmente emancipatórios da civilização euro-americana. Humanos são muito diferentes de outros animais, na medida em que fazem mais do que meramente adaptar-se ao mundo à sua volta; humanos inovam e criam um novo mundo, não só para descobrir seu próprio poder como seres humanos, mas para fazer o mundo ao seu redor mais adequado ao seu próprio desenvolvimento, tanto em termos do indivíduo, quanto da espécie. Ainda que a capacidade de transformar o mundo esteja distorcida na sociedade irracional de hoje, ela é um dom natural e um produto da evolução biológica humana — não só um produto da tecnologia, da racionalidade e da civilização. O fato de pessoas que se dizem anarquistas defenderem um primitivismo que beira o animalesco, com sua mal-disfarçada mensagem de adaptação e de passividade, é uma vergonha diante de séculos de pensamento, práticas e ideais revolucionários; isso difama as memoráveis tentativas da humanidade de se libertar do provincianismo, do misticismo, da superstição, visando transformar o mundo.

Para esses anarquistas de estilo de vida, em especial os anticivilização e primitivistas, a própria história torna-se um monólito degradante, que suprime todas as distinções, mediações, fases de desenvolvimento e especificidades sociais. O capitalismo e suas contradições são reduzidos a epifenômenos de uma civilização devoradora, com seus “imperativos” tecnológicos sem qualquer nuance e diferenciação. A história, se considerada como o desenrolar do componente racional da humanidade — o desenvolvimento de sua capacidade de liberdade, de autoconsciência e de cooperação —, é um relato complexo do cultivo das sensibilidades humanas, de suas instituições, de sua intelectualidade e do conhecimento daquilo que vem se chamando de “educação da humanidade”. Tratar a história como um permanente “desmoronamento” a partir de uma animalesca “autenticidade” — como Zerzan, Bradford e sua turma fazem de modo muito semelhante a Martin Heidegger — é ignorar os ideais expansivos de liberdade, de individualidade e de autoconsciência, que marcaram as épocas do desenvolvimento humano — sem falar na ampliação das lutas revolucionárias para alcançar esses fins.

O anarquismo de estilo de vida anticivilização é apenas um aspecto da regressão social que marca as últimas décadas do século XX. Assim como o capitalismo ameaça refazer a história natural, ao trazer de volta uma era geológica e zoologicamente mais simples e menos diferenciada, o anarquismo de estilo de vida anticivilização é cúmplice do capitalismo, ao trazer o espírito humano e sua história de volta a um mundo menos desenvolvido, menos determinado e edênico — a sociedade pré-tecnológica e pré-civilizatória supostamente “inocente”, a qual existiu antes que a humanidade “perdesse a graça”. Como os lotófagos da Odisseia de Homero, os humanos “autênticos” eram aqueles que viviam no eterno presente, sem passado ou futuro — sem o incômodo da memória ou da ideação, livres da tradição e não desafiados pelo porvir.

Ironicamente, o mundo idealizado pelos primitivistas impediria o individualismo radical celebrado pelos individualistas herdeiros de Max Stirner. Ainda que as comunidades “primais” contemporâneas tenham produzido indivíduos de traços marcantes, o poder do costume e o alto grau de solidariedade grupal impelido pelas difíceis condições dão pouca margem para comportamentos excessivamente individualistas, do tipo defendido por anarquistas stirnerianos que celebram a supremacia do ego. Hoje em dia, interessar-se pelo primitivismo é justamente o privilégio da urbanidade próspera, que permite brincar com as fantasias negadas aos pobres, famintos e “nômades”, que por necessidade moram nas ruas das cidades, e também aos empregados que trabalham demais. Mulheres modernas que trabalham e têm filhos dificilmente conseguiriam passar sem o alívio, ainda que mínimo, das máquinas de lavar roupa, em sua rotina de afazeres domésticos — juntamente com o trabalho que, muitas vezes, é responsável pela maior parte da renda da casa. Ironicamente, até o coletivo que faz a Fifth State descobriu que não poderia ficar sem um computador e foi “forçado” a comprar um — publicando um texto de repúdio não muito sincero que dizia: “Odiamos isso!” [79] Denunciar uma tecnologia avançada e utilizá-la para produzir literatura antitecnológica é pouco sincero e demonstra hipocrisia. Tamanho ódio dos computadores parece um capricho de privilegiados que, empanturrados de doces caros, exaltam as virtudes da pobreza nas orações de domingo.

Avaliando o anarquismo de estilo de vida

O que se destaca, de modo mais constrangedor, no anarquismo de estilo de vida atual, é seu apreço pelo imediatismo em detrimento da reflexão, por um ingênuo relacionamento íntimo entre a mente e a realidade. Esse imediatismo torna o pensamento libertário imune às exigências de uma reflexão matizada e com mediações, obstruindo a análise racional e a própria racionalidade. Confiando a humanidade ao não temporal, ao não espacial e ao não histórico — uma noção “primitiva” de temporalidade baseada nos eternos “ciclos” da “natureza” —, ele priva a mente de sua singularidade criativa e de sua liberdade de intervir no mundo natural.

O anarquismo de estilo de vida primitivista sustenta que os seres humanos estão em sua melhor forma quando se adaptam à natureza não humana, em vez de nela interferirem, ou quando, desembaraçados da razão, da tecnologia, da civilização e até da fala, eles vivem em uma tranquila “harmonia” com a realidade existente; talvez até dotados de “direitos naturais”, em uma condição “extática”, essencialmente estúpida e visceral. TAZ, Fifth Estate, Anarchy: A Journal of Desire Armed e “zines” do lúmpen, como o stirneriano Demolition Deerby, de Michael William — todos têm como objetivo uma “primalidade” anticivilização, anti-histórica e sem mediações, da qual todos nós viemos; um estado de perfeição e de “autenticidade” em que éramos guiados de diferentes maneiras pelos “limites da natureza”, pela “lei natural” ou por nossos egos devoradores. História e civilização consistem em nada mais do que uma decadência rumo à inautenticidade da “sociedade industrial”.

Como já coloquei, esse mito da “perda da autenticidade” tem suas raízes no romantismo reacionário, mais recentemente na filosofia de Martin Heidegger, cujo “espiritualismo” völkisch, latente em Ser e Tempo, foi depois desenvolvido em suas obras explicitamente fascistas. Essa visão nutre-se do misticismo quietista — que existe em abundância nos escritos antidemocráticos de Rudolf Bahro, com seu apelo mal disfarçado à “salvação” por um “Adolf ambientalista” —, da busca apolítica de um espiritualismo ecológico e de uma “autorrealização” proposta pelos ecologistas profundos.

O ego do indivíduo torna-se, enfim, o templo supremo da realidade, desconsiderando a história e as transformações, a democracia e a responsabilidade. Na realidade, o contato direto com a sociedade é atenuado por um narcisismo tão onívoro que reduz a associação a um ego infantilizado, o qual acaba sendo pouco mais do que algumas exigências e reivindicações esganiçadas para as próprias satisfações. A civilização simplesmente obstrui a autorrealização extática desses desejos do ego, reificados como a última realização da emancipação, como se o êxtase e o desejo não fossem produtos do desenvolvimento histórico, mas apenas impulsos inatos que surgem do nada, em um mundo sem socialização.

