Murray Bookchin
Nacionalismo e a Questão Nacional
Introdução Crítica: Sobre o Internacionalismo
Por Insubordinados!
Diante dos recentes acontecimentos envolvendo a invasão Russa na Ucrânia, a chamada “questão nacional” volta como nunca ao centro dos debates na esquerda. Obviamente, debater esse assunto também leva a confusões e mistificações, especialmente em uma esquerda tão presa ainda ao século XX como a Brasileira. Antes de mais nada, é preciso prestar solidariedade aos ucranianos e russos, mais precisamente, todos as classes submetidas ao jugo violento de suas respectivas burguesias e burocracias de estado. Esses são os que mais estão sofrendo nesse evento lamentável da história humana. E não apenas a eles, mas também todos os que são oprimidos constantemente no mundo em guerras perpetuadas por elites econômicas e poderes estatais, cujos interesses geram alguns dos mais covardes genocídios, que não se limitam ao conflito no leste europeu. Aliás, é notável como a mídia tradicional tende a transformar em “espetáculo” os eventos de guerra na europa, enquanto normaliza a violência perpetrada contra outros povos, ao extremo de ver declarações explicitamente xenófobas e racistas como a fala do ex-procurador ucraniano que lamenta ver “europeus de olhos azuis sendo mortos” . [1]
Ou ainda a lamentável fala do correspondente da CBS estadunidense Charlie D’agata dizendo que a Ucrânia é “diferente” do Iraque e do Afeganistão por ser “mais civilizada”. [2]
Tais falas só mostram que a mentalidade colonizadora está longe de ter sido dissipada. Existe uma espécie de solidariedade seletiva, especialmente porque diariamente os conflitos na África e no Oriente Médio como o ataque aos palestinos em Israel tem constantemente gerado vítimas nas cifras dos milhões, além de uma série de violentos abusos aos direitos humanos mais basilares, e são tratados como mera estatística. Sem dúvida que esses povos taxados como “bárbaros” pela mentalidade colonizadora do centro capitalista, são algumas das piores vítimas das forças hegemônicas que perpetuam esses conflitos.
Dessa forma, é possível ver também a forma anacrônica e mistificada com que a esquerda lida com a questão do conflito Ucrânia e Russia. É certo que o governo ucraniano perpetua os interesses ocidentais em seu território, da OTAN e dos EUA, e é certo também o caráter nacionalista e o flerte com milícias fascistas (vide o batalhão Azov). [3] Por outro lado, a Rússia está longe de qualquer interesse “humanizado” e também precisa ser responsabilizada. A esquerda brasileira, herdeira de um nacionalismo terceiro-mundista tacanho e um anti-americanismo ingênuo e mal trabalhado, tende a achar que existe uma opção em “defender” um estado-nação em detrimento de outro. A ideia de defender o estado russo como “anti-fascista” ou “anti-imperialista” não poderia ser mais absurda, visto que além da já conhecia agenda conservadora de Putin, o que movimenta as ações do governo russo são os interesses justificados pela ideologia do neo-eurasianismo, uma ideologia reacionária e tradicionalista, geralmente perpetuada pelas ideias do “guru de Putin”, o intelectual classificado como fascista, Alexsandr Dugin. [4]
E é justamente o duginismo que tem se infiltrado na esquerda brasileira, aproveitando os resquícios da retórica nacionalista de guerra fria e do stalinismo, pra usurpar os interesses internacionalistas da esquerda original e substituir pela defesa de estados nação e de políticas regressivas e reacionárias. [5]
Nesse contexto, a crítica feroz e sem concessões de Murray Bookchin aos estados-nação se faz pertinente. É preciso resgatar os valores internacionalistas da esquerda original, que propõe a união e comunidade de todos os povos, um universalismo que não deve obviamente suplantar mecanicamente as características gerais de um povo, mas mostrar que apesar das diferenças, a solidariedade das classes subjugadas pelo capitalismo deve levar a criação de uma nova sociedade mais fraterna, multi-cultural e humana, características essenciais que poderão ser alcançadas com o estabelecimento de uma sociedade autogerida que superará o capitalismo e o estado. Proletários, campesinato, povos indígenas, estudantes, grupos sociais minoritários, dentre outros, devem restaurar o senso de solidariedade internacionalista em oposição a burguesia e as características regressivas do nacionalismo.
O presente artigo foi traduzido da versão original em língua inglesa disponível em:
https://www.democracynature.org/vol2/bookchin_nationalism.htm
com as devidas notas do autor. Publicado originalmente em Democracy & Nature: The International Journal of Inclusive Democracy, Vol. 2, №2 (issue 5), (1994)
Tradução por Insubordinados! Notas de tradução no final do texto.
Referências:
[1] https://www.correiobraziliense.com.br/mundo/2022/03/4990014-e-tocante-ver-europeus-de-olhos-azuis-sendo-mortos-diz-ex-procurador.html
[2] https://noticias.uol.com.br/colunas/mauricio-stycer/2022/03/03/cobertura-da-guerra-na-ucrania-tambem-expoe-preconceitos-de-jornalistas.htm
[3] a relação do batalhão Azov com o nazismo é algo amplamente divulgado na mídia tradicional: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-60823639
[4] http://elcoyote.org/o-fascismo-ocultista-de-dugin-e-o-sequestro-do-anti-imperialismo-da-esquerda-e-do-anti-salafismo-muculmano/
[5] http://elcoyote.org/a-infiltracao-neofascista-no-pdt/
II — Os Limites de Bookchin
Obviamente, que estamos de acordo a muito do que foi dito por Bookchin, mas é certo que se faz necessária uma análise crítica e ressalvas ao seu pensamento. Uma característica primordial de Bookchin é seu declarado humanismo radical, de herança iluminista/hegeliana, cujos limites não seria pertinente tratar aqui pra não se desviar do foco do artigo. É certo que muitas críticas são dirigidas a maneira geralmente eurocentrada de seu desenvolvimento teórico. Enxergando uma “lógica da história” e um desenvolvimento unilateral que tem a europa como centro, o autor ignora e quando não, contrapõe equivocadamente sociedades em detrimento de outras. Desse modo, nos propomos a criticar primeiramente esse ponto de sua teoria. Obviamente, que essas críticas não são passíveis de nenhum sectarismo. A exemplo das críticas direcionadas a Bookchin pelo também ecologista social Modibo Kadalie, que escreve:
“É importante reconhecer as limitações de Bookchin. Seu retrato frequente da chamada revolução americana como uma revolução social, similar as revoluções da França e no Haiti é problemática, pra dizer o mínimo. A revolução americana foi uma rebelião das elites coloniais que queriam preservar a instituição da escravidão africana contra o movimento abolicionista emergente na Inglaterra e também invadir mais territórios indígenas a oeste. Africanos que vivam na América do Norte, fossem escravos ou livres, aliaram-se esmagadoramente com os britânicos naquele conflito.
Assim como os cherokee, os muskogee e a maioria das nações Iroquesas, que na verdade estavam praticando uma forma de democracia direta como a idealizada por Bookchin.” [1]
Interessante o destaque dado a Kadalie acerca das nações indígenas e como elas se organizavam num modelo próximo da democracia direta, uma vez que no presente artigo, Bookchin chega a citar os Iroqueses, de forma crítica:
“A guerra era endêmica entre nossos ancestrais pré-históricos e em comunidades nativas posteriores, não obstante o status elevado, quase cultual, desfrutado pelos ostensivamente pacíficos “aborígenes ecológicos” entre os euro-americanos brancos de classe média hoje. Quando grupos forrageadores caçavam em seu território habitual, como muitas vezes acontecia, eles geralmente estavam mais do que dispostos a invadir a área de um grupo vizinho e reivindicar seus recursos para si. Comumente, após o surgimento das sociedades guerreiras, a guerra adquiriu atributos culturais e econômicos, de modo que os vitoriosos não mais apenas derrotaram seus “inimigos” reais ou escolhidos, mas virtualmente os exterminaram, como testemunha a destruição quase genocida dos índios Hurun por seus primos iroqueses culturalmente relacionados.”