Assim como o único [ego] stirneriano pequeno-burguês, o anarquismo de estilo de vida primitivista não se preocupa muito com as instituições sociais, as organizações políticas e os programas radicais, e preocupa-se menos ainda com uma esfera pública, já que todos os escritores que consultamos identificam esses elementos automaticamente com a burocracia estatal. O esporádico, o não sistemático, o incoerente, o descontínuo e o intuitivo substituem o consistente, o útil, o organizado e o racional; na verdade, qualquer forma de atividade constante e centrada, que não seja publicar um “zine”, um panfleto ou pôr fogo numa lata de lixo. A imaginação é contraposta à razão, e o desejo à coerência teórica, como se eles estivessem em radical contradição. A advertência de Goya de que a imaginação sem a razão produz monstros é alterada para dar a impressão que a imaginação floresce de uma experiência direta e de uma “singularidade” sem matizes. Desta maneira, a natureza social é dissolvida na natureza biológica; a humanidade inovadora na animalidade adaptativa, a temporalidade na eternidade pré-civilização, e a história nos ciclos arcaicos.

Uma realidade burguesa, cuja aspereza econômica fica mais absoluta e grosseira a cada dia que passa, é transformada, inteligentemente, pelo anarquismo de estilo de vida, em um conjunto de autoindulgência, incipiência, indisciplina e incoerência. Nos anos 1960, os situacionistas, em nome de uma “teoria do espetáculo”, produziram um espetáculo concreto de teoria. Eles, pelo menos, defendiam outras formas de organização, como os conselhos de trabalhadores, o que deu ao seu esteticismo algum lastro. O anarquismo de estilo de vida, ao atacar a organização, o compromisso programático e as análises sociais sérias, imita os piores aspectos do esteticismo situacionista, sem aderir ao projeto de construção de um movimento. Como os detritos dos anos 1960, ele vaga sem rumo dentro dos limites do ego (chamado por Zerzan de “limites da natureza”) e ganha fama por sua incoerência boêmia.

O maior problema é que as fantasias estéticas e autoindulgentes do anarquismo de estilo de vida acabam significativamente com os elementos socialistas de uma ideologia da esquerda libertária que outrora teve relevância e influência social, precisamente por seu compromisso inflexível com a emancipação — não fora da história, no campo subjetivo, mas dentro da história, no campo objetivo. O grande brado da Primeira Internacional — que o anarcossindicalismo e o anarcocomunismo sustentaram depois que Marx e seus defensores o abandonaram — era: “não mais direitos sem deveres, não mais deveres sem direitos”. Por gerações, estas palavras adornaram os periódicos que devemos chamar, em retrospectiva, de periódicos anarquistas sociais. Hoje, isso está em radical desacordo com a reivindicação egocêntrica do “desejo armado”,[80] com as contemplações taoístas e os nirvanas budistas. Ao passo que o anarquismo social recorre ao povo buscando a revolução e a reconstrução da sociedade, a pequena burguesia enraivecida que povoa o mundo do anarquismo de estilo de vida invoca a rebelião episódica e a satisfação de suas “máquinas desejantes”, para utilizar a fraseologia de Deleuze e Guattari.

Este enorme afastamento do compromisso histórico que anarquismo clássico possui com a luta social (sem o qual a autorrealização e a satisfação do desejo, em todas as dimensões, não apenas instintivas, não podem concretizar-se) vem inevitavelmente acompanhado de uma mistificação desastrosa da experiência e da realidade. A partir de uma lógica que beira o fetiche, o ego é considerado o único espaço de transformação e termina sendo idêntico ao “indivíduo soberano” do individualismo laissez-faire. Apartado de seus laços sociais, ele não chega à autonomia, mas à individualidade heterônoma da iniciativa pequeno-burguesa.

Na realidade, longe de ser livre, o ego e sua individualidade soberana estão completamente obrigados às leis aparentemente anônimas do mercado — leis da competição e da exploração —, o que transforma o mito da liberdade individual em outro fetiche, por razão da ocultação das implacáveis leis da acumulação do capital. O anarquismo de estilo de vida, com efeito, torna-se mais um agente da mistificação e da ilusão burguesa. Seus acólitos não são mais “autônomos” do que os movimentos da bolsa de valores, do que as flutuações de preço e os fatos mundanos do comércio burguês. Apesar de todas as reivindicações por autonomia, esse “rebelde” da classe média, com ou sem uma pedra nas mãos, está totalmente preso às forças subterrâneas do mercado, que ocupam todos os espaços supostamente “livres” da vida social moderna, das cooperativas de alimentos às comunas rurais.

O capitalismo está em torno de nós — não apenas em termos materiais, mas culturais. Como John Zerzan declarou, memoravelmente, a um confuso entrevistador que perguntou sobre o aparelho de televisão na casa deste inimigo da tecnologia: “assim como todas as outras pessoas, eu tenho de ser narcotizado”. [81]

O próprio anarquismo de estilo de vida é um autoengano “narcotizante”, que pode ser bem visto em O único e sua propriedade de Max Stirner, no qual a reivindicação da “unicidade” do único [ego] no templo do sacrossanto “eu” supera, de longe, as devoções liberais de John Stuart Mill. Na realidade, com Stirner, o egoísmo torna-se uma questão de epistemologia. Passando por cima das confusões que envolvem as contradições e as declarações tristemente incompletas que enchem O único e sua propriedade, nota-se que o único [ego] de Stirner é um mito, já que suas raízes encontram-se no “outro” — a própria sociedade. Na realidade, “a verdade não pode dar um passo a frente como você faz”, discursa Stirner ao egoísta, “não pode mover-se, mudar, desenvolver-se; a verdade está reservada a você, e reforça tudo a partir de você, e ela mesma só existe através de você; porque ela só existe na sua cabeça.” [82] O egoísta stirneriano despede-se da realidade objetiva, da realidade dos fatos sociais e, por meio disso, da transformação social fundamental e de todos os critérios e ideais éticos para além da satisfação pessoal em meio aos demônios escondidos do mercado burguês. Esta ausência de mediação subverte a própria existência do concreto, sem falar na autoridade do próprio único [ego] stirneriano — uma reivindicação tão abrangente que exclui as raízes sociais do eu e de sua formação histórica.

Nietzsche, independentemente de Stirner, levou essa visão da verdade à sua conclusão lógica, apagando a factualidade e a realidade da verdade como tal: “O que, então, é verdade?” perguntou ele. “Um exército móvel de metáforas, metonímias e antropomorfismos — em resumo, uma soma de relações humanas que foram acentuadas, transpostas e embelezadas poética e retoricamente”.[83] Com mais franqueza que Stirner, Nietzsche sustentava que os fatos são simplesmente interpretações; na realidade, perguntou ele, “é necessário colocar um intérprete atrás das interpretações?”. Aparentemente não, pois, “até mesmo isso é invenção, hipótese”.[84] Seguindo a inexorável lógica de Nietzsche, permanecemos com um eu que não apenas cria essencialmente sua própria realidade, mas que também deve justificar sua própria existência, como algo mais do que uma mera interpretação. Tal egoísmo, dessa maneira, aniquila o próprio ego, que desaparece na névoa das próprias premissas não declaradas por Stirner.

De maneira similar, privado da história, da sociedade e da realidade dos fatos, além de suas próprias “metáforas”, o anarquismo de estilo de vida subsiste em um domínio associal, no qual o ego, com seus enigmáticos desejos, dissipa-se em abstrações lógicas. Porém, reduzir o ego ao imediatismo intuitivo — fixando-o na simples animalidade, nos “limites da natureza”, ou na “lei natural” — equivaleria a ignorar o fato de que ele é produto de uma história em permanente formação. Na realidade, de uma história que não se constitui somente de meros episódios e que deve valer-se da razão como guia para padrões de progresso e de regresso, de necessidade e de liberdade, de bom e de mau, e — sim! — de civilização e de barbárie. Um anarquismo que busque evitar, por um lado, os obstáculos de um abrupto solipsismo, e, por outro, a perda do “eu”, considerando-o uma mera “interpretação”, deve tornar-se explicitamente socialista ou coletivista. Isso significa dizer que este anarquismo deve ser um anarquismo social, que busque a liberdade por meio da estrutura e da responsabilidade mútua, e não por meio de um ego nômade e nebuloso, que se abstém das condições prévias da vida social.

Sendo direto: entre o socialismo do anarcossindicalismo e do anarcocomunismo (que nunca negaram a importância da autorrealização e da realização do desejo), e o individualismo, fundamentalmente liberal, do anarquismo de estilo de vida (que alimenta a ineficácia social, quando não a pura negação social), existe um divisor que não pode ser transposto, a não ser que desconsideremos completamente os objetivos, os métodos e a filosofia básica tão diferentes que os distinguem. O próprio projeto de Stirner, para dizer a verdade, surgiu a partir de um debate com o socialismo de Wilhelm Weitling e de Moses Hess, e ele invocou o egoísmo justamente para se contrapor ao socialismo. “Insurreição pessoal em vez de revolução geral, era a mensagem [de Stirner]”, observa James J. Martin[85] — uma contraposição que subsiste no anarquismo de estilo de vida atual e nas suas filiações yuppies, e que se distingue do anarquismo social, o qual possui raízes na historicidade, na matriz social da individualidade e no seu compromisso com uma sociedade racional.

A real incongruência dessas mensagens — que se misturam no que há de mais essencial, e que coexistem em todas as páginas dos “fanzines” de estilo de vida — reflete a voz febril da pequena burguesia irrequieta. Se o anarquismo perder sua essência socialista e seu objetivo coletivista, se ele cair no estetismo, no êxtase, no desejo, no quietismo taoísta e na autoextinção budista substituindo a política, a organização e os programas libertários, ele não dará corpo a uma regeneração social e a um projeto revolucionário, mas à decadência social e à rebeldia egoísta e petulante. Pior, alimentará a onda de misticismo que já está empolgando prósperos jovens de hoje. A exaltação que o anarquismo de estilo de vida faz do êxtase, certamente louvável quando inserida em uma matriz social radical, mas neste caso descaradamente misturada com a “magia”, vem absorvendo espíritos, fantasmas e arquétipos junguianos, em vez de criar uma consciência racional e dialética do mundo.

De maneira exemplar, a capa de um número recente do Alternative Press Review (outono de 1994), um periódico anarquista norte-americano feroz e bastante lido, estampa uma divindade budista de três cabeças em um sereno repouso nirvânico, contra um fundo aparentemente cósmico de galáxias rodopiantes e uma parafernália esotérica — uma imagem que poderia, sem maiores problemas, ser utilizada como o pôster “Anarquia” da Fifth Estate, em uma loja new age. Do lado de dentro da capa, um anúncio exclama: “A vida pode ser mágica quando começamos a nos libertar” (a letra “A” de mágica está circulada) — à qual o leitor se sente obrigado a perguntar: Como? Com o quê? A própria revista contém um ensaio sobre ecologia profunda de Glenn Parton (retirado do periódico de David Foreman, Wild Earth) intitulado: “The Wild Self: Why I Am a Primitivist”, enaltecendo os “povos primitivos”, cujo “modo de vida adapta-se ao mundo natural previamente dado”, lamentando a revolução do Neolítico e identificando como nossa “principal tarefa” a “desconstrução de nossa civilização e a restauração da vida selvagem”. A arte da revista celebra a vulgaridade — crânios humanos e imagens de ruínas recebem muito destaque. A contribuição mais extensa, “Decadence”, retirada de Black Eye, mescla o romântico com o lúmpen, concluindo exultante: “É hora de um verdadeiro feriado romano, podem trazer os bárbaros!”.

Infelizmente os bárbaros já chegaram por aqui — e o “feriado romano”, nas atuais cidades dos Estados Unidos, está repleto de crack, de brutalidade, de insensatez, de estupidez, de primitivismo, de anticivilizacionismo, de antirracionalismo e de uma considerável dose de “anarquia”, se a considerarmos como sendo o caos. O anarquismo de estilo de vida deve ser compreendido no atual contexto social, que envolve guetos negros desmoralizados, subúrbios brancos reacionários e também as reservas indígenas, ostensivos centros de “primalidade” nos quais gangues de índios jovens trocam tiros entre si, o tráfico de drogas cresce a cada dia e os “graffitis saúdam os visitantes até mesmo no monumento sagrado de Window Rock”, como relata Seth Midans ao The New York Times (3 de março de 1995).

Deste modo, uma extensa decadência cultural seguiu a degeneração da Nova Esquerda dos anos 1960, caindo no pós-modernismo e fazendo com que sua contracultura se transformasse em espiritualismo esotérico. Para os tímidos anarquistas de estilo de vida, a arte do Halloween e os artigos incendiários afastam, cada vez mais, a esperança e a compreensão da realidade. Divididos entre os atrativos de um “terrorismo cultural” e os centros budistas, os anarquistas de estilo de vida encontram-se, na verdade, num fogo cruzado entre os bárbaros do topo da sociedade (que estão em Wall Street e na City londrina), e os bárbaros da base (que estão nos obscuros guetos urbanos da Euro-América). Infelizmente, o conflito em meio ao qual se encontram — por toda sua celebração do modo de vida do lúmpen (para o qual os bárbaros corporativos não são mais estranhos hoje em dia) — contribui menos com a criação de uma sociedade livre, do que com uma guerra brutal para saber quem lucrará com a venda de drogas, de corpos humanos, com empréstimos exorbitantes — e não podemos nos esquecer das obrigações especulativas e das cotações internacionais.