Tratar a guerra como algo “endêmico” isso é, nativo e restrito a determinado povo ou sociedade é algo etnocêntrico e bastante problemático. Obviamente, que como ele diz na parte citada, não se pode romantizar a violência perpetuada nos conflitos desses povos, que de fato, tinham estruturas sociais orientadas a guerra. Porém, ao nosso ver, essa classificação é danosa e compreende uma visão parcial e negativa acerca desses povos. Pierre Clastres, antropólogo anarquista analisou profundamente o papel da violência desses povos, e entendeu que o papel da violência não era mero “paroquialismo” conforme a associação que Bookchin tenta criar:
“Porque a fragmentação é o motor da guerra? Por que o constante estado de guerra visa justamente manter fragmentado em unidades sociopolíticas pequenas o tecido social primitivo? Porque, responde Clastres, evita a anexação de um povo por outro, o que gera a unificação, a dominação e o consequente aparecimento do Estado. O que caracteriza a sociedade primitiva em seu núcleo é a indivisibilidade de seu corpo social interno, no qual não há ricos nem pobres, não há dominantes nem dominados, e no seio do qual o poder político não se separa da sociedade.” [2]
Pode-se dizer que Clastres até concordaria com Bookchin acerca da violência desses povos, ao dizer que as “sociedades primitivas são sociedades violentas, seu ser social é um ser-para-a-guerra” [2] Porém sua análise é bem mais profunda em não meramente entender o papel da violência como isolacionismo “paroquialista”, mas como consequência de determinações concretas dentro daquela sociedade:
“Ora, se há de fato uma relação profunda entre a multiplicidade das unidades sociopolíticas e a violência, só se pode compreender sua articulação invertendo a ordem habitual em que se apresentam: não é a guerra que é o efeito da fragmentação, a fragmentação é que é o efeito da guerra. E não é somente o efeito, mas a finalidade, a guerra é ao mesmo tempo a causa e o meio de um fim buscados, a fragmentação da sociedade primitiva. Em seu ser, a sociedade primitiva quer a dispersão.” [2]
Óbvio que não se trata de uma exaltação da guerra, mas entender que a mesma entre os povos da sociedade “primitiva” é uma guerra contra a centralização e o controle, pela dispersão e pelo controle da sociedade por si mesma. Sobre essa questão, Alex Fernandes Borges complementa:
“A violência do guerreiro, quando realmente se efetiva, não é contra o inimigo na guerra, mas sim contra o próprio aliado, fora da guerra . Ao estudar os Yanomami, Clastres constatou isso, afirmando ao amigo e filósofo Bento Prado Jr que “[…] o coeficiente de violência envolvido na guerra era quase igual a zero” (PRADO JR, 2014, p. 24). Tratava se de um estado constante de ameaça e de provocações, com ataques isolados nos quais os índices de letalidade eram baixos. A verdadeira violência acontecia, por assim dizer, fora da guerra, em confraternizações com aliados, notadamente os mais distantes , onde sim a violência era real, já que consistia em exterminar todos os guerreiros aliados presentes. Essa aparente contradição pode ser explicada pela lógica da violência subjetiva nessas sociedades: como o inimigo na guerra não era capaz de representar uma ameaça real ao sistema de diferenças e fragmentações, já que nenhuma tribo dispunha em princípio de número ou tecnologias muito superiores, a verdadeira ameaça à independência eram as alianças, principalmente com aqueles que vinham de muito longe, já que demonstravam uma vontade muito grande de fazer tais alianças. Uma vez mais, o uso de violência subjetiva para impedir a instalação da objetiva, ao contrário do que se pode falar do ocidente, dentro da sociedade estabelecida com e para o Estado.” [2]
Nesse sentido, entendemos que o grande equívoco de Bookchin é atribuir a violência dos povos ameríndios um papel “paroquialista”, o que acaba demonstrando uma má compreensão do autor acerca da formação histórica e cultural dessas sociedades. O autor estadunidense ainda afirma:
“Além disso, muitos ―talvez a maioria― dos bandos ou grupos tribais consideravam humanos apenas aqueles que compartilhavam o “juramento de sangue” consigo mesmos. De fato, uma tribo muitas vezes se referia a si mesma como “o Povo”, um nome que expressava sua reivindicação exclusiva à humanidade. Outras pessoas, que estavam fora do círculo mágico dos laços sanguíneos reais ou míticos de uma tribo, eram “estranhos” e, portanto, em certo sentido, não eram seres humanos. O “juramento de sangue” e o uso do nome “o Povo” para designar a si mesmos frequentemente colocavam uma tribo contra outras que faziam a mesma reivindicação exclusiva de serem humanos e de serem “o Povo”, mesmo entre povos que compartilhavam traços linguísticos e culturais comuns.”
Maria José de Lourdes Florença, em seu trabalho acerca da formação do papel da mulher na sociedade iroquesa, reflete acerca da confederação iroquesa:
“pode-se afirmar que em Iroquoia ninguém tinha poder. Mas se, contrariamente, poder indica decidir de acordo com os seus desejos, apesar da oposição dos outros, assim como ter a capacidade de influenciar a decisão final dos Royaneh, então todos os cidadãos de Iroquoia o possuíam (…) Nesta democracia, a autoridade derivava do povo e, em especial, das mulheres. Os membros desta sociedade, fossem homens, mulheres ou mesmo os estrangeiros adoctados, tinham a liberdade e o direito de eles próprios ou através de interlocutores, exprimirem a sua opinião e levantarem questões em conselho, para que fossem debatidas e resolvidas. As decisões dos chefes do governo local e federal, eram alcançadas pelos “Royaneh” masculinos, mas condicionadas pelas mulheres “Royaneh”, que tinham como objectivo os desejos e opiniões dos membros da comunidade e da nação. Este era um sistema de “checks and balances”, em que a separação de poderes assegurava que cada grupo podia anular as acções do outro, evitando assim o poder despótico de um só grupo. [3]
Percebe-se claramente aqui que não existe nenhum “juramento de sangue” mas a constituição de direitos e deveres pactuados, inclusive com estrangeiros. Obviamente que a sociedade iroquesa e diversas sociedades de povos indígenas anteriores e posteriores tinham seus limites históricos, mas nem de longe eram sociedades “paroquiais” como taxadas aqui. Obviamente, que parte dessas taxações também pode estar relacionada a historiografia dos colonizadores europeus, conhecidos por desumanizar os povos tradicionais com diversas qualificações negativas. Em detrimento das sociedades “primitivas” e “paroquiais” Bookchin apresenta a cidade, com especial ênfase a cidade grega:
“o fator isolado mais importante para erodir o paroquialismo aborígene foi o surgimento do cidade. A ascensão da cidade antiga, seja democrática como em Atenas ou republicana como em Roma, marcou uma distribuição social radicalmente nova (…) Etimologicamente, “política” deriva do grego politika, que conota uma ativamente envolvida cidadania que formula as políticas de uma comunidade ou polis e, na maioria das vezes, as executa rotineiramente no curso do serviço público. Embora a cidadania formal fosse exigida para a participação em tal política, As Pólis como a Atenas democrática celebravam sua abertura aos visitantes, particularmente a artesãos qualificados e comerciantes conhecedores de outras comunidades étnicas. Em sua famosa oração fúnebre, Péricles declarou: “Abrimos nossa cidade ao mundo e nunca, por atos estranhos, excluímos os estrangeiros de qualquer oportunidade de aprender ou observar (…)”
Esse trecho nos permite fazer um contraste, entre o “paroquialismo aborígene” que apesar de seus limites históricos, preservava uma sociedade fortemente democrática, orientada contra o estado e contra o poder, onde se estabeleciam direitos e deveres coletivos com a sociedade “cidadã” grega. Sobre isso, é interessante notar, em contraste com a confederação Iroquesa, qual era o papel de certas classes na democracia grega, como ressaltam Yvon Bourdet e Alain Guillerm:
“Esse regime democrático não era, decerto, uma democracia senão para os proprietários de escravos, aos quais não cabia outra ocupação senão a política (da qual, aliás, estavam excluídos as mulheres e os numerosos estrangeiros, mesmo sendo gregos).” [4]
É certo que apesar dos limites, a democracia grega também esboçou características da democracia direta, mas para nós, é equivocado elencar a cidade grega como “nascimento da democracia” e esquecer-se de que essa mesma democracia já se esboçava de outras formas e lugares para além da Europa. É certo que outras críticas possam ser feitas a Bookchin (como seus apontamentos, alguns corretos, outros bastante injustos com Marx e Rosa Luxemburgo ou ainda seu proselitismo em relação a sua estratégia política do “municipalismo libertário”) mas devido ao pouco espaço, acreditamos que podemos abordar esses elementos em outra oportunidade.
Referências:
[1] Mobido Kadalie, Pan African Social Ecology: Speeches, Conversations & Essays. On Our Own Authority Publishing, 2019. pg.127. Tradução por Sabotando a Máquina!
[2] Alex Fernandes Borges. “Pierre Clastres: liberdade, igualdade e… violência”
Revista Mundo Livre, Campos dos Goytacazes, v. 4, n.2, pg.12–28, ago/dez 2018
[3] Maria José de Lourdes Proença Nicolau Filipe. “O Papel da Mulher na Sociedade Iroquesa” Mestrado em Estudos Americanos. Universidade Aberta, Lisboa, 2001
[4] Yvon Bourdet, Alain Guillerm “Autogestão: Uma mudança radical” Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1976
Nacionalismo e a “Questão Nacional”
Uma das questões mais vexatórias que a esquerda enfrenta (o que quer que se defina como esquerda) é o papel desempenhado pelo nacionalismo no desenvolvimento social e pelas demandas populares por identidade cultural e soberania política. Para a esquerda do século XIX, o nacionalismo era visto principalmente como uma questão europeia, envolvendo a consolidação dos Estados-nação no coração do capitalismo. Apenas secundariamente, isso se for o caso, foi visto como uma luta anti-imperialista e presumivelmente anticapitalista como se tornaria no século XX.
Isso não significava que a esquerda do século XIX favorecesse as depredações imperialistas no mundo colonial. Na virada deste século, quase nenhum pensador radical sério, que eu saiba, considerava uma bênção as tentativas das potências imperialistas de sufocar os movimentos de autodeterminação nas áreas coloniais. A esquerda zombou e geralmente denunciou as pretensões arrogantes das potências europeias de trazer “progresso” para as áreas “bárbaras” do mundo. As opiniões de Marx sobre o imperialismo podem ter sido ambíguas, mas nunca lhe faltou uma aversão genuína pelas aflições que os povos nativos sofreram nas mãos dos imperialistas. Os anarquistas, por sua vez, eram quase invariavelmente hostis à pretensão europeia de ser o farol da civilização para o mundo.
No entanto, se a esquerda desprezava universalmente as reivindicações civilizatórias dos imperialistas no final do século passado, geralmente considerava o nacionalismo uma questão discutível. A “questão nacional”, para usar a expressão tradicional em que tais discussões eram lançadas, estava sujeita a sérias disputas, certamente no que diz respeito à tática. Mas, de acordo geral, esquerdistas não consideravam o nacionalismo, culminando na criação de estados-nação, como a dispensação final do futuro da humanidade em uma sociedade coletivista ou comunista. De fato, o único princípio sobre o qual a Esquerda pré-primeira guerra mundial e os períodos entre guerras concordaram foi a crença na humanidade compartilhada pelas pessoas, independentemente de sua participação em diferentes grupos culturais, étnicos e de gênero, e suas afinidades complementares em uma sociedade livre como seres humanos racionais com capacidade de cooperação, disposição para compartilhar recursos materiais e um fervoroso senso de empatia.
A “Internacional”, o hino compartilhado por social-democratas, socialistas e anarquistas durante e mesmo depois da revolução bolchevique, terminou com o grito emocionante: “A internacional será a raça humana”. A esquerda destacou o proletariado internacional como o agente histórico da mudança social moderna não em virtude de sua especificidade como classe, ou sua particularidade como um componente de uma sociedade capitalista em desenvolvimento, mas em virtude de sua necessidade de alcançar a universalidade para abolir sociedade de classes — isto é, como a classe impulsionada pela necessidade de remover a escravidão assalariada abolindo a escravidão como tal. O capitalismo trouxe a histórica “questão social” da exploração humana à sua forma final e mais avançada. “É o conflito final!” cantou a “Internacional”, com um sentido de compromisso universalista — um que nenhum movimento revolucionário poderia ignorar sem subverter as possibilidades de passar de uma “pré-história” de interesse de classe bárbaro para uma “história verdadeira” de uma humanidade totalmente emancipada.