Um retorno à mera animalidade — ou devemos chamar de “descivilização”? — não é um retorno à liberdade, mas ao instinto, ao domínio da “autenticidade”, guiado mais pelos genes do que pelo cérebro. Nada poderia estar mais distante dos ideais de liberdade criados progressivamente pelas grandes revoluções do passado. E nada poderia ser mais inexorável na obediência cega aos imperativos bioquímicos, tais como o DNA, ou estar mais em contraste com a criatividade, com a ética e com a mutualidade, criadas pela cultura e pelas lutas por uma civilização racional. Não existe liberdade na “selvageria”, se por “pura ferocidade” compreendemos os ditames inatos dos padrões comportamentais que moldam a mera animalidade. Demonizar a civilização, sem o devido reconhecimento de suas enormes potencialidades para a realização da liberdade autoconsciente — uma liberdade conferida pela razão e pela emoção, pela intuição e pelo desejo, pela prosa e pela poesia — é retornar ao mundo das sombras da brutalidade, quando o pensamento era débil e a ação do intelecto não passava de uma promessa evolucionista.

Rumo a um comunalismo democrático

Certamente, meu retrato do anarquismo de estilo de vida não está completo; o impulso personalista dessa argila ideológica permite que ela seja moldada de muitas formas, desde que palavras como imaginação, sagrado, intuitivo, êxtase e primitivo adornem sua aparência.

O anarquismo social, a meu ver, possui uma essência completamente diferente por ser herdeiro da tradição iluminista, com a devida consideração de seus limites e de suas imperfeições. Dependendo de como definirmos a razão, o anarquismo social pode celebrar a mente humana pensante sem, de forma alguma, negar a paixão, o êxtase, a imaginação, o divertimento e a arte. Contudo, em vez de materializar esses elementos em categorias nebulosas, ele busca incorporá-los na vida cotidiana. O anarquismo social compromete-se com a racionalidade, opondo-se à racionalização da experiência; com a tecnologia, opondo-se à “megamáquina”; com a institucionalização social, opondo-se ao sistema de classes e à hierarquia; com uma política genuína, baseada na coordenação confederal de municipalidades ou comunas, levada a cabo pelo próprio povo, com democracia direta cara-a-cara, opondo-se ao parlamentarismo e ao Estado.

Essa “comuna das comunas”, para utilizar um slogan tradicional das antigas revoluções, pode ser chamada de comunalismo. Opondo-se à democracia no sentido de “governo”, o comunalismo constitui a dimensão democrática do anarquismo, no sentido de uma administração majoritária da esfera pública. Em consequência, o comunalismo busca a liberdade e não a autonomia, no sentido que coloquei anteriormente. Ele rompe categoricamente com o único [ego] stirneriano boêmio, liberal e psicopessoal, por considerá-lo um soberano encerrado em si mesmo; afirma que a individualidade não surge do nada, enfeitada em seu nascimento com “direitos naturais”, e concebe a individualidade, em grande medida, como um trabalho em constante mudança do desenvolvimento social e histórico; um processo de autoformação que não pode ser petrificado pelo biologismo e nem ser preso por dogmas limitados ao tempo.

O “indivíduo” soberano e autossuficiente não vem constituindo uma base segura para fundamentar uma perspectiva libertária de esquerda. Como observou uma vez Max Horkheimer,

a individualidade é prejudicada quando cada homem decide falar em sua própria defesa. [. . .] O indivíduo absolutamente isolado sempre foi uma ilusão. As qualidades pessoais mais estimadas, tais como a independência, o desejo pela liberdade, a simpatia e o senso de justiça são virtudes tão sociais quanto individuais. O indivíduo completamente desenvolvido é a realização de uma sociedade completamente desenvolvida. [86]

Se um projeto de sociedade futura da esquerda libertária não tem como objetivo desaparecer em uma promiscuidade boêmia e marginal, ele deve, necessariamente, oferecer uma solução para os problemas sociais, e não pular de um slogan para outro, protegendo-se da racionalidade por meio da poesia ruim e dos desenhos vulgares. A democracia não é antitética ao anarquismo; as decisões pela maioria e não consensuais também não são incompatíveis com uma sociedade libertária.

Deveria estar claro para qualquer um que não tenha sido entorpecido por Stirner ou por outros de seu tipo, que nenhuma sociedade pode existir sem estruturas institucionais. Ao negar as instituições e a democracia, o anarquismo de estilo de vida isola-se da realidade social, de maneira a poder enfurecer-se com tudo, a partir de uma raiva fútil, continuando, assim, a ser uma travessura subcultural para ingênuos jovens e entediados consumidores de roupas pretas e pôsteres excitantes. Defender que a democracia e o anarquismo são incompatíveis, justificando que qualquer impedimento dos desejos, mesmo que seja de “uma minoria de uma pessoa”, constitui uma violação da autonomia pessoal, não significa defender uma sociedade livre, mas o “agrupamento de indivíduos” de Brown — em resumo, um bando. A “imaginação” nunca alcançará o “poder”. O poder, que sempre existirá, pertencerá ou ao coletivo, em uma democracia cara a cara e claramente institucionalizada, ou aos egos de poucos oligarcas que produzirão uma “tirania da falta de estrutura”.

Não sem justificativa, Kropotkin, em seu artigo da Encyclopaedia Britannica, considera o único [ego] stirneriano hierárquico, e por isso o despreza, acusando-o de ser elitista. Ele citou, com aprovação, a crítica que V. Basch fez do anarquismo individualista de Stirner, classificando-o como uma forma de elitismo e sustentando

que o propósito de toda civilização superior é não permitir que todos os membros da comunidade desenvolvam-se de forma normal, mas permitir que certos indivíduos mais capacitados “desenvolvam-se completamente”, mesmo que isso aconteça às custas da felicidade e da vida das massas da humanidade.

No anarquismo, isso produz uma regressão

rumo ao individualismo mais comum, defendido por todas as pretensas minorias superiores, a quem, na realidade, o homem deve, em sua história, o Estado e todo o resto das coisas que esses individualistas combatem. Seu individualismo vai tão longe que acaba em uma negação do seu próprio ponto de partida — para não falar da impossibilidade do indivíduo em alcançar um desenvolvimento realmente completo nas condições de opressão das massas pelas “belas aristocracias”. [87]

Em seu amoralismo, esse elitismo facilmente se presta ao aprisionamento das “massas”, pois, no fim das contas, acaba por prendê-las aos “únicos”, em uma lógica que pode produzir um princípio de liderança característico da ideologia fascista. [88]

Nos Estados Unidos e em grande parte da Europa, justamente no momento em que a desilusão massiva com relação ao Estado atingiu imensas proporções, o anarquismo está recolhido. A insatisfação com o governo cresce em ambos os lados do Atlântico — raramente, na memória recente, houve um sentimento popular de atração para uma nova forma de fazer política, ou mesmo para uma nova repartição social que pudesse dar ao povo um senso de direção, levando em conta a segurança e o significado ético. Se tivéssemos de apontar somente um motivo para o fracasso do anarquismo em aproveitar essa oportunidade, deveríamos responsabilizar o anarquismo de estilo de vida, por razão de seu isolamento e de seus fundamentos individualistas, que impedem um potencial movimento libertário da esquerda de participar de uma esfera pública já bastante reduzida.

O anarcossindicalismo possui seus méritos e, em seu apogeu, buscou engajar-se em uma prática cotidiana e criar um movimento organizado — também estranho ao anarquismo de estilo de vida — da classe operária. Seus maiores problemas não estão nos seus desejos pela estrutura, pelo envolvimento, por um programa e pela mobilização social, mas no declínio da classe operária enquanto sujeito revolucionário, em particular após a Revolução Espanhola. Dizer que o anarquismo é contra a política — concebida em seu significado original grego, como a autogestão da comunidade; a histórica “comuna das comunas” —, significa repudiar uma prática histórica e transformadora, que busca radicalizar a democracia, inerente a qualquer república, e criar um poder municipalista confederal para contrapor o Estado.[89]

O aspecto mais criativo do anarquismo tradicional é o seu compromisso com quatro princípios básicos: a confederação de municipalidades descentralizadas, a firme oposição ao estatismo, a crença na democracia direta e o projeto de uma sociedade comunista libertária. A questão mais importante que a esquerda libertária — o socialismo libertário e o anarquismo — enfrenta hoje é: o que fazer com esses quatro importantes princípios? Como daremos a eles forma e conteúdo social? De que maneiras e por que meios faremos com que eles sejam relevantes para nossa época, colocando-os a serviço de um movimento popular organizado pela capacitação e pela liberdade?

O anarquismo não deve ser dissolvido em comportamentos autoindulgentes como o dos adamitas[90] primitivistas do século XVI, que “perambulavam nus nas florestas, cantando e dançando”, como observou desdenhosamente Kenneth Rexroth, investindo “seu tempo em uma ininterrupta orgia sexual” até serem perseguidos por Jan Zizka e exterminados — para a satisfação de uma repugnante classe agrária, cujas terras eles haviam pilhado.[91] O anarquismo não deve recolher-se à promiscuidade dos John Zerzan e dos George Bradford. Eu seria o último a afirmar que os anarquistas não devem viver seu anarquismo no dia a dia, o quanto for possível — pessoal e socialmente; estética e pragmaticamente. Mas não devem viver um anarquismo que diminua, ou na realidade que apague, os aspectos mais importantes que têm diferenciado o anarquismo, como movimento, prática e programa, do socialismo estatista. O anarquismo hoje deve conservar, com firmeza, seu caráter de movimento social — um movimento social militante e programático —, um movimento que declara seu projeto combativo por uma sociedade comunista libertária, com sua franca crítica ao capitalismo, o qual vem sendo obscurecido por termos como “sociedade industrial”.

Em resumo, o anarquismo social deve afirmar, resolutamente, suas diferenças com o anarquismo de estilo de vida. Se um movimento social anarquista não puder traduzir seus quatro princípios — confederalismo municipal, oposição ao estatismo, democracia direta e comunismo libertário — em uma prática cotidiana, em uma nova esfera pública; se esses princípios se enfraquecerem como memórias de lutas passadas por meio de declarações e encontros cerimoniais; pior ainda, se eles forem subvertidos pela indústria do êxtase “libertária” e pelos teísmos asiáticos quietistas, seu centro socialista revolucionário terá de ser restabelecido sob um novo nome.

É certo que já não é mais possível, do meu ponto de vista, chamar alguém de anarquista sem adicionar um adjetivo qualificativo que o distinga dos anarquistas de estilo de vida. Minimamente, o anarquismo social está em imenso desacordo com o anarquismo que se baseia prioritariamente no estilo de vida, na invocação neossituacionista do êxtase e na soberania do ego pequeno-burguês, cada vez mais decadente. Os dois divergem completamente em seus princípios de definição — socialismo ou individualismo. Entre um corpo revolucionário comprometido de ideias e práticas, e o anseio vagabundo do êxtase e da autorrealização privados, nada pode haver em comum. A mera oposição ao Estado pode muito bem unir o lúmpen fascista com o lúmpen stirneriano, fenômeno que não deixa de ter precedentes históricos.

1 de junho de 1995[92]

[1] Optamos pela tradução de “lifestyle anarchism” como “anarquismo de estilo de vida”, ainda que a tradução pareça literal e que haja correspondentes mais adequados na língua portuguesa — “anarquismo comportamental”, “anarquismo comportamentista”, “anarquismo de fachada”, entre outros. Nossa opção pelo “anarquismo de estilo de vida” e suas variáveis deu-se por esta ser uma expressão já em utilização no Brasil. [N. do T.]

[2] Industrial Workers of the World, sindicato revolucionário dos Estados Unidos que existe desde 1905. [N. do T.]

[3] Tradição ultraliberal dos Estados Unidos também conhecida por libertarianismo ou libertarismo. Defende o pensamento liberal clássico, reforçando valores como a propriedade privada e as liberdades civis. É contra o Estado (principalmente no que diz respeito à intervenção estatal), mas não contra o capitalismo. Seus defensores são chamados nos eua de “libertários de direita” ou “anarcocapitalistas”. [N. do T.]

[4] G. P. Maximoff (org.). The Political Philosophy of Bakunin. Glencoe: Free Press, 1953, p. 144.

[5] Ibidem, p. 158.

[6] Peter Kropotkin. “Anarchism” (artigo da Encyclopaedia Britannica). In: Roger N. Baldwin (org.). Kropotkin’s Revolutionary Pamphlets. Nova York: Dover Publications, 1970, pp. 285–287

[7] O anarcossindicalismo remonta, na verdade, às noções de “grande feriado” ou de greve geral, propostas pelos cartistas ingleses. Entre os anarquistas espanhóis, ele já era uma prática aceita desde os anos 1880; mais ou menos uma década antes de ser conceituado como doutrina na França.

[8] Traduziremos o termo inglês “ego” ora como “ego”, ora como “único”. A obra de Max Stirner, originalmente escrita em alemão (Der Einzige und sein Eigentum), utiliza o termo “único” (Einzige) e não “ego”. No entanto, o nome do livro de Stirner em inglês é The Ego and His Own, o que modifica o substantivo “único” para “ego”, já que o termo “unique”, “único”, em inglês, serve apenas como adjetivo. Portanto, ainda que Bookchin utilize sempre o termo “ego”, quando se tratar das referências a Stirner faremos a tradução como “único”, conforme o livro em português. Max Stirner. O único e sua propriedade (trad. João Barrento). São Paulo: Martins Fontes, 2009). [N. do T.]

[9] Publicado em inglês em 1953, três anos após a morte de Maximoff ; a data da compilação original, não disponível na tradução para o inglês, pode ser de anos ou mesmo de décadas antes.

[10] Com todos os seus defeitos, a contracultura anárquica do início dos conturbados anos 1960 era bastante politizada. Ainda que utilizasse expressões como desejo e êxtase, ela era uma utilização eminentemente social, que muitas vezes ridicularizava as tendências personalistas da última geração Woodstock. A transformação da “cultura jovem”, como era originalmente chamada, forjada no início dos movimentos pelos direitos civis e pacifistas, naquilo que foram Woodstock e Altamont, juntamente com sua ênfase numa forma de “prazer” puramente autocomplacente, reflete-se na regressão do Dylan de “Blowin' in the Wind” para o de “Sad-Eyed Lady of the Lowlands”

[11] Alusão aos eventos do final da década de 1960, como o Human Be-In, retomando os sit-ins utilizados pelos movimentos sociais desde a década de 1930. [N. do T.]