No mínimo, essa era a visão compartilhada da esquerda pré-guerra e entre guerras, particularmente de suas várias tendências socialistas. A primazia que os anarquistas historicamente deram à abolição do Estado, o agente por excelência da coerção hierárquica, levou diretamente à sua difamação do Estado-nação e do nacionalismo em geral, não apenas porque o nacionalismo divide os seres humanos territorial, cultural e economicamente, mas porque segue a esteira do Estado moderno e o justifica ideologicamente.
O que interessa aqui é a tradição internacionalista que desempenhou um papel tão pronunciado na esquerda do século passado e no primeiro terço do século presente, e suas mutações em uma “questão” altamente problemática, particularmente nos escritos de Rosa Luxemburgo e Lênin. Esta não é uma “questão” de pequena importância. Basta considerar a total confusão que a cerca hoje, à medida que o século se aproxima do fim ―quando um nacionalismo selvagemente fanático está subvertendo a tradição internacionalista da esquerda― para reconhecer sua importância. A ascensão de nacionalismos que exploram diferenças raciais, religiosas e culturais tradicionais entre os seres humanos, incluindo até as mais triviais diferenças linguísticas e quase tribais, para não falar das diferenças de identidade de gênero e preferência sexual, marca uma descivilização da humanidade, um recuo a uma época em que o número de dedos com que as pessoas faziam o sinal da cruz determinava se elas e seus vizinhos se estripariam em conflitos sangrentos, como Nikos Kazantzakis apontou em Zorba, o grego.
O que é particularmente perturbador é que a esquerda nem sempre viu o nacionalismo como uma demanda regressiva. A esquerda moderna, tal como é hoje, muitas vezes abraça acriticamente o slogan “libertação nacional” — um slogan que ecoou em suas fileiras sem levar em conta o ideal básico expresso na “Internacional”. Os apelos à “identidade” tribal acentuam estridentemente as características particulares de um grupo para angariar eleitores, um esforço que nega o espírito da “Internacional” e o internacionalismo tradicional da esquerda. O próprio significado do nacionalismo e a natureza de sua relação com o estatismo estão levantando questões, especialmente hoje, para as quais a esquerda está desprovida de ideias além dos apelos à “libertação nacional”
Se os esquerdistas de hoje em dia perdem toda a memória viável de uma esquerda internacionalista anterior — para não falar da emergência histórica da humanidade fora de sua origem animalesca, seu desenvolvimento milenar longe de fatos biológicos como diferenças de etnia, gênero e idade em direção a afinidades verdadeiramente sociais baseado na cidadania, igualdade e um senso universalista de uma humanidade comum — o grande papel atribuído à razão pelo Iluminismo pode estar em séria dúvida. Sem uma forma de associação humana que possa resistir e, esperançosamente, ir além do nacionalismo em todas as suas variantes populares ―seja na forma de uma esquerda reconstituída, uma nova política, um libertarianismo social, um humanismo despertado, uma ética da complementaridade ― então qualquer coisa que podemos legitimamente chamar de civilização, de fato, o próprio espírito humano, pode muito bem ser extinto muito antes que a guerra nuclear, as crescentes crises ecológicas ou, de forma mais geral, uma barbárie cultural comparável apenas aos períodos mais destrutivos da história nos subjugue. Em vista do nacionalismo crescente de hoje, então, poucos esforços poderiam ser mais importantes do que examinar a natureza do nacionalismo e entender a chamada “questão nacional” como a esquerda em suas várias formas a interpretou ao longo dos anos.
Uma Visão Histórica Geral
O nível de desenvolvimento humano pode ser medido em grande parte pela extensão em que as pessoas reconhecem sua unidade compartilhada. De fato, a liberdade pessoal consiste em grande parte de nossa capacidade de escolher amigos, parceiros, associados e afins sem levar em conta suas diferenças biológicas. O que nos torna humanos, além de nossa capacidade de raciocinar em um alto plano de generalização, associar-se em instituições sociais mutáveis, trabalhar cooperativamente e desenvolver um sistema de comunicação altamente simbólico, é um conhecimento compartilhado de nossa humanitas. As palavras memoráveis de Goethe, tão características da mente iluminista, ainda nos assombram como critério de nossa humanidade: “Existe um grau de cultura onde o ódio nacional desaparece, e onde a pessoa está até certo ponto acima das nações e sente a felicidade e a dor de um povo vizinho como se acontecesse com o seu próprio.”
Se Goethe estabeleceu um padrão de humanidade autêntica aqui ―e certamente se pode exigir mais dos seres humanos do que empatia por seu “próprio povo”― a humanidade primitiva era menos do que humana por esse padrão. Embora um elemento lunático no movimento ecológico de hoje exija um “retorno à espiritualidade do Pleistoceno”, eles provavelmente teriam achado essa “espiritualidade” muito desanimadora na realidade. Em eras pré-históricas, provavelmente marcadas por bandos e organizações sociais tribais, os seres humanos eram, “espiritualmente” ou não, primeiro e principalmente membros de uma família imediata, em segundo lugar, membros de um bando e, finalmente, membros de uma tribo. O que determinava a participação em qualquer coisa além de um determinado grupo familiar era uma extensão do laço de parentesco: as pessoas de uma determinada tribo estavam socialmente ligadas umas às outras por relações de sangue reais ou fictícias. Esse “juramento de sangue”, assim como outros “fatos biológicos” como gênero e idade, definiam os direitos, obrigações e, de fato, a identidade da pessoa na sociedade tribal.
Além disso, muitos ―talvez a maioria― dos bandos ou grupos tribais consideravam humanos apenas aqueles que compartilhavam o “juramento de sangue” consigo mesmos. De fato, uma tribo muitas vezes se referia a si mesma como “o Povo”, um nome que expressava sua reivindicação exclusiva à humanidade. Outras pessoas, que estavam fora do círculo mágico dos laços sanguíneos reais ou míticos de uma tribo, eram “estranhos” e, portanto, em certo sentido, não eram seres humanos. O “juramento de sangue” e o uso do nome “o Povo” para designar a si mesmos frequentemente colocavam uma tribo contra outras que faziam a mesma reivindicação exclusiva de serem humanos e de serem “o Povo”, mesmo entre povos que compartilhavam traços linguísticos e culturais comuns.
A sociedade tribal, de fato, era extremamente cautelosa com qualquer um que não fosse um de seus próprios membros. Em muitas áreas, antes que um estranho pudesse cruzar uma fronteira territorial, ele tinha que esperar com submissão e paciência um convite de um ancião ou xamã da tribo que reivindicava o território antes de prosseguir. Sem hospitalidade, que era geralmente concebida como uma virtude quase religiosa, qualquer estranho arriscava a vida e membros do corpo no território de uma tribo, de modo que alojamento e alimentação eram geralmente precedidos por atos rituais de confiança ou boa vontade. O aperto de mão moderno pode ter se originado como uma expressão simbólica de que a mão direita estava livre de armas.
A guerra era endêmica entre nossos ancestrais pré-históricos e em comunidades nativas posteriores, não obstante o status elevado, quase cultual, desfrutado pelos ostensivamente pacíficos “aborígenes ecológicos” entre os euro-americanos brancos de classe média hoje. Quando grupos forrageadores caçavam em seu território habitual, como muitas vezes acontecia, eles geralmente estavam mais do que dispostos a invadir a área de um grupo vizinho e reivindicar seus recursos para si. Comumente, após o surgimento das sociedades guerreiras, a guerra adquiriu atributos culturais e econômicos, de modo que os vitoriosos não mais apenas derrotaram seus “inimigos” reais ou escolhidos, mas virtualmente os exterminaram, como testemunha a destruição quase genocida dos índios Hurun por seus primos iroqueses culturalmente relacionados.
Se os principais impérios do antigo Oriente Médio e Ásia conquistaram, pacificaram e subjugaram muitos grupos étnicos e culturais diferentes, transformando assim povos estrangeiros em súditos abjetos de monarquias despóticas, o fator isolado mais importante para erodir o paroquialismo aborígene foi o surgimento do cidade. A ascensão da cidade antiga, seja democrática como em Atenas ou republicana como em Roma, marcou uma distribuição social radicalmente nova. Em contraste com o povo paroquial e orientado para a família que constituía o mundo tribal e aldeão, as cidades ocidentais estavam agora estruturadas cada vez mais em torno de proximidade residencial e interesses econômicos compartilhados. Uma “segunda natureza”, como Cícero a chamou, de vínculos sociais e culturais humanísticos começou a substituir a forma mais antiga de organização social baseada na “primeira natureza” dos laços biológicos e consanguíneos, na qual se ancoravam os papéis e obrigações sociais dos indivíduos em sua família, clã, gênero e afins, e não em associações de sua própria escolha.
Etimologicamente, “política” deriva do grego politika, que conota uma ativamente envolvida cidadania que formula as políticas de uma comunidade ou polis e, na maioria das vezes, as executa rotineiramente no curso do serviço público. Embora a cidadania formal fosse exigida para a participação em tal política, As Pólis como a Atenas democrática celebravam sua abertura aos visitantes, particularmente a artesãos qualificados e comerciantes conhecedores de outras comunidades étnicas. Em sua famosa oração fúnebre, Péricles declarou: “Abrimos nossa cidade ao mundo e nunca, por atos estranhos, excluímos os estrangeiros de qualquer oportunidade de aprender ou observar, embora os olhos de um inimigo possam ocasionalmente lucrar com nossa liberalidade, confiando menos em processo e política do que no espírito nativo de nossos cidadãos; onde, na educação, desde o berço, por uma disciplina dolorosa, buscam a virilidade [em Esparta], em Atenas vivemos exatamente como queremos e, no entanto, estamos prontos para enfrentar todos os perigos legítimos.”
Nos tempos de Péricles, a liberalidade ateniense, com certeza, ainda era limitada por uma noção amplamente fictícia da ancestralidade compartilhada de seus cidadãos — embora menos do que antes. Mas é difícil ignorar o fato de que a obra-prima dialética de Platão, A República, ocorre como um diálogo na casa de Cephalos, cuja família era de estrangeiros residentes no Pireu, a área portuária de Atenas onde vivia a maioria dos estrangeiros. No entanto, no próprio diálogo, o intercâmbio entre cidadão e estrangeiro não é inibido por quaisquer considerações de status.
O imperador romano Caracalla, com o tempo, tornou todos os homens livres do Império “cidadãos” de Roma com direitos jurídicos iguais, universalizando assim as relações humanas apesar das diferenças de idioma, etnia, tradição e local de residência. O cristianismo, apesar de todas as suas falhas, celebrou, no entanto, a igualdade das almas de todas as pessoas aos olhos da divindade, um “igualitarismo” celestial que, em combinação com as cidades medievais abertas, eliminava teoricamente os últimos atributos de ancestralidade, etnia e tradição que dividiam seres humanos uns dos outros.
Na prática, evidentemente, esses atributos ainda persistiram, e vários povos mantiveram fidelidades paroquiais às suas aldeias, localidades e até cidades, contrabalanceando os tênues ideais romanos e particularmente cristãos de uma humanitas universal. O mundo medieval unificado foi fragmentado juridicamente em inúmeras soberanias baronais e aristocráticas que paroquializaram os compromissos populares locais com um determinado senhor ou lugar, muitas vezes colocando povos cultural e eticamente relacionados uns contra os outros em outras áreas. A Igreja Católica se opôs a essas soberanias paroquiais, não apenas por razões doutrinárias, mas para poder expandir a autoridade papal sobre a cristandade como um todo. Quanto ao poder secular, monarcas rebeldes, mas fortes, como Henrique II da Inglaterra tentaram impor a “paz do rei” em grandes áreas territoriais, subjugando nobres inimigos com graus variados de sucesso. Assim, papa e rei trabalharam em conjunto para diminuir o paroquialismo, mesmo enquanto duelavam entre si pelo controle de áreas cada vez maiores do mundo feudal.
No entanto, cidadãos autênticos estavam profundamente envolvidos na atividade política clássica em muitos lugares da Europa durante a Idade Média. Os burgueses das democracias das cidades medievais eram essencialmente mestres artesãos. As tarefas de suas corporações, ou fraternidades vocacionais ricamente articuladas, não eram menos morais do que econômicas — na verdade, elas formavam a base estrutural para uma economia moral genuína. As corporações não apenas “policiaram” os mercados locais, fixando “preços justos” e assegurando que a qualidade dos bens de seus membros seria alta; participavam de festas cívicas e religiosas como entidades distintas com bandeiras próprias, ajudavam no financiamento e na construção de prédios públicos, zelavam pelo bem-estar das famílias dos membros falecidos, arrecadavam dinheiro para caridade e participavam como milicianos na defesa da comunidade da qual eles faziam parte. Suas cidades, na melhor das hipóteses, conferiam liberdade aos servos fugitivos, zelavam pela segurança dos viajantes e defendiam inflexivelmente suas liberdades cívicas. A eventual diferenciação das populações da cidade em ricos e pobres, poderosos e impotentes, e “nacionalistas” que apoiavam a monarquia contra uma nobreza predatória — tudo isso constitui um drama complexo que não pode ser discutido aqui.
Em vários momentos e lugares, algumas cidades criaram formas de associação que não eram nações nem baronias paroquiais. Foram confederações intermunicipais que duraram séculos, como a Liga Hanseática; confederações cantonais como a da Suíça; e, mais resumidamente, tentativas de conseguir confederações de cidades livres como o movimento comuñero espanhol no início do século XVI. Não foi até o século XVII ―particularmente sob Cromwell na Inglaterra e Luís XIV na França― que os centralizadores de uma forma ou de outra finalmente começaram a esculpir nações duradouras na Europa.
Os estados-nação, deixe-me enfatizar, são estados ―não apenas nações. Estabelecê-los significa conferir poder a um aparelho centralizado, profissional e burocrático que exerce o monopólio social da violência organizada, notadamente na forma de seus exércitos e polícia. O Estado se apropria da autonomia das localidades e províncias por meio de seu executivo todo-poderoso e, nos estados republicanos, de sua legislatura, cujos membros são eleitos ou indicados para representar um número fixo de “constituintes”. O cidadão de uma localidade autogerida desaparece em uma agregação anônima de indivíduos que pagam uma quantia adequada de impostos e recebem os “serviços” do Estado. A “política” no estado-nação se transforma em um corpo de relações de troca em que os constituintes geralmente tentam receber pelo que pagam em um mercado “político” de bens e serviços. O nacionalismo como uma forma de tribalismo em grande escala reforça o Estado, fornecendo-lhe a lealdade de um povo de afinidades linguísticas, étnicas e culturais compartilhadas, de fato legitimando o Estado, dando-lhe uma base de semelhanças na aparência biológicas e tradicionais abrangentes entre o povo. Não foi o povo inglês que criou uma Inglaterra, mas os monarcas ingleses e governantes centralizadores, assim como foram os reis franceses e suas burocracias que forjaram a nação francesa.
De fato, até que a construção do Estado começou a adquirir novo vigor no século XV, os Estados-nação na Europa permaneceram uma novidade. Mesmo quando a autoridade centralizada baseada minimamente em uma semelhança linguística começou a fomentar o nacionalismo em toda a Europa Ocidental e nos Estados Unidos, o nacionalismo enfrentou um destino muito duvidoso. O Confederalismo permaneceu uma alternativa viável ao Estado-nação até a segunda metade do século passado. Ainda em 1871, a Comuna de Paris convocou todas as comunas da França para formar um duplo poder confederal em oposição à recém-criada Terceira República. Eventualmente, o Estado-nação venceu neste conflito complexo, e o estatismo, de fato, foi firmemente ligado ao nacionalismo. Os dois eram praticamente indistinguíveis um do outro no início deste século.
Nacionalismo e a Esquerda
Teóricos radicais e ativistas de esquerda lidaram de maneiras muito diferentes com a série de problemas históricos e éticos que o nacionalismo levantou com relação aos esforços para construir uma sociedade comunista e cooperativa. Historicamente, as primeiras tentativas esquerdistas de explorar o nacionalismo como um problema que obstruía o advento de uma sociedade livre e justa vieram de vários teóricos anarquistas. Pierre-Joseph Proudhon parece nunca ter questionado o ideal de solidariedade humana, embora nunca tenha negado o direito de um povo à singularidade cultural e até mesmo a se separar de qualquer tipo de “contrato social”, desde que o direito de ninguém mais fosse infringido. Embora Proudhon detestasse a escravidão ―ele observou sarcasticamente que o sul dos Estados Unidos “com a Bíblia na mão, cultiva a escravidão”, enquanto o norte americano “já está criando um proletariado”[3] ―ele concedeu formalmente o direito da Confederação de se retirar da União durante a Guerra Civil de 1861–65.
De forma geral, as visões confederalistas e mutualistas de Proudhon o levaram a se opor aos movimentos nacionalistas na Polônia, Hungria e Itália. Suas noções antinacionalistas foram um pouco diluídas por sua própria francofilia, como observou mais tarde o socialista francês Jean Jaures. Proudhon temia a formação de estados-nação fortes nas fronteiras da França ou perto delas. Mas ele também foi um produto à sua maneira do Iluminismo. Escrevendo em 1862, ele declarou: “Eu nunca colocarei a devoção ao meu país antes dos direitos do homem. Se o governo francês se comporta injustamente com qualquer povo, estou profundamente entristecido e protesto de todas as maneiras que posso. Se a França for punida pelos crimes de seus líderes, eu inclino minha cabeça e digo do fundo da minha alma, “Merito haec patimur” — “Nós merecemos esses males.”
Apesar de seu chauvinismo gaulês, os “direitos do homem” permaneceram em primeiro lugar na mente de Proudhon; nem estava alheio ao fato de que a Índia e a China estavam, em suas palavras, “à mercê dos bárbaros”. “Você acha que é o egoísmo francês, o ódio à liberdade, o desprezo pelos poloneses e italianos que me fazem zombar e desconfiar dessa palavra banal, nacionalidade?” , escreveu ele a Herzen, “que está sendo tão amplamente usada e faz tantos patifes e tantos cidadãos honestos falarem tanta bobagem? Por piedade . . . não se ofenda tão facilmente. Se o fizer, terei que lhe dizer o que venho dizendo há seis meses sobre seu amigo Garibaldi: «De grande coração, mas sem cérebro.»”
O internacionalismo de Mikaill Bakunin era tão enfático quanto o de Proudhon, embora suas visões também fossem marcadas por uma certa ambiguidade. “Somente isso pode ser chamado de princípio humano que é universal e comum a todos os homens”, escreveu ele em sua veia internacionalista; “e a nacionalidade separa os homens, portanto não é um princípio.” De fato, “Não há nada mais absurdo e ao mesmo tempo mais nocivo, mais mortífero, para o povo do que defender o fictício princípio da nacionalidade como o ideal de todas as aspirações do povo”. O que contava finalmente para Bakunin era que “a nacionalidade não é um princípio humano universal”. Ainda mais: “Devemos colocar a justiça humana e universal acima de todos os interesses nacionais. E devemos abandonar de uma vez por todas o falso princípio da nacionalidade, inventado recentemente pelos déspotas da França, Rússia e Prússia com o objetivo de esmagar o princípio soberano da liberdade”.
No entanto, Bakunin também declarou que a nacionalidade “é um fato histórico, local, que, como todos os fatos reais e inofensivos, tem o direito de reivindicar aceitação geral”. Não apenas isso, mas este é um “fato natural” que merece “respeito”. Pode ter sido suas tendências retóricas que o levaram a declarar-se “sempre sinceramente o patriota de todas as pátrias oprimidas”. Mas argumentou que o direito de cada nacionalidade “de viver de acordo com sua própria natureza” deve ser respeitado, pois esse “direito” é “simplesmente o corolário do princípio geral da liberdade”.