[12] Katinka Matson. “Preface”. In: The Psychology Today Omnibook of Personal Development. Nova York: William Morrow&Co., 1977

[13] Baby boomers: indivíduos nascidos durante o período de alta natalidade, especificamente na Inglaterra e nos EUA, de 1945 a 1952. Geração X: referência à geração de pessoas nascidas no início dos anos 1970, que viram os pais hippies tornando-se yuppies, e atingiram a maioridade no final do século XX. [N. do E.]

[14] Michel Foucault. The History of Sexuality, vol. 1 (trad. Robert Hurley). Nova York: Vintage Books, 1990, pp. 95–96. TH

[15] A filiação filosófica deste eu e sua trajetória remonta a Kant através de Fichte. A posição de Stirner sobre o único [ego] é uma simples e grosseira mutação do eu kantiano, e particularmente do fichteano, marcada mais pela dominação do que pela compreensão.

[16] Em uma nota deste capítulo, que estava um pouco mais à frente, Bookchin colocou: “Infelizmente, nas línguas românicas, em geral se traduz liberdade [freedom], por uma palavra derivada de libertas, do latim — liberté, em francês; libertà, em italiano; libertad, em espanhol. No inglês, que combina raízes germânicas e latinas, é possível fazer uma distinção entre freedom e liberty, o que outras línguas não permitem. Recomendo apenas, neste caso, que escritores de outras línguas utilizem ambas palavras inglesas para manter a necessária distinção entre elas.” Por este motivo, neste capítulo, quando utilizarmos a palavra “liberdade”, manteremos entre colchetes a palavra original em inglês, “freedom” ou “liberty”, visando a compreensão da discussão. [N. do T.]

[17] Paul Goodman. “Politics Within Limits”. In: Taylor Stoehr (org.). Crazy Hope and Finite Experience: Final Essays of Paul Goodman. San Francisco: Jossey-Bass, 1994, p. 56.

[18] L. Susan Brown. The Politics of Individualism. Montreal: Black RoseBooks, 1993. O nebuloso compromisso de Brown com o anarcocomunismo parece vir mais de uma preferência visceral do que de uma análise própria.

[19] Ibidem, p. 2.

[20] Ibidem, p. 12, grifos meus.

[21] Ridicularizando o mito de que as pessoas nascem livres, Bakunin inteligentemente declarou: “Como são ridículas as ideias dos individualistas da escola de Jean-Jacques Rousseau e dos mutualistas proudhonianos, que concebem a sociedade como resultado de um contrato livre de indivíduos absolutamente independentes uns dos outros, que entram em relação mútua só em decorrência de uma convenção definida entre os homens. Como se esses homens tivessem caído do céu, trazendo consigo a fala, a vontade, o pensamento original, como se fossem alheios a tudo na Terra, isto é, a tudo o que possui origem social.” G. P. Maximoff (org.). Op. cit., p. 167.

[22] L. Susan Brown. Op. cit., p. 53.

[23] Provável referência ao artigo de Jô Freeman, traduzido para o português como “A tirania das organizações sem estrutura”. [N. do T.]

[24] Por fim, Brown equivoca-se na leitura de Bakunin, de Kropotkin e de meus próprios escritos — um erro de leitura que demandaria uma discussão detalhada, visando corrigi-la. Naquilo que me diz respeito, não acredito em “ser humano natural”, conforme afirma Brown, e também não compartilho de seu compromisso arcaico com as “leis naturais” (p. 159). O conceito de “lei natural” pode ter sido útil na era das revoluções democráticas do século XVIII, mas é um mito filosófico, cujas premissas morais não possuem mais substância na realidade do que a profunda intuição ecológica do “valor intrínseco”. A “segunda natureza” da humanidade (evolução social) transformou de maneira tão ampla a “primeira natureza” (evolução biológica), que a palavra natural deveria ser utilizada com um cuidado maior do que o de Brown. Sua alegação de que eu acredito que a “liberdade [freedom] é inerente à natureza” ignora, grosseiramente, minha distinção entre potencialidade e atualização (p. 160). Para um esclarecimento dessa minha distinção entre a potencialidade para a liberdade [freedom] na evolução natural e sua atualização, ainda incompleta, na evolução social, o leitor deve consultar a segunda edição revisada de meu The Philosophy of Social Ecology: Essays in Dialectical Naturalism, 2ª ed., Montreal: Black Rose Books, 1995

[25] Pano usado como vestuário pelos habitantes da Malaia. [N. do T.]

[26] Edição brasileira: Hakim Bey. Taz (trad. Renato Rezende e Patricia Decia). São Paulo: Conrad, 2001. [N. do T.]

[27] Hakim Bey. TAZ: The Temporary Autonomous Zone, Ontological Anarchism, Poetic Terrorism. Nova York: Autonomedia, 1985, 1991. O individualismo de Bey pode muito bem lembrar aquele do final da vida de Fredy Perlman e o de seus acólitos anticivilizatórios e primitivistas da Fifth Estate de Detroit, com a exceção de que TAZ, de modo um tanto confuso, clama por um “paleolitismo psíquico baseado na alta tecnologia” (p. 44).

[28] Ibidem, p. 128

[29] Royaume: reino, em francês no original. L’etat, c’est moi: eu sou o Estado, em francês no original. [N. do T.]

[30] Hakim Bey. Op. cit., p. 67.

[31] Ibidem, p. 4.

[32] Ibidem, p. 88.

[33] Ibidem, p. 63.

[34] Ibidem, p. 101

[35] Maio, em irlandês antigo, mês da primavera celebrado pelos celtas. [N. do T.]

[36] Termo usado nos Estados Unidos para descrever a política do Estado forte e grande. [N. do T.]

[37] “TAZ”. In: The Whole Earth Review, 1994, p. 61

[38] Abadia da obra de François Rabelais, Gargantua. [N. do T.]

[39] Principal agenda cultural de Nova York. [N. do T.]

[40] Cf. Jose Lopez-Rey. Goya’s Capriccios: Beauty, Reason and Caricature, vol. 1. Priceton: Priceton University Press, 1953, pp. 80–81.

[41] George Bradford. “Stopping the Industrial Hydra: Revolution Against the Megamachine”. In: The Fifth Estate, vol. 24, núm. 3, 1990, p. 10.

[42] O deslocamento do foco do capitalismo para a máquina, e portanto o desvio da atenção do leitor das relevantes relações sociais que determinam o uso da tecnologia para a tecnologia em si, aparece em praticamente toda a literatura antitecnológica dos séculos XIX e XX. Jünger fala em nome de quase todos os autores do gênero ao observar que “o progresso da técnica aumentou, de forma constante, a quantidade total de trabalho, e é por isso que o desemprego espalha-se tanto, quando as crises e as perturbações afligem a organização do trabalho mecânico”. Cf. Friedrich Georg Jünger. The Failure of Technology. Chicago: Henry Regnery Company, 1956, p. 7

[43] George Bradford. Op. cit., p. 10.

[44] Jacques Ellul. The Technological Society. Nova York: Vintage Books, 1964, p. 430.

[45] George Bradford. Op. cit., p. 20.

[46] Idem. “Civilization in Bulk”. In: The Fifth Estate, 1991, p. 12.