A sutileza das observações de Bakunin não deve ser negligenciada em meio a essa aparente contradição. Ele definiu um princípio geral que é humano, aquele que é abreviado ou parcialmente violado por fatos anti-sociais ou “biológicos” que, para melhor ou para pior, devem ser tomados como certos. Ser nacionalista é ser não menos do que humano, mas também é inevitável na medida em que os indivíduos são produtos de tradições culturais, ambientes e estados de espírito distintos. Ocultar o mero fato da “nacionalidade” é o princípio universal superior no qual as pessoas se reconhecem como membros da mesma espécie e procuram promover suas semelhanças em vez de sua distinção “nacional”.
Tais princípios humanistas deveriam ser levados muito a sério pelos anarquistas em geral e surpreendentemente pelo maior movimento anarquista dos tempos modernos, os anarquistas espanhóis. Desde o início da década de 1880 até a sangrenta guerra civil de 1936–39, o movimento anarquista da Espanha se opôs não apenas ao estatismo e ao nacionalismo, mas também ao regionalismo em todas as suas formas. Apesar de seus enormes seguidores catalães, os anarquistas espanhóis consistentemente elevaram o princípio humano superior da libertação social sobre a libertação nacional e se opuseram às tendências nacionalistas dentro da Espanha que tantas vezes dividiram bascos, catalães, andaluzes e galegos uns dos outros e particularmente dos castelhanos, que gozava de supremacia cultural sobre as minorias do país. De fato, a palavra “ibérica” em vez de “espanhol” que aparece no nome Federação Anarquista Ibérica (FAI) serviu para expressar não apenas um compromisso com a solidariedade peninsular, mas uma indiferença às distinções regionais e nacionais entre Espanha e Portugal. Os anarquistas espanhóis cultivaram o esperanto como uma língua humana “universal” com mais entusiasmo do que qualquer grande tendência radical, e a “fraternidade universal” permaneceu um ideal duradouro de seu movimento — como historicamente fez na maioria dos movimentos anarquistas até os dias atuais.
Antes de 1914, os marxistas e a Segunda Internacional geralmente mantinham convicções semelhantes, apesar do florescimento do nacionalismo do século XIX. Na visão de Marx e Engels, o proletariado do mundo não tinha país; autenticamente unificado como classe, estava destinado a abolir todas as formas de sociedade de classes. O Manifesto Comunista termina com um apelo retumbante: “Trabalhadores de todos os países, uni-vos!” No corpo da obra (que Bakunin traduziu para o russo), os autores declaram: “Nas lutas nacionais dos proletários de diferentes países, [os comunistas] apontam e trazem à tona os interesses comuns de todo o proletariado, independentemente de todas as nacionalidades.” E ainda: “Os trabalhadores não têm pátria. Não podemos tirar deles o que eles não têm.”
O apoio que Marx e Engels deram às lutas de “libertação nacional” foi essencialmente estratégico, decorrente principalmente de suas preocupações geopolíticas e econômicas, e não de amplos princípios sociais. Eles defenderam vigorosamente a independência polonesa da Rússia, por exemplo, porque queriam enfraquecer o império russo, que em sua época era o poder contrarrevolucionário supremo no continente europeu. E eles queriam ver uma Alemanha unida porque um Estado-nação centralizado e poderoso forneceria o que Engels, em uma carta a Karl Kautsky em 1882, chamou de “a constituição política normal da burguesia europeia”.
No entanto, as semelhanças manifestas entre a retórica internacionalista de Marx e Engels no Manifesto Comunista e o internacionalismo dos teóricos e movimentos anarquistas não deveriam esconder as diferenças importantes entre essas duas formas de socialismo — diferenças que deveriam desempenhar um papel importante na os debates que os separaram. Os anarquistas eram, em todos os sentidos, socialistas éticos que defendiam os princípios universais da “fraternidade do homem” e da “fraternidade”[10] princípios que o “socialismo científico” de Marx desdenhava como meras “abstrações”. Em anos posteriores, mesmo falando amplamente de liberdade e oprimidos, Marx e Engels consideraram o uso de palavras aparentemente “inexatas” como “trabalhadores” e “obreiros” uma rejeição implícita do socialismo como uma “ciência”; em vez disso, preferiam o que consideravam a palavra proletariado mais cientificamente rigorosa, que se referia especificamente àqueles que geram mais-valia.
De fato, em contraste com teóricos anarquistas como Proudhon, que consideravam a expansão do capitalismo e a proletarização do campesinato e dos artesãos pré-industriais um desastre, Marx e Engels acolheram com entusiasmo esses desenvolvimentos, bem como a formação de grandes Estados-nação centralizados em quais economias de mercado poderiam florescer. Eles os viam não apenas como desiderato na promoção do desenvolvimento econômico, mas, ao promover o capitalismo, como indispensáveis para criar as pré-condições para o socialismo. Apesar de seu apoio ao internacionalismo proletário, eles derrogaram o que viram como denúncias “abstratas” do nacionalismo como tal ou as desprezaram como meramente “moralistas”. Embora o internacionalismo no interesse da solidariedade de classe permanecesse um desiderato para Marx e Engels, sua visão implicitamente estava em desacordo com seu compromisso com a expansão econômica capitalista com sua necessidade no século passado de estados-nação centralizados. Eles consideravam o Estado-nação bom ou ruim na medida em que avançava ou inibia a expansão do capital, o avanço das “forças produtivas” e a proletarização dos povos pré-industriais. Em princípio, eles olhavam desconfiadamente para os sentimentos nacionalistas de indianos, chineses, africanos e do resto do mundo não capitalista, cujas formas sociais pré-capitalistas poderiam impedir a expansão capitalista. A Irlanda, ironicamente, parece ter sido uma exceção a essa abordagem. Marx, Engels e o movimento marxista como um todo reconheceram o direito dos irlandeses à libertação nacional em grande parte por razões sentimentais e porque isso produziria problemas para o imperialismo inglês, que comandava um mercado mundial. Em geral, até que uma sociedade socialista pudesse ser alcançada, os marxistas consideravam a formação de grandes Estados-nação cada vez mais centralizados na Europa como “historicamente progressiva”.
Dada sua geopolítica instrumental, não deveria surpreender que, com o passar dos anos, Marx e Engels apoiassem essencialmente as tentativas de Bismarck de unificar a Alemanha. Seu desgosto expresso pelos métodos de Bismarck e pelos proprietários de terras em cujos interesses ele falou não deve ser levado muito a sério, na minha opinião. Eles teriam saudado a anexação da Dinamarca pela Alemanha e pediram a incorporação de nacionalidades europeias menores, como os tchecos e eslavos em geral, em uma Áustria-Hungria centralizada, bem como a unificação da Itália em um estado-nação, a fim de ampliar o terreno do mercado e a soberania do capitalismo no continente europeu.
Tampouco é surpreendente que Marx e Engels tenham apoiado os exércitos de Bismarck na guerra franco-prussiana de 1870 ―apesar da oposição de seus adeptos mais próximos no partido social-democrata alemão, Wilhelm Liebknecht e August Bebel ― pelo menos até o ponto em que esses exércitos cruzaram a fronteira francesa e cercou Paris em 1871. Ironicamente, os próprios argumentos de Marx e Engels foram invocados pelos marxistas europeus que divergiram de seus camaradas antiguerra para apoiar seus respectivos esforços militares nacionais na eclosão da Primeira Guerra Mundial. Os social-democratas alemães pró-guerra apoiaram o Kaiser como um baluarte contra a barbárie “asiática” russa ―aparentemente de acordo com as próprias visões de Marx e Engels― enquanto os socialistas franceses (assim como Kropotkin na Grã-Bretanha e mais tarde na Rússia) invocaram a tradição da Grande Guerra de seu país. Revolução em oposição ao “militarismo prussiano”.
Apesar de muitas alegações generalizadas de que Rosa Luxemburgo era mais “anarquística” do que uma marxista comprometida, ela realmente se opôs vigorosamente às motivações das formas anárquicas de socialismo e era mais uma marxista doutrinária do que geralmente se imagina. Sua oposição ao nacionalismo polonês e ao Partido Socialista Polonês de Pilsudski (que exigia a independência nacional polonesa), bem como sua hostilidade ao nacionalismo em geral, admirável e corajoso como era, baseava-se principalmente não em uma crença anarquista na “irmandade do homem”, mas em tradicionais argumentos marxistas. Os argumentos marxistas ―ou seja, uma extensão do desejo de Marx e Engels por mercados unificados e estados centralizados às custas das nacionalidades do Leste Europeu, embora com uma nova reviravolta.
Na virada do século, surgiram novas considerações que induziram Luxemburgo a modificar seus pontos de vista. Como muitos teóricos social-democratas da época, Luxemburgo compartilhava a convicção de que o capitalismo havia passado de uma fase progressista para uma fase amplamente reacionária. Não mais uma ordem econômica historicamente progressiva, o capitalismo agora era reacionário porque havia cumprido sua função “histórica” no avanço da tecnologia e, presumivelmente, na produção de um proletariado com consciência de classe ou mesmo revolucionário. Lenin sistematizou essa conclusão em sua famosa obra Imperialismo: estágio superior do capitalismo.
Assim, tanto Lenin quanto Luxemburgo denunciaram logicamente a Primeira Guerra Mundial como imperialista e romperam com todos os socialistas que apoiavam a Entente e as Potências Centrais, ridicularizando-os como “patriotas sociais”. Onde Lenin diferia marcadamente de Luxemburgo (além da famosa questão de seu apoio a uma organização partidária centralizada) era sobre como, de um ponto de vista estritamente “realista”, a “questão nacional” poderia ser usada contra o capitalismo em uma era de imperialismo. Para Lenin, as lutas nacionais de países colonizados economicamente subdesenvolvidos pela libertação das potências coloniais, incluindo a Rússia czarista, eram agora inerentemente progressivas na medida em que serviam para minar o poder do capital. Ou seja, o apoio de Lenin às lutas de libertação nacional não era essencialmente menos pragmático do que o de outros marxistas, incluindo a própria Luxemburgo. Para a Rússia imperialista, apropriadamente caracterizada como uma “prisão de nações”, Lenin defendia o direito incondicional dos povos não-russos de se separarem sob quaisquer condições e de formarem seus próprios estados-nação. Por outro lado, sustentou, os social-democratas não russos nos países colonizados da Rússia seriam obrigados a defender algum tipo de união federal com a “pátria mãe” se os social-democratas russos conseguissem realizar uma revolução proletária.
Assim, embora as premissas de Lenin e Luxemburgo fossem muito semelhantes, os dois marxistas chegaram a conclusões radicalmente diferentes sobre a “questão nacional” e a maneira correta de resolvê-la. Lenin exigiu o direito da Polônia de estabelecer um estado-nação próprio, enquanto Luxemburgo se opunha a isso como economicamente inviável e regressivo. Lenin compartilhava o apoio de Marx e Engels à independência polonesa, embora por razões muito diferentes, mas igualmente pragmáticas. Ele não honrou sua própria posição sobre o direito de secessão durante a Guerra Civil Russa de forma mais flagrante em sua maneira de lidar com a Geórgia, uma nação muito distinta que apoiou os mencheviques até que o regime soviético a forçou a aceitar uma variante doméstica do bolchevismo. Somente nos últimos anos de sua vida, depois que um partido comunista georgiano assumiu o comando do Estado, Lenin se opôs à tentativa de Stalin de subordinar o partido georgiano ao russo — um conflito predominantemente intrapartidário que pouco preocupava a população georgiana pró-menchevique. Lenin não viveu o suficiente para engajar Stalin nesta ―e outras― políticas e práticas organizacionais.
Duas abordagens sobre a Questão Nacional
As discussões marxistas e marxistas-leninistas sobre a “questão nacional” após a Primeira Guerra Mundial produziram, assim, um legado altamente complicado que afetou as políticas não apenas da Velha Esquerda dos anos 1920 e 1930, mas também as da Nova Esquerda dos anos 1960. O que é importante esclarecer aqui são as premissas radicalmente diferentes das quais anarquistas e marxistas viam o nacionalismo em geral. O anarquismo em geral, além de algumas de suas variantes, apresentou razões humanistas, basicamente éticas, para se opor aos Estados-nação que fomentavam o nacionalismo. Os anarquistas o fizeram, para ser mais específico, porque as distinções nacionais tendiam a levar à formação do Estado e a subverter a unidade da humanidade, a paroquializar a sociedade e a promover particularidades culturais em vez da universalidade da condição humana. O marxismo, como uma “ciência socialista”, evitou tais “abstrações” éticas.
Em contraste com a oposição anarquista ao estado e à centralização, os marxistas não apenas apoiavam um estado centralizado, eles insistiam na natureza “historicamente progressiva” do capitalismo e de uma economia de mercado, que exigia estados-nação centralizados como mercados domésticos e como meios. para remover todas as barreiras internas ao comércio que as soberanias locais e regionais haviam criado. Os marxistas geralmente consideravam as aspirações nacionais dos povos oprimidos como questões de estratégia política que deveriam ser apoiadas ou combatidas por considerações estritamente pragmáticas, independentemente de quaisquer considerações éticas mais amplas.
Assim, duas abordagens distintas ao nacionalismo surgiram dentro da esquerda. O antinacionalismo ético dos anarquistas defendia a unidade da humanidade, com a devida permissão para distinções culturais, mas em total oposição à formação de estados-nação; enquanto os marxistas apoiaram ou se opuseram às demandas nacionalistas de culturas em grande parte pré-capitalistas por uma variedade de razões pragmáticas e geopolíticas. Esta distinção não pretende ser definitiva; os socialistas na Áustria-Hungria pré-primeira guerra mundial eram fortemente multinacionais como resultado dos muitos povos diferentes que compunham o império pré-guerra. Eles pediram uma relação confederal entre os governantes de língua alemã do império e seus membros em grande parte eslavos, que se aproximavam de uma visão anarquista. Se eles teriam honrado seus próprios ideais na prática melhor do que Lenin aderiu às suas próprias prescrições, uma vez que uma “revolução proletária” realmente tivesse sucesso, nunca saberemos. O império original havia desaparecido em 1918, e o libertarianismo ostensivo do “marxismo austro-húngaro”, como era chamado, tornou-se discutível durante o período entre guerras. Para sua honra, devo acrescentar, em fevereiro de 1934 em Viena, os socialistas austríacos, diferentemente de qualquer outro movimento além dos anarquistas espanhóis, resistiram a desenvolvimentos protofascistas em lutas de rua sangrentas; o movimento nunca recuperou seu ímpeto revolucionário depois que foi restaurado em 1945.
Nacionalismo e a Segunda Guerra Mundial
A esquerda do período entre guerras, a chamada Velha Esquerda, via a guerra que se aproximava rapidamente contra a Alemanha nazista como uma continuação da “Grande Guerra” de 1914–18. Os marxistas anti-stalinistas previram um conflito de curta duração que terminaria em revoluções proletárias ainda mais abrangentes do que as do período de 1917–21. Significativamente, Trotsky apostou sua adesão ao próprio marxismo ortodoxo nesse cálculo: se a guerra não terminasse com esse resultado, ele propôs, quase todas as premissas do marxismo ortodoxo teriam que ser examinadas e talvez drasticamente revisadas. Sua morte em 1940 impediu tal reavaliação de sua parte. Quando a guerra não terminou em revoluções proletárias internacionais, os partidários de Trotsky mal estavam dispostos a fazer o reexame abrangente que ele havia sugerido.
No entanto, este reexame era muito necessário. Não só a Segunda Guerra Mundial falhou em culminar em revoluções proletárias na Europa; como pôs fim a toda a era do socialismo proletário revolucionário e do internacionalismo de classe que emergiu em junho de 1848, quando a classe trabalhadora parisiense ergueu barricadas e bandeiras vermelhas em apoio a uma “república social”. Longe de alcançar quaisquer revoluções proletárias bem-sucedidas após a Segunda Guerra Mundial, a classe trabalhadora europeia não conseguiu exibir uma aparência de internacionalismo durante o conflito. Ao contrário de seus pais uma geração antes, nenhuma tropa em guerra se engajou em confraternização; nem as populações civis exibiram qualquer hostilidade aberta a seus líderes políticos e militares por sua condução da guerra, apesar da destruição maciça de cidades por bombardeiros aéreos e artilharia. O exército alemão lutou desesperadamente contra os Aliados no Ocidente e estava preparado para defender o bunker de Hitler até o fim.
Acima de tudo, uma elevada consciência acerca das distinções e conflitos de classe na Europa deu lugar ao nacionalismo ―em parte como reação às ocupações de territórios na Alemanha, mas em parte também, e significativamente, como resultado do ressurgimento de uma xenofobia grosseira que beirava o racismo absoluto. Os movimentos limitados de classe que surgiram por um tempo após a guerra, principalmente na França, Itália e Grécia, foram facilmente manipulados pelos stalinistas para servir aos interesses soviéticos na Guerra Fria. Assim, embora a Segunda Guerra Mundial tenha durado muito mais do que a primeira, seu resultado nunca atingiu o nível político e social do período 1917–1921. De fato, o capitalismo mundial emergiu da Segunda Guerra Mundial mais forte do que em qualquer outro momento de sua história, devido principalmente à intervenção maciça do Estado nos assuntos econômicos e sociais.
Lutas por “Libertação Nacional”
O fracasso de teóricos radicais sérios em reexaminar a teoria marxista à luz desses desenvolvimentos, como Trotsky havia proposto, foi seguido pelo declínio precipitado da Velha Esquerda; o reconhecimento geral de que o proletariado não era mais uma classe “hegemônica” na derrubada do capitalismo; a ausência de uma “crise geral” do capitalismo; e o fracasso da União Soviética em desempenhar um papel internacionalista nos eventos do pós-guerra.
O que veio em primeiro plano foram as lutas de libertação nacional nos países do “Terceiro Mundo” e erupções anti-soviéticas esporádicas nos países do Leste Europeu, que foram amplamente sufocadas pelo totalitarismo stalinista. A esquerda, nesses casos, muitas vezes tomou as lutas nacionalistas como tentativas gerais “anti-imperialistas” de alcançar “autonomia” do imperialismo, e a formação do Estado como uma legitimação dessa “autonomia”, mesmo às custas de uma democracia popular no mundo colonizado.
Se Marx e Engels muitas vezes apoiaram as lutas nacionais por razões estratégicas, a esquerda no século XX, tanto a nova quanto a velha, muitas vezes elevou esse apoio a tais lutas a um artigo de fé irracional. Os “nacionalismos” estratégicos dos movimentos do tipo marxista em grande parte impediram a investigação sobre que tipo de sociedade um determinado movimento de “libertação nacional” provavelmente produziria, de uma forma que os socialismos éticos como o anarquismo no século passado não produziram. Era ―ou se não, deveria ter sido― uma questão da mais grave preocupação para a Velha Esquerda nas décadas de 1920 e 1930 investigar que tipo de sociedade Mao Tsé-tung, para citar um caso marcante, estabeleceria na China se derrotasse o Kuomintang, enquanto a Nova Esquerda dos anos 1960 deveria ter indagado que tipo de sociedade Castro, para citar outro caso importante, estabeleceria em Cuba após a expulsão de Batista.
Mas ao longo deste século, quando os movimentos de libertação nacional do “Terceiro Mundo” nos países coloniais fizeram declarações convencionais do socialismo e depois estabeleceram estados altamente centralizados, muitas vezes brutalmente autoritários, a esquerda muitas vezes os saudou como lutas eficazes contra os inimigos imperialistas. Evoluído como “libertação nacional”, o nacionalismo muitas vezes parou de promover grandes mudanças sociais e até mesmo ignorou a necessidade de fazê-lo. Declarações de formas autoritárias de socialismo têm sido usadas por movimentos de “libertação nacional” de forma muito parecida com a que Stalin usou ideologias socialistas para consolidar brutalmente sua própria ditadura. De fato, o marxismo-leninismo provou ser uma doutrina notavelmente eficaz para mobilizar lutas de “libertação nacional” contra potências imperialistas e ganhar o apoio de radicais de esquerda no exterior, que viam os movimentos de “libertação nacional” como lutas amplamente anti-imperialistas, em vez de observar seu verdadeiro conteúdo social.