[47] Lewis Mumford. Technics and Civilization. Nova York e Burlingame: Harcourt Brace & World, 1963, p. 301

[48] Ibidem, p. 324.

[49] Ibidem.

[50] Idem. The Pentagon of Power, vol. 2. Nova York: Harcourt Brace Jovanovich, 1970, legendas das ilustrações 13 e 26. Esta obra em dois volumes tem sido, com frequência, mal-interpretada ao ser entendida como um ataque à tecnologia, à racionalidade e à ciência. Na verdade, conforme indicado em seu prólogo, a obra contrapõe a megamáquina, como modo de organizar o trabalho humano — e, sim, as relações sociais — às conquistas da ciência e da tecnologia, as quais Mumford normalmente aprovava, colocando-as no mesmo contexto social que é subestimado por Bradford.

[51] Peter Kropotkin. “Anarchism”. Op. cit., p. 285.

[52] Qualquer um que nos aconselhe, de modo significativo, e até drástico, a reduzir o uso de tecnologia está aconselhando também, pela lógica, a voltarmos à “Idade da Pedra” — pelo menos até o Neolítico ou o Paleolítico (Inferior, Médio ou Superior). Em resposta ao argumento de que não podemos voltar ao “mundo primal”, Bradford não ataca o argumento, mas quem o criou: “Engenheiros de corporações e críticos de esquerda do capitalismo ou sindicalistas” descartam “qualquer outra perspectiva de dominação tecnológica, [... ] colocando-as como ‘regressivas’ e como um desejo ‘tecnofóbico’ de voltar à Idade da Pedra”, coloca ele (CIB, nota 3). Deixarei de lado a falácia de que favorecer o avanço tecnológico em si implica favorecer o aumento da “dominação”, provavelmente de pessoas e da natureza não humana. “Engenheiros de corporações e críticos de esquerda do capitalismo ou sindicalistas” não têm, de maneira alguma, a mesma visão sobre a tecnologia e sua utilização. Tendo em vista que “críticos de esquerda do capitalismo ou sindicalistas” estão envolvidos em uma séria oposição de classe ao capitalismo, seu fracasso, hoje em dia, na criação de um movimento amplo de trabalhadores é algo trágico, que deve ser lamentado e não motivo de comemoração.

[53] George Bradford. “Civilization in Bulk”. In: The Fifth Estate, p. 10.

[54] O texto das conferências foi publicado em: Richard B. Lee e Irven DeVore (orgs.). Man the Hunter. Chicago: Aldine Publishing Co., 1968

[55] “What Hunters Do for a Living, or, How to Make Out in Scarce Resources”. In: Lee e DeVore. Op. cit., p. 43.

[56] Ver, especialmente: Paul Radin. The World of Primitive Men. Nova York: Grove Press, 1953, pp. 139–50.

[57] John Zerzan. Future Primitive and Other Essays. Nova York: Autonomedia, 1994, p. 16. O leitor que confiar na pesquisa de Zerzan pode procurar fontes importantes como “Cohn (1974)” e “Clark (1979)” (Cf. as páginas 24 e 29) em sua bibliografia — na qual nenhum deles consta.

[58] Ibidem, pp. 23–24

[59] Ibidem, pp. 27–28, grifos meus.

[60] A literatura sobre esses aspectos da vida pré-histórica é vasta. Anthony Legge e Peter A. Rowly (“Gazelle Killing in Stone Age Syria”. In: Scientific American, vol. 257, 1987, pp. 88–95) mostram que animais migratórios podem ter sido dizimados com o poder devastador e efetivo do uso de currais. O estudo clássico dos aspectos pragmáticos do animismo é: Bronislaw Malinowski. Myth, Science and Religion. Garden City: Doubleday, 1954. A antropomorfização manipulativa é evidente nos muitos relatos de transmigração do domínio humano para o não humano, alegada pelos xamãs, como nos mitos makuna relatados em: Kaj Arhem. “Dance of the Water People”. In: Natural History, janeiro de 1992.

[61] Sobre os pigmeus, ver: Colin M. Turnbull. The Forest People: A Study of the Pigmies of the Congo. Nova York: Clarion/Simon and Schuster, 1961, pp. 101–102. Sobre os esquimós, ver: Gontran de Montaigne Poncin. Kabloona: A White Man in the Arctic Among the Eskimos. Nova York: Reynal & Hitchcock, 1941, pp. 208–209, assim como muitas outras obras sobre a cultura tradicional esquimó.

[62] A hipótese de que muitas pastagens do mundo foram feitas com o fogo, provavelmente desde o Homo erectus, está difundida na literatura antropológica. Um excelente estudo é: Stephen J. Pyne. Fire in America. Princeton: Princeton University Press, 1982. Cf. também: William M. Denevan. In: Annals of the American Association of Geographers, setembro de 1992. Cf. William K. Stevens. “An Eden in Ancient America? Not Really”. In: The New York Times, 30 de março de 1993, p. c1.

[63] Sobre o acalorado debate sobre as “matanças”, ver: P. S. Martin e H. E. Wright Jr. (orgs.). Pleistocene Extinctions: The Search for a Cause. New Haven: Yale University Press, 1967. Os argumentos da discussão sobre os fatores climáticos e/ou as matanças humanas terem levado às extinções massivas de cerca de 35 gêneros de mamíferos do Pleistoceno são complexos demais para serem expostos aqui. Ver: P. S. Martin. “Prehistoric Overkill”. In: P. S. Martin e H. E. . Wright Jr. (orgs.). Op. cit. Tratei de alguns desses argumentos em: Murray Bookchin. “Introduction”. In: The Ecology of Freedom. Montreal: Black Rose Books, 1991. As provas ainda estão sendo debatidas. Mastodontes, que já foram considerados animais de ambiente restrito, hoje se sabe, foram ecologicamente muito mais flexíveis e podem até ter sido mortos por paleoíndios caçadores, provavelmente com muito menos pena do que os ambientalistas românticos gostariam de acreditar. Não defendo que apenas a caça teria levado esses grandes mamíferos à extinção — mas uma quantidade considerável de mortes deve-se a isso. Um resumo dos deslocamentos de bisões por arroios pode ser consultado em: Brian Fagan. “Bison Hunters of the Northern Plains”. In: Archaeology, maio–junho de 1994, p. 38.

[64] Karl W. Butzer. “No Eden in the New World”. In: Nature, vol. 82, 4 de março de 1993, pp. 15–17.