Assim, apesar das tendências populistas e muitas vezes anarquísticas que deram origem à Nova Esquerda Europeia e Estadunidense, seu foco essencialmente internacional foi direcionado cada vez mais para um apoio acrítico às lutas de “libertação nacional” fora da esfera euro-americana, sem levar em consideração para onde essas lutas estavam liderando e a natureza autoritária de sua liderança. À medida que a década de 1960 avançava, esse movimento incrivelmente confuso na verdade se desfazia do ambiente anarquista e universalista com o qual havia começado. Depois que as práticas de Mao foram elevadas a um “ismo” na Nova Esquerda, muitos jovens radicais adotaram o “maoísmo” sem reservas, com resultados sombrios para a Nova Esquerda como um todo. Em 1969, a Nova Esquerda havia sido amplamente dominada pelos maoístas e admiradores de Fidel Castro. Um livro totalmente enganador como Fanshen, que aplaudiu acriticamente as atividades maoístas no interior da China, foi reverenciado no final dos anos 1960, e muitos grupos radicais adotaram o que consideravam práticas organizacionais maoístas. Tão fortemente focada foi a atenção da Nova Esquerda nas lutas de “libertação nacional” no Terceiro Mundo que a invasão russa da Tchecoslováquia em 1969 dificilmente produziu protestos sérios por jovens esquerdistas, pelo menos nos Estados Unidos, como posso atestar pessoalmente.
Os anos 60 também assistiram à emergência de mais uma forma de nacionalismo de esquerda: começaram a surgir grupos etnicamente chauvinistas que acabaram por inverter as reivindicações euro-americanas da alegada superioridade da raça branca numa reivindicação igualmente reaccionária à superioridade dos não brancos. Abraçando o particularismo em que a política racial tinha degenerado em vez do potencial universalismo de uma humanitas, a Nova Esquerda colocou negros, povos coloniais, e mesmo nações coloniais totalitárias no topo da sua pirâmide teórica, dotando-os de uma posição de comando ou “hegemonia” em relação aos brancos, euro-americanos, e nações burguesas-democráticas. Nos anos 70, esta estratégia particularista foi adoptada por certas feministas, que começaram a exaltar a “superioridade” das mulheres sobre os homens, de facto para afirmar um alegado “poder” místico feminino e um alegado irracionalismo feminino sobre a racionalidade secular e a investigação científica que eram presumivelmente do domínio de todos os homens. O termo “homem branco” tornou-se uma expressão claramente depreciativa que foi aplicada ecumenicamente a todos os homens euro-americanos, independentemente de eles próprios terem sido explorados e dominados por classes e hierarquias dominantes.
Uma “política de identidade” altamente paroquial começou a emergir, dominando mesmo muitos da nova esquerda como novos “micronacionalismos”, se me é permitido cunhar uma palavra. Não só certas tendências em tais movimentos de “identidade” se assemelham muito às de formas muito tradicionais de opressão como o patriarcado, mas a “política de identidade” constitui também um retrocesso em relação à mensagem libertária e mesmo marxista geral da “internacional” e uma transcendência de todos os diferenciais “micronacionalistas” numa sociedade comunista verdadeiramente humanista. O que passa por “consciência radical” hoje em dia está a deslocar-se cada vez mais para uma ênfase biologicamente orientada para a diferenciação humana como gênero e etnicidade — não uma ênfase na necessidade de fomentar a universalidade humana que foi tão pronunciada entre os escritores anarquistas do século passado e mesmo no Manifesto Comunista.
Por um novo Internacionalismo
Como avaliar essa transmissão no pensamento de esquerda e os problemas que ela levanta hoje? Tentei colocar o nacionalismo no contexto histórico mais amplo da evolução social da humanidade, da solidariedade interna da tribo à crescente expansividade da vida urbana e ao universalismo promovido pelas grandes religiões monoteístas na Idade Média e, finalmente, aos ideais de afinidade humana baseados sobre razão, secularismo, cooperação e democracia no século XIX. Podemos dizer com certeza que qualquer movimento que aspire a algo menos do que essas noções socialistas anarquistas e libertárias da “irmandade da homem”, certamente como expressa na “internacional”, é menos que humano. De fato, da perspectiva do final do século XX, somos obrigados a pedir ainda mais do que o internacionalismo do século XIX exigia. Somos obrigados a formular uma ética da complementaridade em que as diferenças culturais sirvam mutualisticamente para potencializar a própria unidade humana, em suma, que constituam um novo mosaico de culturas vigorosas que enriqueçam a condição humana e que fomentem seu avanço ao invés de fragmentá-la e decompô-la em novas “nacionalidades” e um número crescente de estados-nação.
Não menos significativa é a necessidade de uma visão social radical que conjugue a variedade cultural e o ideal de uma humanidade unificada com um conceito ético de como uma nova sociedade deve ser universalista em sua visão de humanidade, cooperativa em sua visão de relações humanas em todos os níveis da vida, e igualitária em sua ideia de relações sociais. Embora internacionalistas em sua perspectiva de classe, quase todas as atitudes marxistas em relação à “questão nacional” foram instrumentais: eles foram guiados por conveniência e oportunismo e, pior, muitas vezes denegriram ideias de democracia, cidadania e liberdade como “abstratas” e presumivelmente “noções não científicas”. Os marxistas notáveis aceitaram o Estado-nação com todo o seu poder coercitivo e traços centralistas, fossem eles Marx e Engels, Luxemburgo ou Lenin. Esses marxistas também não viam o confederalismo como um desiderato. Os escritos de Luxemburgo, por exemplo, simplesmente tomam o confederalismo como existia em seu próprio tempo (particularmente as vicissitudes do cantonalismo suíço) como esgotando todas as possibilidades dessa ideia política, sem levar em conta a ênfase anarquista na necessidade de uma profunda democratização social, política e econômica dos municípios que vão se confederar. Com poucas exceções, os marxistas não fizeram nenhuma crítica séria ao Estado-nação e à centralização do Estado como tal, uma omissão que, deixando de lado todas as conquistas “coletivistas”, teria condenado suas tentativas de alcançar uma sociedade racional se nada mais o tivesse feito.
Liberdade e variedade cultural, deixe-me enfatizar, não devem ser confundidas com nacionalismo. Que povos específicos sejam livres para desenvolver plenamente suas próprias capacidades culturais não é apenas um direito, mas uma aspiração. O mundo será realmente um lugar monótono se um magnífico mosaico de diferentes culturas não substituir o mundo amplamente desculturado e homogeneizado criado pelo capitalismo moderno. Mas, da mesma forma, o mundo estará completamente dividido e os povos estarão cronicamente em desacordo uns com os outros se suas diferenças culturais forem paroquializadas e se aparentes “diferenças culturais” estiverem enraizadas em noções biológicas de gênero, raça e superioridade física. Historicamente, há um sentido em que a consolidação nacional dos povos ao longo de linhas territoriais produziu uma esfera social que era mais ampla do que a estreita base de parentesco das sociedades de parentesco, porque obviamente é mais aberta a estranhos, assim como as cidades tendem a promover afinidades humanas mais amplas. do que tribos. Mas nem as afinidades tribais nem as fronteiras territoriais constituem uma percepção da potencialidade da humanidade para alcançar um senso pleno de comunhão com variações culturais ricas, mas harmoniosas. As fronteiras não têm lugar no mapa do planeta, assim como não têm lugar na paisagem da mente.
Um socialismo que não é informado por essa perspectiva ética, com o devido respeito pela variedade cultural, não pode ignorar o resultado potencial de uma luta de libertação nacional como a Velha e a Nova Esquerda tantas vezes fizeram. Tampouco pode apoiar as lutas de libertação nacional para fins instrumentais, meramente como meio de “enfraquecer” o imperialismo. Certamente, tal socialismo não pode, a meu ver, promover a proliferação de Estados-nação, muito menos aumentar o número de entidades nacionais divisivas. Ironicamente, o sucesso de muitas lutas de “libertação nacional” teve o efeito de criar regimes estatistas politicamente independentes que são, no entanto, tão manipuláveis pelas forças do capitalismo internacional quanto os antigos imperialistas geralmente obtusos. Na maioria das vezes, as nações do “Terceiro Mundo” não se livraram de seus grilhões coloniais desde o final da Segunda Guerra Mundial: elas apenas se tornaram domesticadas e se tornaram altamente vulneráveis às forças do capitalismo internacional, com pouco mais que uma fachada de autodeterminação. Além disso, eles muitas vezes usaram seus mitos de “soberania nacional” para nutrir ambições xenófobas de tomar áreas adjacentes ao seu redor e oprimir seus vizinhos tão brutalmente por si mesmos quanto os próprios imperialistas, como a opressão de Gana sob Nkrumah dos povos do Togo na África Ocidental ou a tentativa de Milosevic de “limpar” os muçulmanos da Bósnia. O que não é menos regressivo, tais nacionalismos evocam o que há de mais sinistro no passado de um povo — fundamentalismo religioso em todas as suas formas, ódios tradicionais aos “estrangeiros”, uma “unidade nacional” que supera terríveis desigualdades sociais e econômicas internas e, mais comumente, total desrespeito aos direitos humanos. A “nação” como entidade cultural é substituída por um aparato estatal avassalador e opressor. O racismo geralmente anda de mãos dadas com lutas de “libertação nacional”, como “limpeza étnica” e guerras por ganhos territoriais, como vemos hoje de forma mais pungente no Oriente Médio, Índia, Cáucaso e Europa Oriental. Nacionalismos que apenas uma geração atrás poderiam ter sido considerados como lutas de “libertação nacional” são vistos com mais clareza hoje, na esteira do colapso do império soviético, como pouco mais do que pesadelos sociais e pragas descivilizadoras.