[65] T. Patrick Cuthbert. “The Collapse of Classic Maya Civilization”. In: Norman Yoffee e George L. Cogwill (orgs.). The Collapse of Ancient States and Civilizations. Tucson: University of Arizona Press, 1988 /Joseph A. Tainter. The Collapse of Complex Societies. Cambridge: Cambridge University Press, 1988, capítulo 5

[66] É estranho que me digam outra vez — agora é L. Susan Brown — que minha “evidência de sociedades ‘orgânicas’ sem nenhuma hierarquia permanece em questão” (grifos meus, p. 160). Se Marjorie Cohen, que Brown cita como exemplo, acha “pouco convincente” dizer que “a simetria sexual e a igualdade plena” podem ser demonstradas consistentemente, com base em “evidências antropológicas” reais, ou que “a divisão do trabalho de acordo com o sexo” não é necessariamente “compatível com a igualdade sexual plena” — tudo o que posso dizer é: pois bem! Eles já não estão aqui para nos falar sobre isso, muito menos para nos dar evidências “convincentes” de qualquer coisa. O mesmo pode ser dito das relações de gênero, conforme sugeri em The Ecology of Freedom. Na verdade, todas as “evidências antropológicas” contemporâneas em relação à “simetria sexual” são discutíveis, pois os aborígines modernos, para o bem ou para o mal, foram condicionados pelas culturas europeias, muito antes de os modernos antropólogos terem contato com eles. O que tentei expor nesse livro é uma dialética da igualdade e da desigualdade dos gêneros, não um relato definitivo da pré-história — cujo conhecimento perdeu-se para sempre, tanto para Brown e Cohen, quanto para mim. Utilizo dados modernos em termos especulativos: para mostrar que minhas conclusões são razoáveis, coisa que Brown descarta intempestivamente em duas frases, sem embasar-se em dado algum. Quanto à referência de Brown à minha falta de “evidências” sobre o modo como surgiram as hierarquias, materiais recentes sobre a Mesoamérica, posteriores à decifração dos pictogramas maias, sustentam minha reconstrução do surgimento da hierarquia. Por fim, quanto à gerontocracia, cuja precedência eu enfatizo como sendo provavelmente uma das primeiras formas de hierarquia, trata-se de um dos desenvolvimentos hierárquicos mais comuns descritos pela literatura antropológica.

[67] Clifford Geertz. “Life on the Edge”. In: The New York Review of Books, 7 de abril de 1994, p. 3.

[68] Alce Negro, índio sioux, em lakota, Hehaka Sapa, 1863–1950. [N. do T.]

[69] Como aponta William Powers, o livro “Black Elk Speaks foi publicado em 1932. Não há nele qualquer sinal da vida cristã de Black Elk”. Para um completo desmascaramento do atual fascínio com a história de Black Elk, ver: William Powers. “When Black Elk Speaks, Everybody Listens”. In: Social Text, vol. 8, núm. 2, 1991, pp. 43–56.

[70] Edwin N. Wilmsen. Land Filled With Flies. Chicago: University of Chicago Press, 1989, p. 127.

[71] Edwin N. Wilmsen. Op. cit., p. 3.

[72] Ally Maclean Stearman. Yuquí: Forest Nomads in a Changing World. Fort Worth / Chicago: Holt, Rinehart and Winston, 1989, p. 23

[73] Ibidem, pp. 80–81.

[74] Edwin N. Wilmsen. Op. cit., pp. 235–239 e 303–15

[75] Para estatísticas impressionantes, ver: Corine Shear Wood. Human Sickness and Health: A Biocultural View. Palo Alto: Mayfield Publishing Co. , 1979, pp. 17–23. Os Neandertais — que, longe de serem “malignos” como gostaria Zerzan, vêm recebendo uma cobertura maravilhosa por parte da imprensa atualmente — são generosamente tratados em: Cristopher Stringer e Clive Gamble. In Search of the Neanderthals. Nova York: Thames and Hudson, 1993. Contudo, os autores concluem: “O alto índice de doenças degenerativas nos joelhos, entre os Neandertais, talvez não seja uma surpresa, diante do que sabemos sobre suas duras vidas, sobre o cansaço e os excessos a que seus corpos eram submetidos. Mas a prevalência de lesões graves é ainda mais surpreendente, e indica como era perigoso viver,mesmo para os que não chegavam à ‘velhice’ nas sociedades neandertais” (pp. 94–95). Alguns indivíduos pré-históricos sem dúvida chegaram aos setenta anos, como os coletores que ocuparam os pântanos da Flórida há cerca de 80 mil anos, mas são raras exceções. Somente um primitivista empedernido se agarraria a essas exceções e faria delas uma regra. Ah, sim — as condições são terríveis para a maioria das pessoas na civilização. Mas quem está dizendo que a civilização é conhecida pela alegria geral, pelos banquetes e pelo amor?

[76] Ver, por exemplo: Robert J. Blumenschine e John A. Cavallo. “Scavenging and Human Evolution”. Scientific American, outubro de 1992, pp. 90– 96.

[77] Paul A. Janssens. Paleopathology: Diseases and Injuries of Prehistoric Man. Londres: John Baker, 1970.

[78] Corine Shear Wood. Op. cit., p. 20

[79] E. B. Maple. “Fifth Estate Enters the 20th Century. We Get a Computer and Hate It!”. The Fifth Estate, vol. 28, núm. 2, 1993, pp. 6–7.

[80] Alusão à revista Anarchy: A Journal of Desire Armed. [N. do T.]

[81] Cf. The New York Times, 7 de maio de 1995. Pessoas menos sacrossantas do que Zerzan vêm tentando escapar do jugo da televisão e têm prazer com boa música, programas de rádio, livros e outras coisas do tipo. Elas apenas não compram essas coisas!

[82] Max Stirner. “My Self-Engagement”. In: James Martin (org.). The Ego and His Own. Nova York: Libertarian Book Club, 1963, p. 352, grifos meus

[83] Friedrich Nietzsche. “On Truth and Lie in an Extra-Moral Sense” (fragmento de 1873). In: The Portable Nietzsche, Walter Kaufman (org.). Nova York: Viking Portable Library, 1959

[84] Idem. “Fragmento 481” (1883–1888). The Will to Power. Nova York: Random House, 1967, p. 267.

[85] James J. Martin. “Introduction”. In: Max Stirner. Op. cit., p. xviii.

[86] Max Horkheimer. The Eclipse of Reason. Nova York: Oxford University Press, 1947, p. 135.

[87] Kropotkin, “Anarchism”. Op. cit., pp. 287, 293.

[88] Ibidem, pp. 292–293.

[89] Em sua repugnante resenha de meu livro The Rise of Urbanization and the Decline of Citizenship (publicado depois com o nome de Urbanization Without Cities), John Zerzan repete a falácia de que a Atenas clássica vem sendo “há muito tempo o modelo de Bookchin para a revitalização da política urbana”. Na verdade, foi com muito trabalho que indiquei os fracassos da pólis ateniense (escravidão, patriarcado, antagonismos de classe e guerra). Meu lema: “Democratize a república, radicalize a democracia”, que aponta para a república — com o objetivo explícito de criar um poder dual — é cinicamente truncado e transformado em outra coisa. “Devemos, ele [Bookchin] aconselha, lentamente expandir as ‘instituições existentes’ e ‘tentar democratizar a república’”. Essa manipulação enganosa de ideias é louvada por Lev Chernyi (vulgo Jason McQuinn), membro do Anarchy: A Journal of Desire Armed e da Alternative Press Review, em seu prefácio encorajador do Futuro Primitivo de Zerzan.

[90] Hereges que imitavam a nudez de Adão antes do pecado original. [N. do T.]

[91] Kenneth Rexroth. Communalism. Nova York: Seabury Press, 1974, p. 89.

[92] Eu gostaria de agradecer minha amiga e companheira Janet Biehl por sua inestimável ajuda na pesquisa de material para este texto.