Dito sem rodeios, os nacionalismos são atavismos regressivos que o Iluminismo tentou superar há muito tempo. Eles introjetam as piores características dos próprios impérios dos quais os povos oprimidos tentaram se libertar. Eles não apenas reproduzem tipicamente máquinas de Estado tão opressivas quanto as que os poderes coloniais lhes impuseram, mas reforçam essas máquinas com traços culturais, religiosos, étnicos e xenófobos que são frequentemente usados para fomentar ódios regional e até doméstico e sub-imperialismos. Não menos importante, na ausência de democracias populares genuínas, as sequelas de lutas compreensivelmente anti-imperialistas muitas vezes incluem o fortalecimento do próprio imperialismo, de modo que as potências aparentemente despojadas de suas colônias podem agora jogar o estado de uma ex-colônia contra a de outro, como testemunham os conflitos que assolam a África, o Oriente Médio e o subcontinente indiano. Estas são as áreas, devo acrescentar, onde as guerras nucleares serão mais prováveis de ocorrer com o passar dos anos do que em outras partes do mundo. O desenvolvimento de uma bomba nuclear islâmica para contrabalançar uma israelense ou de uma bomba paquistanesa para contrabalançar uma indiana todos não pressagiam nada de bom para o Sul e seu conflito com o Norte. De fato, a tendência das ex-colônias de buscar ativamente alianças com seus antigos governantes imperialistas é agora uma característica mais típica da diplomacia Norte-Sul do que qualquer unidade do Sul contra o Norte.
O nacionalismo sempre foi uma doença que dividiu o humano do próprio humano ― “abstrato”, como os marxistas tradicionais podem considerar ser essa noção ― e nunca pode ser visto como nada mais do que uma regressão ao paroquialismo tribal e o combustível para a guerra intercomunitária. Nem as lutas de “libertação nacional” que produziram novos estados em todo o “Terceiro Mundo” e na Europa Oriental prejudicaram a expansão do imperialismo ou resultaram em estados totalmente democráticos. Que os povos “libertados” do império stalinista sejam menos oprimidos hoje do que eram sob o regime comunista não deve nos levar a acreditar que eles também estão livres da xenofobia que quase todos os Estados-nação cultivam ou da homogeneização cultural que o capitalismo e sua mídia produz.
Nenhum libertário de esquerda, com certeza, pode se opor ao direito de um povo subjugado de se estabelecer como uma entidade autônoma — seja em uma confederação baseada no municipalismo libertário ou como um Estado-nação baseado em desigualdades hierárquicas e de classe. Mas opor-se a um opressor não equivale a pedir apoio a tudo o que fazem os Estados-nação anteriormente colonizados. Eticamente falando, não se pode se opor a um erro quando uma parte o comete, e depois apoiar outra parte que comete o mesmo erro. A máxima banal, mas concisa — “O inimigo do meu inimigo não é meu amigo” — é particularmente aplicável a pessoas oprimidas que podem ser manipuladas por totalitários, fanáticos religiosos e perpetuadores de “limpezas étnicas”. [1] Assim como uma ética autêntica deve ser fundamentada e baseada em potencialidades humanísticas genuínas, um socialismo libertário ou anarquismo deve manter sua integridade ética se a voz da razão deve ser ouvida nos assuntos sociais. Na década de 1960, aqueles que se opunham ao imperialismo americano no Sudeste Asiático e ao mesmo tempo rejeitavam dar qualquer apoio ao regime comunista em Hanói, e aqueles que se opunham à intervenção americana em Cuba sem apoiar o totalitarismo Castrista, estavam em um terreno moral mais elevado do que os da nova esquerda que exerceram sua rebeldia contra os Estados Unidos predominantemente apoiando lutas de “libertação nacional” sem levar em conta os objetivos autoritários e estatistas dessas lutas. De fato, identificados com os autoritários que apoiavam ativamente, esses da nova esquerda acabaram ficando desmoralizados pela ausência de uma base ética em suas ideias libertadoras. Hoje, de fato, as lutas libertadoras baseadas no nacionalismo e no estatismo produziram a terrível colheita de sangrias intestinais em todo o mundo. Mesmo em estados recentemente “libertados” como a Alemanha Oriental, o nacionalismo encontrou expressão brutal na ascensão de movimentos fascistas, nacionalismo alemão, planos para restringir a imigração de requerentes de asilo, violência contra “estrangeiros”, incluindo vítimas do nazismo como ciganos, e a outros correlatos. Assim, a visão instrumental do nacionalismo que os marxistas originalmente cultivaram deixou muitas tendências “esquerdistas” como os social-democratas em uma condição de falência moral.
Eticamente, deixe-me acrescentar, há algumas questões sociais sobre as quais é preciso se posicionar — como o racismo do branco contra o negro, o patriarcado e o matriarcado, o imperialismo e o totalitarismo do “Terceiro Mundo”. Uma oposição inabalável ao racismo, à opressão de gênero e à dominação como tal deve sempre ser primordial para que um socialismo ético emerja das ruínas do próprio socialismo. Mas também vivemos em um mundo em que às vezes surgem questões sobre as quais os esquerdistas não podem se posicionar — questões nas quais se posicionar é operar dentro das alternativas apresentadas por uma sociedade basicamente irracional e escolher a menor de várias irracionalidades ou males sobre outras irracionalidades ou males. Não é um sinal de ineficácia política rejeitar completamente tal escolha e declarar que opor um mal com um menor deve eventualmente levar ao apoio do pior mal que emerge. A social-democracia alemã, incentivando um “mal menor” após o outro durante a década de 1920, passou de apoiante de liberais para conservadores e depois para reacionários — que finalmente levaram Hitler ao poder. Em uma sociedade irracional, a sabedoria convencional e o instrumentalismo podem produzir apenas uma irracionalidade cada vez maior, usando a virtude como uma pátina para ocultar contradições básicas tanto em sua própria posição quanto na sociedade.
“Tal como os processos da vida, digestão e respiração”, observou Bakunin, nacionalidade “. . . não tem o direito de se preocupar consigo mesma até que esse direito lhe seja negado.” Esta foi uma declaração bastante perceptiva em sua época. Com as explosões do nacionalismo bárbaro em nossos dias e os apetites raivosos dos nacionalistas para criar cada vez mais Estados-nação, sou obrigado a acrescentar que a “nacionalidade” é uma forma de indigestão e que suas causas devem ser vomitadas para a sociedade não se deteriorar ainda mais por causa desta doença.
Buscando um alternativa
Se o nacionalismo é regressivo, que alternativa racional e humanista a ele pode oferecer um socialismo ético? Não há lugar em uma sociedade livre para estados-nação — seja como nações ou como estados. Por mais forte que seja o impulso de determinados povos por uma identidade coletiva, a razão e a preocupação com o comportamento ético nos obrigam a recuperar a universalidade da cidade ou vila e uma cultura política orientada pela democracia direta [2], ainda que em um plano superior até mesmo à polis ateniense de Péricles. A identidade deve ser adequadamente substituída pela comunidade — por uma afinidade compartilhada em uma escala humanizada, não hierárquica, libertária e aberta a todos, independentemente do gênero de um indivíduo, traços étnicos, identidade sexual, talentos ou tendências pessoais. Tal vida comunitária só pode ser recuperada pela nova política que chamei de municipalismo libertário: a democratização dos municípios para que sejam autogeridos pelas pessoas que os habitam e a formação de uma confederação desses municípios para constituir um contrapoder o estado-nação.
O perigo de que municípios democratizados em uma sociedade descentralizada resulte em paroquialismo econômico e cultural é muito real, e só pode ser evitado por uma vigorosa confederação de municípios baseada em sua interdependência material. A “autossuficiência” da vida comunitária ―mesmo que fosse possível hoje― de modo algum garantiria uma genuína democracia de base. A confederação de municípios, como meio de interação, colaboração e ajuda mútua entre seus componentes municipais, fornece a única alternativa ao poderoso Estado-nação, por um lado, e à cidade paroquial, por outro. Plenamente democrática, em que os deputados municipais às instituições confederadas estariam sujeitos à destituição, rodízio e implacável alçada pública, a confederação constituiria uma extensão das liberdades locais ao nível regional, permitindo um equilíbrio sensível entre localidade e região em que a variedade cultural de cidades poderia florescer sem se voltar para a exclusividade local. De fato, traços culturais benéficos também seriam “traficados”, por assim dizer, dentro e entre várias confederações, juntamente com o intercâmbio de bens e serviços que compõem os meios materiais de vida.
Da mesma forma, a “propriedade” seria municipalizada, em vez de nacionalizada (o que apenas reforça o poder do Estado com poder econômico), coletivizada (que simplesmente reformula os direitos empresariais privados de forma “coletiva”) ou privatizada (o que facilita a reemergência de uma economia de mercado competitiva). Uma economia municipalizada se aproximaria de um sistema de usufruto baseado inteiramente nas necessidades e na cidadania de uma comunidade, e não em seus interesses proprietários, vocacionais ou profissionais. Onde uma assembléia municipal de cidadãos controla a política econômica, nenhum indivíduo controla, muito menos “possui”, os meios de produção e de vida. Onde os meios confederados de administrar os recursos de uma região coordenam o comportamento econômico do todo, os interesses paroquiais tenderiam a dar lugar a interesses humanos maiores e considerações econômicas a interesses mais democráticos. As questões que os municípios e suas confederações tratam deixariam de girar em torno do interesse econômico; eles se concentrariam em procedimentos democráticos e simples equidade no atendimento das necessidades humanas.
Que não haja dúvidas de que os recursos tecnológicos possibilitam às pessoas escolher seus próprios estilos de vida e ter tempo livre para participar plenamente de uma política democrática são absolutamente necessários para a sociedade libertária e organizada confederadamente que esbocei aqui. Mesmo as melhores intenções éticas tendem a ceder a alguma forma de oligarquia, na qual o acesso diferenciado aos meios de vida levará a elites que têm mais coisas boas na vida do que outros cidadãos. Nesse sentido, o ascetismo que os economicistas e os ecologistas profundos promovem é insidiosamente reacionário: não apenas ignora a liberdade das pessoas de escolher seu próprio estilo de vida ―a única alternativa na sociedade existente para se tornar um consumidor irracional ―, mas subordina a liberdade humana com uma noção quase mística dos ditames da “Natureza” ―prescrevendo um “retorno ao Pleistoceno”, ao Neolítico, ou à coleta de alimentos, para citar os exemplos mais extremos. Uma sociedade ecológica livre ―diferente de uma sociedade regulada por uma elite ecológica autoritária ou pelo “livre mercado”― só pode ser moldada em termos de uma forma ecologicamente confederal de municipalismo libertário. Quando finalmente as comunas livres substituirem a nação e as formas de organização confederadas substituírem o Estado, a humanidade terá se livrado do nacionalismo.
[1] Bookchin usa aqui o termo “ethnic cleansers.”
[2] a directly democratic political culture, no original.